Conto: Uma
ilha cheia de encantos
Jostein Gaarder
Sentia-me aliviado por ter encontrado
um lugar de terra firme, que não se resumia a rochedos estéreis no meio do mar.
Mas isso ainda não era tudo: aquela ilha parecia ocultar um segredo muito além
da minha compreensão, pois eu era capaz de jurar que ela aumentava de tamanho,
à medida que eu avançava para o seu interior. Era como se cada um de meus
pequenos passos seu tamanho se multiplicasse em todas as direções; como se ela
fosse se expandindo espontaneamente, a partir de não sei o quê.
Continuei a avançar por aquela trilha
estreita, que logo se dividiu em duas, e tive de escolher uma direção a seguir.
Tomei o rumo da esquerda, que mais à frente também se bifurcou. E novamente
escolhi o caminho da esquerda.
Logo a trilha desapareceu num vale
profundo entre duas montanhas. Ali, tartarugas gigantescas arrastavam-se por
entre arbustos. As maiores tinham mais de dois metros de comprimento. Já ouvira
falar de tartarugas assim tão grandes, mas era a primeira vez que as via com
meus próprios olhos. Uma delas esticou a cabeça fora de sua carapaça e olhou
para mim, como se quisesse me dar as boas-vindas à ilha.
Durante todo o dia continuei a caminhada.
Vi outras florestas, vales, planaltos, mas nada de ver o mar. Tive a sensação
de estar perdido numa paisagem mágica, uma espécie de labirinto às avessas,
dentro do qual os caminhos nunca chegaram a uma parede.
Já no fim da tarde cheguei a um campo
aberto, uma paisagem plana e vasta com um grande lago, cujas águas cintilavam
intensamente à luz do sol da tarde. Deixei-me cair à margem e saciei minha
sede. Pela primeira vez em semanas bebia uma água diferente da água do navio.
Há muito tempo também não tomava banho.
Resolvi, então, arrancar aquela apertada roupa de marujo e saí nadando. Depois
de toda a tarde andando sob o sol escaldante dos trópicos, experimentei uma
indescritível sensação de frescor. Só então percebi o quanto meu rosto e meu
couro cabeludo tinham sido queimados pelo sol durante todos aqueles dias sem
proteção no bote salva-vidas.
Mergulhei algumas vezes e quando abria
os olhos dentro da água via enormes cardumes de peixes que tinham todas as
cores do arco-íris. Alguns eram verdes como as folhagens da margem, outros
azuis como pedras preciosas e outros ainda tinham um brilho dourado em suas
escamas vermelhas, amarelas e alaranjadas. Ao mesmo tempo, cada um deles tinha
uma faixa de todas as cores.
Nadei de volta até a margem e me deitei
ao sol do fim da tarde para me secar. Só então senti como estava faminto. Olhei
à minha volta e descobri um arbusto carregado com pesadas pencas de umas
frutinhas amarelas do tamanho de morangos. Nunca tinha visto aquelas frutinhas,
mas supus que fossem comestíveis. Tinham o gosto de uma mistura de nozes e de
bananas. Depois de ter me fartado de comer, vesti de novo minhas roupas e
acabei adormecendo, exausto, à margem do grande lago.
Na manhã seguinte, antes mesmo de o sol
nascer, acordei daquele sono profundo e me senti desperto na mesma hora. Tinha
sobrevivido a um naufrágio! Pensei. Só agora me dava conta disso. Era como se
tivesse nascido de novo.
À esquerda do lago erguia-se um paredão
rochoso absolutamente intransponível. Era coberto por gramíneas amarelas e
flores vermelhas em forma de sinos, que se moviam com leveza à brisa fresca da
manhã. Antes de o sol aparecer no céu, eu já tinha chegado ao ponto mais
elevado de uma colina. E mesmo ali de cima não conseguia ver o mar. O que via
na minha frente era uma vasta paisagem de dimensões continentais. Já tinha
estado na América do Norte e do Sul, mas não era possível que estivesse lá. E
em parte alguma via um vestígio sequer de gente.
Fiquei lá em cima da colina até que o
sol apareceu no Leste: vermelho como um tomate, mas trêmulo como uma miragem. E
com a linha do horizonte tão distante, aquele era o sol maior e mais vermelho
que já tinha visto em toda minha vida, inclusive durante os tempos que passei
no mar.
Seria aquele sol o mesmo que estaria
iluminando meus pais lá em Lubeck?
Durante toda a manhã, continuei
caminhando de paisagem em paisagem. Quando o sol estava a pino, cheguei a um
vale cheio de roseiras amarelas. Borboletas gigantes voavam de roseira em
roseira; as maiores tinham asas tão grandes quanto as de uma gralha, mas eram
infinitamente mais bonitas. Eram de um azul-profundo e tinham nas asas duas
grandes estrelas vermelha-sangue. Para mim era como se fossem flores vivas; era
como se de repente algumas flores da ilha tivessem se libertado do chão,
ganhando o ar e aprendido a arte de voo. O mais curioso, porém, era que o ruído
das borboletas era como música. Elas sibilavam em diferentes tonalidades e
espalhavam por todo o vale o som suave de suas flautas. Parecia que os
flautistas de uma grande orquestra estavam afinando seus instrumentos. Às
vezes, quando passavam por mim, suas asas macias roçavam minha pele. Percebi
que elas tinham um perfume mais forte e mais doce do que o mais caro perfume.
