segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

CONTO: PALAVRAS ALADAS - MARINA COLASANTI - COM GABARITO

CONTO:  PALAVRAS ALADAS
                  MARINA COLASANTI

         Era uma vez um rei que decidiu prender todas as palavras do seu reino, para não escutar nenhum som e viver em eterno silêncio.
    Mas nem sempre as coisas acontecem como planejamos, não é mesmo?  O que você acha que aconteceu com esse reino sem palavras e sem sons? Por que será que as palavras se tornaram aladas, ou seja, passaram a ter asas, a voar, causando ainda maior tumulto? Você entenderá melhor os fatos, lendo a história. Portanto, vamos à leitura do texto.
         Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.
         Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro.
         Agora sim, nenhum som entrava no castelo. O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.
         --- Ouçam que preciosidade --- dizia o rei. E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.
         Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os libertava da redoma.
         Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores.
         E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.
         Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.
         Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno voo, algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.
         De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sons, enchia-se e calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.
         Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos, derramava sua paixão aos pés da amada.
         A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada de passado, vinha agora envolve-lo, religa-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
         --- Que se abra as portas! --- gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.
         --- Que se abram as portas! --- correu o grito da sala ao salão, da escada ao jardim, muro acima, até esbarrar na cúpula de vidro, e voltar, batendo no queixo majestoso.
         --- Que se derrube a redoma! --- lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. --- Que se abatam os muros!
          E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopeias, discursos e recados, e ao longe --- maritacas --- um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.

                                  COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça do labirinto. São Paulo: Global, 2001.

1 – Por que o rei de que nos fala o texto gostava tanto de silêncio?
      Ele era bastante sensível a qualquer barulho, detestava o menor ruído que parecia perturbar lhe a tranquilidade.

2 – O que ele fez para se livrar do barulho que tanto o incomodava?
       Ordenou a construção de muros bem altos rodeando o castelo e, depois, mandou colocar uma redoma de vidro, que isolou totalmente seu mundo.

3 – Com o tempo, o que aconteceu com as palavras pronunciadas pelas pessoas?
       Elas não tinham como sair e, aprisionadas no castelo, começaram a se acumular pelo ar.

4 – O que as palavras fizeram que desagradaram bastante ao rei?
       Durante a visita de um embaixador estrangeiro, uma frase perdida no ar, dita pelo cozinheiro, interpôs-se na conversa do rei ilustre visitante, e, em meio às homenagens prestadas pelo rei, ouviu-se uma ordem para que o embaixador depenasse logo uma galinha.

5 – Qual foi a atitude do rei após esse acontecimento?
      Enfurecido, mandou que todas as palavras fossem presas no calabouço.

6 – Em que consistia a “Temporada Anual de Caça à Palavra”?
       Os cortesãos viam, como um esporte, a obrigação de recolher à prisão todas as palavras ditas, a cada ano, até que esgotou o espaço no calabouço e outras salas foram ocupadas com aquelas incômodos sons.

7 – Que acontecimento modificou a maneira de agir do rei?
      Um dia, ele andava pelos corredores do castelo e ouviu vozes; era uma declaração de amor, vinda de uma das salas. Ele reconheceu sua própria voz e emocionou-se, ao sentir a paixão das palavras, ditas por ele ainda jovem.

8 – A partir desse momento, qual foi a reação do rei? Por que?
      Mandou que se abrissem imediatamente as portas e rompessem a redoma de vidro, para que as palavras pudessem sair e entrar livremente, e se ouvissem os sons de frases, de cantigas, de vozes de animais, de risos, etc. porque ele reencontrou, nele mesmo, o valor do sentimento, da emoção.

9 – Na verdade, por que os sons representavam a “vida do castelo”?
      Nós nos utilizamos das palavras para comunicar o que pensamos e sentimos. Portanto, as palavras dão sentido às nossas ações. Por meio delas, sabemos o que se passa com as pessoas e conhecemos suas vidas.


4 comentários:

  1. Maravilhosa imaginação e, não se se posso dizer, o uso de metáforas para falar sobre a língua e suas funções. Desde o início imaginei que as palavras seriam aprisionadas num livro.

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