— Eu quero
ter um casamento tradicional, papai.
— Sim,
minha filha.
—
Exatamente como você!
— Ótimo.
— Que
música tocaram no casamento de vocês?
— Não tenho certeza, mas acho que era
Mendelssohn. Ou Mendelssohn é o da Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.
— Mendelssohn, Mendelssohn... Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele
ai.
— Ah, não posso, minha filha. Era o que
o órgão tocava em todos os casamentos, no meu tempo.
— O nosso não vai ter órgão, é claro.
— Ah, não?
— Não. Um amigo do Varum tem um
sintetizador eletrônico e ele vai tocar na cerimônia. O Padre Tuco já deixou.
Só que esse Mendelssohn, não sei, não...
— É, acho
que no sintetizador não fica bem...
— Quem sabe
alguma coisa do Queen...
— Quem?
— O Queen.
— Não é a
Queen?
— Não. O
Queen. E o nome de um conjunto, papai.
— Ah,
certo. O Queen. No sintetizador.
— Acho que
vai ser o maior barato!
— Só o sintetizador
ou...
— Não. Claro que precisa ter uma
guitarra elétrica, um baixo elétrico...
— Claro.
Quer dizer, tudo bem tradicional.
— Isso.
— Eu sei que não é da minha conta.
Afinal, eu sou só o pai da noiva. Um nada. Na recepção vão me confundir com um
garçom. Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que
chamam o nosso futuro genro de Varum?
— Eu sabia...
—
O quê?
— Que você já ia começar a implicar com
ele.
— Eu não estou implicando. Eu gosto
dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia tirasse aquele capacete de
motoqueiro.
— Eles nem casaram e você já está
implicando.
—
Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça. Pelo menos eu
imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete.
— É um belo rapaz.
— E eu não sei? Há quase um ano que ele
frequenta a nossa casa diariamente. É como se fosse um filho. Eu às vezes fico
esperando que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?
— E o apelido e pronto.
— Ah, então é isso. Você explicou tudo.
Obrigado.
— Quanto mais se aproxima o dia do
casamento, mais intratável você fica.
— Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um
inseto. Me esmigalha. Eu mereço.
— Aí xará!
— Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está
se arrumando. Ela já desce. Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...
— Essa noivinha...
— Vocês vão
ao cinema?
— Ela não
lhe disse? Nós vamos acampar.
— Acampar?
Só vocês dois?
— É. Qual é
o galho?
— Não. E
que... Sei lá.
— Já sei o
que você tá pensando, cara. Saquei.
— É! Você sabe
como é...
— Saquei. Você está pensando que só nós
dois, no meio do mato, pode pintar um lance.
— No mínimo
isso. Um lance. Até dois.
— Mas qualé, xará. Não tem disso não.
Está em falta. Ôi, gatona!
— Oi, Varum. O que é que você e papai
estão conversando?
— Não, o velho aí tá preocupado que nós
dois, acampados pode pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.
— Ô, papai.
Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa o Varum me defende. Eu Jane,
ele Tarzan.
— Só não
dou o meu grito para proteger os cristais.
— Vamos?
— Vamlá?
— Mas...
Vocês vão acampar de motocicleta?
— De
motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.
— Descobri
por que ele se chama Varum.
— O quê?
Você quer alguma coisa?
— Disse que
descobri por que ele se chama Varum.
— Você me
acordou só para dizer isto?
— Você
estava dormindo?
— É o que eu costumo fazer às três da
manhã, todos os dias. Você não dormiu?
— Ainda
não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona.
Por um estranho processo de degeneração
genética, eu sou pai de uma gatona.
Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está
neste momento, no meio do mato.
— Então é
isso que está preocupando você?
— E não é para preocupar? Você também
não devia estar dormindo.
A gatona é
sua também.
— Mas não
tem perigo nenhum!
— Como, não tem perigo? Um homem e uma
mulher, dentro de uma tenda, no meio do mato?
— O que é
que pode acontecer?
— Se você
já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.
— Não tem perigo nenhum. O máximo que
pode acontecer é entrar um sapo na tenda.
— Ou você está falando em linguagem
figurada ou eu é que estou ficando louco.
— Vai
dormir.
— Gatona.
Minha própria filha...
— Você também tinha um apelido pra mim,
durante o nosso noivado.
— Eu
prefiro não ouvir.
— Você me chamava de Formosura.
Pensando bem, você também tinha um apelido.
— Por favor. Reminiscências não. Comi faz
pouco.
— Kid Gordini. Você não se lembra? Você
e o seu Gordini envenenado.
— Tão envenenado que morreu, nas minhas
mãos. Um dia levei num mecânico e disse que a bateria estava ruim. Ele disse que
a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser trocado.
— Viu só? E você se queixa do Varum.
Kid Gordini!
— Mas eu nunca levei você para o mato
no meu Gordini.
— Não levou porque meu pai matava você.
— Hummmm.
— “Hummmm” o quê?
— Você me deu uma ideia. Assassinato...
— Não seja bobo.
— Um golpe bem aplicado... Na cabeça
não porque ela está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...
— O que você tem é ciúme.
Nisso tudo, tem uma coisa que me
preocupa acima de tudo que é o que me tira o sono.
