quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

CONTO: O CASAMENTO - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: O casamento
         
 Luís Fernando Veríssimo

        — Eu quero ter um casamento tradicional, papai.
        — Sim, minha filha.
        — Exatamente como você!
        — Ótimo.
        — Que música tocaram no casamento de vocês?
        — Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn é o da Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.
        — Mendelssohn, Mendelssohn...  Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele ai.
        — Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em todos os casamentos, no meu tempo.
        — O nosso não vai ter órgão, é claro.
        — Ah, não?
        — Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai tocar na cerimônia. O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei, não...
        — É, acho que no sintetizador não fica bem...
        — Quem sabe alguma coisa do Queen...
        — Quem?
        — O Queen.
        — Não é a Queen?
        — Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai.
        — Ah, certo. O Queen. No sintetizador.
        — Acho que vai ser o maior barato!
        — Só o sintetizador ou...
        — Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...
        — Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional.
        — Isso.
        — Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva. Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom. Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que chamam o nosso futuro genro de Varum?
        — Eu sabia...
        — O quê?
        — Que você já ia começar a implicar com ele.
        — Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro.
        — Eles nem casaram e você já está implicando.
        — Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça. Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete.
        — É um belo rapaz.
        — E eu não sei? Há quase um ano que ele frequenta a nossa casa diariamente. É como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?
        — E o apelido e pronto.
        — Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado.
        — Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você fica.
        — Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço.
        — Aí xará!
        — Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce. Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...
        — Essa noivinha...
        — Vocês vão ao cinema?
        — Ela não lhe disse? Nós vamos acampar.
        — Acampar? Só vocês dois?
        — É. Qual é o galho?
        — Não. E que... Sei lá.
        — Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei.
        — É! Você sabe como é...
        — Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode pintar um lance.
        — No mínimo isso. Um lance. Até dois.
        — Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Ôi, gatona!
        — Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?
        — Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados pode pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.
        — Ô, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan.
        — Só não dou o meu grito para proteger os cristais.
        — Vamos?
        — Vamlá?
        — Mas... Vocês vão acampar de motocicleta?
        — De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.
        — Descobri por que ele se chama Varum.
        — O quê? Você quer alguma coisa?
        — Disse que descobri por que ele se chama Varum.
        — Você me acordou só para dizer isto?
        — Você estava dormindo?
        — É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não dormiu?
        — Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona.
        Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma gatona.
        Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato.
        — Então é isso que está preocupando você?
        — E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo.
        A gatona é sua também.
        — Mas não tem perigo nenhum!
        — Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher, dentro de uma tenda, no meio do mato?
        — O que é que pode acontecer?
        — Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.
        — Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um sapo na tenda.
        — Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando louco.
        — Vai dormir.
        — Gatona. Minha própria filha...
        — Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.
        — Eu prefiro não ouvir.
        — Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha um apelido.
        — Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.
        — Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado.
        — Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num mecânico e disse que a bateria estava ruim. Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser trocado.
        — Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini!
        — Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini.
        — Não levou porque meu pai matava você.
        — Hummmm.
        — “Hummmm” o quê?
        — Você me deu uma ideia. Assassinato...
        — Não seja bobo.
        — Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...
        — O que você tem é ciúme.
        Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima de tudo que é o que me tira o sono.
        — O quê?
        — Será que ele tira o capacete para dormir?
        — Bom dia.
        — Bom dia.
        — Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena.
        — Maria Helena... Ah, a Gatona!
        — Essa.
        — Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?
        — Não, Padre Osni. E que...
        — Pode me chamar de Tuco. E como me chamam.
        — Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca um rock e a noiva entra dançando, é isso?
        — É. Um rock suave. Não é rock pauleira.
        — Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo.
        — Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente. É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir com os tempos.
        — Claro. Mas, Padre Osni...
        — Tuco.
        — Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar?
        — Bom, isto depende do senhor. O senhor dança?
        — Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de chá-chá-chá. Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e...
        — Ensaie, ensaie.
        — Certo.
        — Peça para a Gatona ensaiar com o senhor.
        — Claro.
        — Não é rock pauleira.
        — Certo. Um roquezinho suave. Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.
        — Você está nervoso, papai?
        — Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso uma semana a mais de ensaio. Só uma semana.
        — Eu estou bonita?
        — Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.
        — Mas eu estou pronta.
        — Você vai se casar assim?
        — Você não gosta?
        — É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...
        — Não é um barato?
        — Um brinde, xará!
        — Um brinde, Varum.
        — Você estava um estouro entrando naquela igreja. Parecia um bailarino profissional.
        — Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.
        — Muito bem!
        — Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.
        — Do quê?
        — Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido.
        — Bota tempo nisso.
        — Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia levei no...
        — Tinha um quê?
        — Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum.
        — Ah.
        — Esquece.
        — Um brinde ao sogro bailarino.
        — Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.
        — O que é que você achou da minha beca, cara?
        — Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes. Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de capacete...
        — Vacilou.
        — Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo bem. Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave.

                 VERÍSSIMO, Luís Fernando. In: Para gostar de ler.
São Paulo, Ática, 1994. v. 13, p. 71-6.
Entendendo o conto:
01 – Ao conversar com o pai a respeito do casamento, a filha afirma querer um casamento tradicional, no entanto não é exatamente isso o que ocorre. Selecione do texto pelo menos três detalhes que provam que o casamento não foi tradicional.
      Sugestão: A música ser tocada com sintetizador, baixo e guitarra; a noiva casar descalça; o noivo usar macacão vermelho; o pai e a noiva entrarem na igreja dançando rock; o padre celebrar o casamento usando um boné.

02 – O pai tem uma curiosidade: saber por que seu futuro genro é chamado de Varum. Explique o porquê de tal apelido e transcreva o trecho em que você se baseou para dar sua resposta.
      Porque o rapaz sempre andava de moto e o barulho do motor é vá-rum. O apelido é, na verdade, uma onomatopeia. O trecho é: “—Mas... Vocês vão acampar de motocicleta? – de motoca, cara. Vá-rum, vá-rum”.

03 – Durante a conversa que mantém com o padre, qual a grande preocupação do pai?
      Ele está preocupado porque terá que entrar dançando na igreja.

04 – Como o pai da noiva se saiu no casamento? Que fala do noivo comprovaria isso?
      O pai da noiva saiu-se bem ao entrar na igreja dançando. A fala do noivo que mostra isso é: “Um brinde ao sogro bailarino”.

05 – Embora o texto todo seja formado por diálogos em linguagem coloquial, há momentos em que a linguagem se torna muito mais informal. Que momentos são esses? Por que isso ocorre?
      São os momentos em que Varum fala. Isso ocorre porque Varum é jovem e usa gírias e também porque ele tem intimidade com o pai de Maria Helena.

06 – Selecione um trecho que sirva para comprovar que a linguagem do texto chega a ser bastante informal, havendo inclusive a presença de gírias.
      “Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei”.

07 – Procure refazer o diálogo inicial entre Varum e seu sogro, usando uma linguagem menos informal.
      Resposta pessoal do aluno.

08 – O fato de Maria Helena dizer que queria um casamento tradicional fez com que seu pai pensasse que o desejo da filha era ter um casamento parecido com o dele. No entanto, não era essa ideia de “tradicional” que ela tinha em mente. Na sua opinião, as tradições devem ser mantidas ou os costumes devem ser modernizados? Explique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.


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