CRÔNICA: O AMOR POR ENTRE O VERDE
Vinícius de Moraes
Não é sem frequência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de
brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no
parque. Ela é uma menina de uns treze anos, o corpo elástico metido nuns blue
jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho de cavalo
que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo,
dezesseis, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de
quem descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos,
e ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a
se tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos,
pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais
antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espapaçam sua
verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever
todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade
que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.
Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar lhes os jogos de mão e
misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem
de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição,
encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como
dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem
vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da
natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios.
Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os
cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se
amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma
brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir,
e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num
longo e meticuloso beijo.
--- Que será --- pergunto-me eu em vão --- dessas duas crianças que tão cedo
começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na
sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos,
de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um
rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar
dessa com os cabelos presos?
E se prosseguirem se amando --- pergunto-me novamente em vão --- será que um
dia se casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se
olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande
abraço de ternura? Ou será que se desviarão o olhar, pra pensar cada um consigo
mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita
ou inteligente do que ele a tinha imaginado?
É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o
ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por
um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de
desencontros, em que frequentemente aquela que devia ser daquele acaba por
bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por
ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se
nos olhos por um instante e não se reconheceram.
E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se
nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não
sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um
rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico
neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que
lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de
mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos,
mirando muito além das estrelas.
Vinícius
de Morais. Para viver um grande amor.
José
Olympio, 1989. P. 39-41.
Entendendo
o texto:
01 – O texto narra uma cena do cotidiano
presenciada pelo narrador.
a) Qual é essa cena?
Ele vê um casalzinho de
adolescentes que sempre vem namorar sobre a pequena ponte de balaustrada branca
do parque.
b) De onde o narrador vê a cena?
Ele vê a cena a partir de sua
janela.
c) Qual é o tempo de duração da cen vista pelo
narrador?
Alguns minutos.
d) Que relação há entre o título do texto e a
cena vista?
O amor juvenil, visto e
descrito pelo narrador, acontece num parque, em meio ao verde das árvores.
02 – Observe estes trechos do 1º parágrafo:
- “Os
rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos,
pequenos carinhos, pequenos beijos”
- “São,
na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque [...] e as Momices
e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a
arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca há de saber a
quantos milênios remotam.”
a) O que a repetição da
palavra pequenos, no primeiro trecho, expressa sobre o relacionamento dos
jovens?
Expressa delicadeza, ternura.
b) Que figura de linguagem se
verifica em “na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque”?
Antítese.
c) Se os namorados são jovens,
como se pode explicar a afirmação de que suas brincadeiras dariam para escrever
um tratado sobre a arqueologia do amor?
Apesar de os namorados serem muito
jovem, as momices e brincadeiras deles se repetem há milhares de anos, já que
todo casal jovem apaixonado, independentemente da época, faz as mesmas coisas.
03 – Observe
que o 3º parágrafo se inicia por um travessão. Nele e no 4º parágrafo, o
narrador faz indagações e reflexões acerca do amor.
a) Com quem o narrador fala?
Fala consigo mesmo.
b) O que ele põe em dúvida?
Põe em dúvida a continuidade do amor
entre os jovens.
c) Que expressão usada pelo
narrador mostra que ele não se sente capaz de dar respostas a suas indagações?
A
expressão em vão.
04 – No
penúltimo parágrafo, o narrador esquece o casal e faz uma reflexão sobre as
relações amorosas das pessoas em geral: “É um tal milagre encontrar, nesse
infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado”.
a) Que metáfora expressa o
ponto de vista do narrador sobre os relacionamentos amorosos? Como você
interpreta?
Ele
emprega a metáfora “infinito labirinto de desenganos amorosos”. Tentar
encontrar o ser amado é como caminhar em um labirinto, pois muitas vezes as
pessoas se perdem nessa busca e não alcançam o objetivo.
b) O que justifica o emprego
da palavra milagre nesse contexto?
Encontrar o ser verdadeiramente amado é
um acontecimento extraordinário, incomum, pois os desencontros amorosos são
frequentes.
c) Considerando o texto quanto
a tema, tempo e espaço, assim como quanto ao seu caráter reflexivo, conclua: A
que gênero ele pertence?
Ao gênero crônica.
05 – Depois
de refletir sobre os relacionamentos amorosos, o narrador volta o olhar para a
sua bem-amada “como se nunca a tivesse visto antes” e exclama: “É ela, Deus do
céu, é ela”.
a) Por que o narrador tem a
sensação de descoberta ou de redescoberta da mulher amada?
A observação do casal de namorados e a
reflexão sobre o amor fazem com que o narrador tenha uma espécie de revelação,
isto é, passe a ver as coisas de modo diferente, mais intenso e profundo. Daí
reconhecer que a mulher amada é o milagre em sua vida.
b) Que palavras ou expressões
revelam o desejo do narrador de seu amor seja eterno?
“Gostaria que morrêssemos juntos e
fôssemos enterrados de mãos dadas” / “nossos olhos indecomponíveis ficassem
para sempre abertos, mirando muito além das estrelas”.
c) Interprete a última frase
do texto: O que os olhos podem ver “muito além das estrelas”?
Os olhos podem ver não apenas as
aparências, o que está ao alcance dos olhos, mas o interior da pessoa amada,
sua essência, o amor, o infinito.
me ajudou muitoo obg de coraçao
ResponderExcluirAmo esse texto! 💖
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