ARTIGO DE OPINIÃO: O “IDION” E O “IDIOTES”
Leonardo Konder
Quando
duas pessoas querem dialogar, duas condições prévias são imprescindíveis:
1)
que elas sejam indivíduos diferentes;
2) que elas tenham alguma coisa em comum.
Se não houver nenhuma diferença significativa, se as duas disserem exatamente a
mesma coisa, cada uma delas repetindo o que a outra acabou de dizer, teremos
não um diálogo, mas um monólogo a duas vozes.
Por outro lado, se os dois parceiros do diálogo forem tão completamente
diferentes que não tenham sequer um ponto de encontro e nem mesmo consigam
falar a mesma língua, o diálogo se torna inviável.
O indivíduo é o ser singular, tem uma identidade que o distingue de todos os
outros, uma personalidade própria (é o que os antigos gregos chamavam de
“idion”). No entanto, esse “idion” existe em um constante intercâmbio com os
outros, é formado pela sociedade, depende do grupo. Leva um tempão para
aprender a andar, a falar; e muito mais tempo ainda para aprender a lutar pela
vida, a sobreviver por conta própria. Existe, portanto, em comunidade (o que os
antigos gregos chamavam de “Koinomia”).
Nas atuais condições históricas, a importância da autonomia individual é
sublinhada pela onda de individualismo que se nota na cultura dita
“pós-moderna”. Com boas razões, as pessoas repelem a pressão que as tenta
anexar a coletividades estruturadas de forma sufocante.
Querendo ou não, pertencemos todos a uma vasta comunidade: o gênero humano. Mas
a humanidade é grande demais, não conseguimos enxergá-la. Recorremos, então a
comunidades menores, que substituem a espécie humana. Uns se integram em (ou se
entregam a?) partidos políticos, outros a organizações religiosas, muitos se
contentam em pertencer a um clube de futebol ou a uma escola de samba, alguns
se definem como sócios de um clube ou membros de uma corporação profissional.
Isso pode ser bom ou pode ser ruim, dependendo do espírito com que o sujeito
vive sua pertinência à “pequena comunidade”: com espaço para a
tolerância, o diálogo e o humor.
Mas há gente que se recusa a participar de qualquer “koinonia” e insiste em ser
apenas um indivíduo isolado. O preço pago por essa opção individualista
drástica costuma ser alto. O sujeito posto em estado de solidão pode pensar que
está desenvolvendo uma reflexão original, profunda, enriquecedora, no entanto
pode estar somente emburrecendo, por falta de interlocutores. Vale a pena
lembrarmos que os antigos gregos já alertavam para esse risco: no idioma deles,
o superlativo de “idion” (singular) era “idiotes”.
O indivíduo singular é formado socialmente, ele se individualiza na relação com
os outros. Sua singularidade (originalidade?) se desenvolve com base na
incorporação crítica das experiências alheias, num movimento incessante de ir
ao outro para crescer. O “idiotes” é o sujeito que, instalado em si mesmo, se
sente dispensado de qualquer esforço de auto superação.
A rigor, se trata de alguém que não suporta o diálogo com o outro, já que o
outro, o interlocutor que pensa diferente, lhe parecerá sempre o agente de um
desacato, a encarnação de um desaforo, um delinquente, que merece sofrer
medidas policiais.
Dispor-se ao diálogo, tentar falar para o outro, já é uma opção promissora, que
pode ter preciosas implicações humanistas e democráticas. Para prosseguir no
caminho dialógico, o sujeito precisa aprimorar sua capacidade de argumentar ad
hominem, quer dizer, sua capacidade de falar de modo razoável, em termos que
seu interlocutor – com base no que já sabe – possa entender.
Debruçando-se autocriticamente sobre si mesmo, o sujeito que se dispõe a
trilhar o caminho do diálogo precisa tentar reexaminar sua inserção em grupos,
coletividades, comunidades que eventualmente lhe servem como substitutas da
espécie humana (dentro de certos limites, é claro).
Precisa verificar, no diálogo, se tem sido e continua a ser um bom companheiro
de partido, um correligionário maduro e consciencioso, um parceiro leal e
correto, um colega bem-educado e cordial, ou se às vezes tropeça em atitudes
intolerantes e fanáticas, em azedumes ou mesquinharias, cultivando
mal-entendidos em vez de contribuir para proporcionar esclarecimentos.
Precisa, também, de tempos em tempos, observar criticamente a coletividade em
que está inserido, para ver se ela está proporcionando aos seus integrantes
possibilidades concretas de eles combinarem suas respectivas singularidades com
meios concretos de uma inserção mais efetiva – mais universal! – no movimento
social.
Essa inserção é fundamental. Depois de ter sido formado pela sociedade, o
indivíduo passa a se orientar livremente, a fazer escolhas pelas quais é
responsável, e é desafiado a participar ativamente da transformação da
sociedade que o formou. As associações que até certo ponto funcionam como
substitutas do gênero humano devem oferecer a seus membros possibilidades
concretas de pensarem e agirem sem estreitezas ideológicas, na condição de
cidadãos do mundo, de representantes da humanidade.
Se não fazem isso, essas associações podem atrapalhar a formação de uma
consciência humanista e democrática. Se, contudo, se abrem para o convívio
jovial com a ampla diversidade da condição humana, elas ajudam muito a
fortalecer o espírito da democracia. E mantêm vivo o espírito do humanismo.
KONDER,
Leonardo. O “idion” e o “idiotes”, 7 set. 2002. Disponível em:
Acesso
em: 31 jul. 2009.
Entendendo
o texto:
01 – Qual
é a tese principal do texto de Leandro Konder?
Sua tese principal é o que está resumido no título: a questão do indivíduo
(“idion”) e a crítica da pessoa excessivamente individualista (“idiotes”).
02 –
Segundo o autor, para duas pessoas dialogarem efetivamente, há duas condições.
Quais são elas? Por que elas são necessárias?
As duas condições para duas pessoas dialogarem são: a) que
elas sejam indivíduos diferentes; e b) que elas tenham algo em
comum. Se não tiverem nada de diferente, uma será apenas a repetição da outra;
se não tiverem nada em comum, não há como aproximá-las – 1º, 2º e 3º
parágrafos.
03 – Ele
afirma que somos seres que se agregam em comunidades. Isso pode ser bom ou
ruim. Quando é bom? Por quê?
É bom quando a pessoa se relaciona na comunidade com uma atitude de tolerância,
diálogo e humor. Só assim haverá espaço de convívio democrático – 6º parágrafo.
04 – Por
que o autor afirma que é alto o preço de uma opção individualista drástica de
vida?
Porque a falta de interlocução nos emburrece – 7º parágrafo.
05 – Como
podemos interpretar a afirmação de que o indivíduo se individualiza na relação
com os outros?
É no contato com os outros que nos desenvolvemos porque podemos incorporar
criticamente as experiências alheias – 8º parágrafos.
06 – Você
certamente conhece pessoas que “não suportam o diálogo” no sentido apresentado
no texto. O que leva uma pessoa a ter essa atitude?
A não percepção da importância do outro para nosso próprio desenvolvimento e o
desprezo pelos que pensam diferente – 8º e 9º parágrafos.
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