Um rio de águas agitadas cortava o
vale. Decidi seguir o seu curso para não ficar errando sem direção por aquela
imensa ilha. Além disso, estava certo de que mais cedo ou mais tarde
encontraria o mar. Pelo menos era o que eu achava. Só que isso era mais difícil
do que eu pensava, pois a uma certa hora da tarde aquele extenso vale chegou ao
fim. Primeiramente ele foi ficando estreito como um funil e então, de repente,
vi-me bem na frente de um rochedo maciço.
A princípio não entendi nada. Afinal,
um rio não pode simplesmente dar meia-volta e correr em sentido contrário sobre
o leito de onde tinha vindo. Foi então que percebi que o rio entrava por uma
caverna. Fui até a entrada da caverna no rochedo e olhei par dentro. No interior
da caverna, a água corria mais calma e formava um canal subterrâneo.
Diante da entrada da caverna no rochedo
alguns sapos enormes saltavam na margem do rio. Eram do tamanho de coelhos,
coaxavam sem parar numa confusão de ruídos e provocavam um barulho infernal.
Para mim era novidade que existissem na natureza sapos daquele tamanho. Pela
relva úmida das margens também se arrastavam gordos lagartos e iguanas maiores
ainda. Já estava habituado a ver animais como esses nas muitas cidades portuárias
por onde tinha passado. Mas não daquele tamanho e nem naquelas cores: na ilha,
os répteis eram vermelhos e amarelos e azuis.
Descobri que era possível adentrar a
caverna seguindo pela margem do rio. Decidi entrar para ver até onde eu
chegava.
[...]
Continuei minha jornada vale adentro. E
ali descobri os milucos...
Já tinha ficado espantado com as
abelhas e as borboletas da ilha; mas embora elas fossem mais belas e maiores do
que seus parentes na Alemanha, ainda assim continuavam sendo abelhas e
borboletas. E o mesmo valia para os sapos e répteis. Agora, porém, o que eu via
eram animais brancos, de grande porte, tão diferentes de tudo o que eu já tinha
visto ou ouvido falar na minha vida de esfregar os olhos várias vezes para
acreditar no que via.
Era um rebanho de uns doze ou quinze
animais. Eles eram do tamanho de cavalos e vacas, mas tinham uma pele grossa e
branca, que lembrava a pele dos porcos. E todos tinham seis patas! Suas cabeças
eram enormes e mais pontiagudas que as do cavalos e vacas. E de vez em quando
erguiam o pescoço para o céu e emitiam um som mais ou menos assim: Brasch,
brasch!
Não tive medo: os animais de seis patas
pareciam tão tolos e amigáveis quanto as vacas que eu conhecia na Alemanha. A
sua aparição só me deixava clara uma coisa: eu estava num lugar que não existia
no mapa. Literalmente! E a sensação que tive ao constatar isso foi comparável,
talvez, à sensação de encontrar uma pessoa sem rosto.
GAARDER,
Jostein. O dia do Curinga. São Paulo,
Companhia das Letras,
1996. p. 97-103. (Título nosso).
Entendendo o conto:
01 – Embora não haja uma
descrição do narrador-personagem, é possível ao leitor conhecer algumas
características dele. Escreva o que o texto permite saber do narrador.
É um marujo alemão que sofreu um
naufrágio. Ao chegar à ilha, ele está cansado, com sede, faminto e queimado de
sol. É um homem curioso.
02 – Como ele chegou à ilha?
Num bote
salva-vidas.
03 – O que, inicialmente,
fez com que o narrador achasse que aquela ilha escondia um mistério?
O fato de a ilha
parecer aumentar à medida que ele caminhava por ela.
04 – Cite pelo menos quatro
elementos vistos pelo narrador durante sua caminhada que permitem afirmar que a
ilha possuía uma natureza exuberante.
As tartarugas
gigantes; os peixes multicoloridos; as frutas exóticas; as borboletas gigantes.
05 – Um recurso frequente em
textos descritivos é o uso de comparações. Com o que o narrador compara:
a)
O sol?
Com um tomate e com uma miragem.
b)
As borboletas?
Com flores que aprenderam a voar.
c)
O som das borboletas?
Com os flautistas de uma orquestra afinando seus instrumentos.
d)
A sensação que ele tem depois de encontrar os
milucos?
Com a sensação de encontrar uma pessoa sem rosto.
06 – Ao se deparar com as
borboletas gigantes, o narrador as descreve através de vários sentidos. Como
ele as descreve através:
a)
Da visão?
Eram gigantes, muito bonitas, coloridas (de um azul-profundo e com
estrelas vermelho-sangue nas asas), pareciam flores vivas.
b)
Da audição?
Seu ruído era como uma música, sibilavam em diferentes tonalidades,
espalhavam um som de flautas.
c)
Do olfato?
Tinham um perfume mais forte e mais doce do que o mais caro perfume.
07 – Ao chegar ao vale, o
narrador tem a maior surpresa desde que chegara à ilha. O que ele viu?
Os milucos.
08 – Por que essa foi sua
maior surpresa?
Porque ele sabia
que aqueles seres só existiam ali.
09 – A que conclusão o
narrador chegou após encontrar aqueles animais tão estranhos?
Que aquela ilha não existia no mapa.
10 – Como você interpreta a
“sensação de encontrar uma pessoa sem
rosto” tida pelo narrador?
Resposta pessoal
do aluno.
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