— O quê?
— Será que ele tira o capacete para
dormir?
— Bom dia.
— Bom dia.
— Eu sou o
pai da noiva. Da Maria Helena.
— Maria Helena... Ah, a Gatona!
— Essa.
— Que
prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?
— Não,
Padre Osni. E que...
— Pode me
chamar de Tuco. E como me chamam.
— Não, Padre Tuco. E que a Ga... A
Maria Helena me disse que ela pretende entrar dançando na igreja. O conjunto
toca um rock e a noiva entra dançando, é isso?
— É. Um rock suave. Não é rock
pauleira.
— Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom,
isto muda tudo.
— Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva
entra dançando e na saída os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje
está diferente. É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que
evoluir com os tempos.
— Claro. Mas, Padre Osni...
— Tuco.
— Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da
noiva também tem que dançar?
— Bom, isto depende do senhor. O senhor
dança?
— Agora não, obrigado. Quer dizer,
dançava. Até ganhei concurso de chá-chá-chá. Acho que você ainda não era
nascido. Mas estou meio fora de forma e...
— Ensaie,
ensaie.
— Certo.
— Peça para
a Gatona ensaiar com o senhor.
— Claro.
— Não é
rock pauleira.
— Certo. Um roquezinho suave. Quem sabe
um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.
— Você está nervoso, papai?
— Um pouco. E se a gente adiasse o
casamento? Eu preciso uma semana a mais de ensaio. Só uma semana.
— Eu estou
bonita?
— Linda.
Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.
— Mas eu
estou pronta.
— Você vai
se casar assim?
— Você não
gosta?
— É...
diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...
— Não é um
barato?
— Um
brinde, xará!
— Um
brinde, Varum.
— Você estava um estouro entrando
naquela igreja. Parecia um bailarino profissional.
— Pois é.
Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.
— Muito
bem!
— Não sei
se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.
— Do quê?
— Chá-chá-chá. Uma dança que havia.
Você ainda não era nascido.
— Bota
tempo nisso.
— Eu tinha um Gordini envenenado. Tão
envenenado que morreu. Um dia levei no...
— Tinha um
quê?
— Gordini.
Você sabe. Um carro. Varum, varum.
— Ah.
— Esquece.
— Um brinde
ao sogro bailarino.
— Um
brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.
— O que é
que você achou da minha beca, cara?
— Sensacional. Nunca tinha visto um
noivo de macacão vermelho, antes. Gostei. Confesso que quando entrei na igreja
e vi você lá no altar, de capacete...
— Vacilou.
— Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco
estava de boné e pensei, tudo bem. Temos que evoluir com os tempos. E ataquei
meu rock suave.
VERÍSSIMO, Luís
Fernando. In: Para gostar de ler.
São Paulo, Ática,
1994. v. 13, p. 71-6.
Entendendo o conto:
01 – Ao conversar com o pai
a respeito do casamento, a filha afirma querer um casamento tradicional, no
entanto não é exatamente isso o que ocorre. Selecione do texto pelo menos três
detalhes que provam que o casamento não foi tradicional.
Sugestão: A
música ser tocada com sintetizador, baixo e guitarra; a noiva casar descalça; o
noivo usar macacão vermelho; o pai e a noiva entrarem na igreja dançando rock;
o padre celebrar o casamento usando um boné.
02 – O pai tem uma
curiosidade: saber por que seu futuro genro é chamado de Varum. Explique o
porquê de tal apelido e transcreva o trecho em que você se baseou para dar sua
resposta.
Porque o rapaz
sempre andava de moto e o barulho do motor é vá-rum. O apelido é, na verdade,
uma onomatopeia. O trecho é: “—Mas... Vocês vão acampar de motocicleta? – de
motoca, cara. Vá-rum, vá-rum”.
03 – Durante a conversa que
mantém com o padre, qual a grande preocupação do pai?
Ele está
preocupado porque terá que entrar dançando na igreja.
04 – Como o pai da noiva se
saiu no casamento? Que fala do noivo comprovaria isso?
O pai da noiva
saiu-se bem ao entrar na igreja dançando. A fala do noivo que mostra isso é:
“Um brinde ao sogro bailarino”.
05 – Embora o texto todo
seja formado por diálogos em linguagem coloquial, há momentos em que a
linguagem se torna muito mais informal. Que momentos são esses? Por que isso
ocorre?
São os momentos
em que Varum fala. Isso ocorre porque Varum é jovem e usa gírias e também
porque ele tem intimidade com o pai de Maria Helena.
06 – Selecione um trecho que
sirva para comprovar que a linguagem do texto chega a ser bastante informal,
havendo inclusive a presença de gírias.
“Já
sei o que você tá pensando, cara. Saquei”.
07 – Procure refazer o
diálogo inicial entre Varum e seu sogro, usando uma linguagem menos informal.
Resposta pessoal
do aluno.
08 – O fato de Maria Helena
dizer que queria um casamento tradicional fez com que seu pai pensasse que o
desejo da filha era ter um casamento parecido com o dele. No entanto, não era
essa ideia de “tradicional” que ela tinha em mente. Na sua opinião, as
tradições devem ser mantidas ou os costumes devem ser modernizados? Explique
sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
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