sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CRÔNICA: A PRIMEIRA PASSEATA DE UM FILHO - LOURENÇO DIAFÉRIA - COM GABARITO

Texto: A PRIMEIRA PASSEATA DE UM FILHO

  O frangote despertou mais cedo que o relógio. Mal lavou o rosto Engoliu o café queimando a língua. Enfiou no bolso uma nota de dez paus, a carteirinha de estudante, e não deu a menor bola para a mochila dos livros e apostilas.
 Não estava com cara de quem ia assistir às aulas de química, português e geografia
          O pai ficou na marcação. Esses filhos de hoje... --- ele pensou, lembrando-se do tempo em que também era filho e cabulava a escola para ver os filmes do cinemundi e os jogos de futebol da Várzea do Glicério.
         --- Que folga é essa? --- perguntou sorrindo.
         O garoto, da turma de Humanas, deu resposta exata:
         --- Vou à passeata.
         --- Homessa! (Mesmo os pais modernos têm interjeições antigas.) Que besteira, menino. É assim que tudo começa. De repente dá uma confusão na praça, um corre-corre, você cai, me quebra a perna, vem um cavalo da polícia, te pisa, te amassa, tua vó vai brigar comigo. Que eu que fui culpado. Você não sabe o estrago que faz um cassetete. Já vi esse filme. É melhor ficar em casa bem quietinho, lendo um livro, jogando um game, a passeata vai passar pela TV. Ou então, se não tiver nada que fazer, coce o saco. Pelo menos, não tem perigo.
          Mas o pai (sujeito vivido) não falou nada. Apenas ficou com o coração aflito. Essas coisas bobas de pai. O que tem que acontecer sempre acontece. Como a primeira vez que saltou do bonde andando e se esborrachou na calçada. Como a primeira vez que tragou um cigarrinho, bituca de Aspásia, e ficou com gosto de cabo de guarda-chuva uma semana na garganta. Como o primeiro gole de cachaça, num domingo, num piquenique no Pico do Jaraguá, e soltou o mico, vomitou até as tripas.
          Mas aquela era a primeira passeata do menino.
          --- Mania que o senhor tem de me chamar de menino!
          A primeira passeata não é uma coisa à toa. Daqui a cem anos, quando ele crescer, for um velhinho de bengala e próstata safada, se lembrará desse dia antigo jamais esquecido. Contará aos filhos e aos netos. Roncará papo, como fazem todos os velhinhos depois dos 30. Mas agora ele não passa de um garoto franzino, camiseta de algodão, nem se agasalha o porcaria do filho, uns tênis fedidos, e metido a querer traçar seu próprio destino. É muita presunção! Até outro dia, a única vez que desfilou com o povo foi atrás da bateria da torcida do Corinthians.
          --- Cuidado, filho. A rua tem perigos.
          Mas o pai nada falou. Apenas seu coração batia. Não se pode aparar as asas de um menino (eterno menino). Deixa-lo ir, embandeirado, unir sua voz desafinada de roqueiro fracassado às vozes da cidade enfeitiçada, a qual sorri, embevecida, ao ver que ainda existe a mocidade.
          No alto da passeata, o sol fulgia.

       Lourenço Diaféria. O imitador de gatos e outras crônicas.
São Paulo: Ática, 2001. P. 33-4.
Entendendo o texto:

01 – O texto narra asa preocupações de um pai ao descobrir que o filho está deixando de ser criança. Na narrativa aparecem as vozes do pai, do filho, do narrador e as reflexões do pai. Identifique de quem é a voz ou o pensamento em cada um dos fragmentos a seguir:
           a) “--- Que folga é essa?”
      Voz do pai.

           b) “--- Vou a passeata.”
      Voz do filho.

           c) “Não estava com cara de quem ia assistir às aulas de química, português e geografia.”
      Voz do narrador.

           d) “--- Homessa! [...] É melhor ficar em casa bem quietinho, lendo um livro, jogando um game, a passeata vai passar na TV.”
      Reflexão do pai.

02 – O pai percebe que o filho não vai à aula, mas lembra que, ele próprio, quando jovem, também cabulava aula.
           a) Com que finalidade o pai faltava à aula?
      Para ir ao cinema ou para assistir a jogos de futebol.

           b) Em relação à finalidade, há diferença entre as faltas do pai à aula quando jovem e aquela falta do filho?
      Sim. O pai faltava para divertir-se, e o filho resolve faltar para participar de uma passeata.

03 – O pai não aceita de imediato a decisão do filho.
           a) Qual era a preocupação do pai?
      De que o filho ferisse.

           b) O que o pai preferia que o filho fizesse?
      Que ele ficasse em casa, lendo ou jogando, vendo a passeata pela TV, ou ocioso.

04 – O pai sabe que há na vida passagens que fazem parte do crescimento do jovem e não podem ser evitadas.
            a) Que frase sintetiza esse pensamento dele?
       O que tem de acontecer sempre acontece.

            b) Que fatos da juventude do pai exemplificam essa ideia?
       Suas experiências com o bonde, com o cigarro, com o álcool.

05 – A reflexão do pai a propósito da ida do filho à passeata é contraditória.
            a) Ele valoriza a participação social da juventude? Justifique sua resposta.
       Sim, ao considerar que a primeira passeata não é uma coisa à toa e que o jovem se lembraria dela por toda a vida.

            b) Ele acha o filho preparado para esse momento?
       Não. Ele acha que o filho ainda é um menino, um “garoto franzino”.

06 – No decorrer do texto, o filho é descrito pela voz do narrador, mas sob a ótica do pai.
            a) Como o filho é caracterizado?
       Franzino, com camiseta de algodão, sem agasalho, usa tênis fedidos, tem voz desafinada.

            b) Na ótica do pai, o filho é presunçoso, porque é “metido a querer traçar seu próprio destino”. Essas características são típicas de um jovem específico ou são genéticas, isto é, se aplicam a todo jovem?
       São genéricas, ou seja, se aplicam aos jovens em geral.

07 – Compare estas frases do texto:
        “Mas o pai [...] não falou nada. Apenas ficou com o coração aflito”.
        “Mas o pai nada falou. Apenas seu coração batia.”
        O que as frases expressam quanto ao estado emocional do pai?
       Expressam preocupação e medo e, ao mesmo tempo, a decisão de não tolher a iniciativa do filho, não dizendo a ele o que pensava e sentia.

08 – O pai refere-se ao filho como “franzino”, “porcaria” Essas palavras correspondem a um desejo do pai de desvalorizar o filho, para fazer com que ele desistisse da passeata, ou disfarçar o orgulho que ele sentia do filho?
        Disfarçar o orgulho que ele sentia do filho.

09 – A ideia expressa pelo termo frangote, utilizado em referência ao jovem no início do texto, é retomada no penúltimo parágrafo. Por meio de que expressão é feita essa retomada?
         As asas de um menino.

10 – No final do texto, algumas imagens poéticas são associadas à participação do rapaz na passeata:
        - “Deixá-lo ir, embandeirado, unir sua voz desafinada de roqueiro fracassado às vozes da cidade enfeitiçada, a qual sorri, embevecida, ao ver que ainda existe a mocidade”.
        - “No alto da passeata, o sol fulgia”.
        a) No contexto, qual sentido tem a palavra mocidade: uma fase da vida humana, um estado de espírito ou um período de irresponsabilidade?
         Um estado de espirito.

b)   As imagens de cidade que sorri embevecida e de sol brilhando sobre a passeata revelam cumplicidade e satisfação ou desgosto por parte do pai e do narrador com a participação do jovem na passeata?
            Revelam cumplicidade e satisfação.


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