sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CRÔNICA: O AMOR POR ENTRE O VERDE - VINÍCIUS DE MORAES - COM GABARITO

CRÔNICA: O AMOR POR ENTRE O VERDE
                      Vinícius de Moraes


   Não é sem frequência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns treze anos, o corpo elástico metido nuns blue jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho de cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, dezesseis, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos, e ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espapaçam sua verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.
      Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar lhes os jogos de mão e misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição, encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios. Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir, e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num longo e meticuloso beijo.
      --- Que será --- pergunto-me eu em vão --- dessas duas crianças que tão cedo começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com os cabelos presos?
      E se prosseguirem se amando --- pergunto-me novamente em vão --- será que um dia se casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que se desviarão o olhar, pra pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?
      É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que frequentemente aquela que devia ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram.
      E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos, mirando muito além das estrelas.

                          Vinícius de Morais. Para viver um grande amor. 
                                                        José Olympio, 1989. P. 39-41.

Entendendo o texto:
01 – O texto narra uma cena do cotidiano presenciada pelo narrador.
           a) Qual é essa cena?
      Ele vê um casalzinho de adolescentes que sempre vem namorar sobre a pequena ponte de balaustrada branca do parque.

           b) De onde o narrador vê a cena?
      Ele vê a cena a partir de sua janela.

           c) Qual é o tempo de duração da cen vista pelo narrador?
      Alguns minutos.

           d) Que relação há entre o título do texto e a cena vista?
      O amor juvenil, visto e descrito pelo narrador, acontece num parque, em meio ao verde das árvores.

02 – Observe estes trechos do 1º parágrafo:
       - “Os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos”
       - “São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque [...] e as Momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca há de saber a quantos milênios remotam.”
            a) O que a repetição da palavra pequenos, no primeiro trecho, expressa sobre o relacionamento dos jovens?
       Expressa delicadeza, ternura.

            b) Que figura de linguagem se verifica em “na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque”?
       Antítese.

            c) Se os namorados são jovens, como se pode explicar a afirmação de que suas brincadeiras dariam para escrever um tratado sobre a arqueologia do amor?
     Apesar de os namorados serem muito jovem, as momices e brincadeiras deles se repetem há milhares de anos, já que todo casal jovem apaixonado, independentemente da época, faz as mesmas coisas.

03 – Observe que o 3º parágrafo se inicia por um travessão. Nele e no 4º parágrafo, o narrador faz indagações e reflexões acerca do amor.
            a) Com quem o narrador fala?
       Fala consigo mesmo.

            b) O que ele põe em dúvida?
       Põe em dúvida a continuidade do amor entre os jovens.

            c) Que expressão usada pelo narrador mostra que ele não se sente capaz de dar respostas a suas indagações?
         A expressão em vão.

04 – No penúltimo parágrafo, o narrador esquece o casal e faz uma reflexão sobre as relações amorosas das pessoas em geral: “É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado”.
           a) Que metáfora expressa o ponto de vista do narrador sobre os relacionamentos amorosos? Como você interpreta?
      Ele emprega a metáfora “infinito labirinto de desenganos amorosos”. Tentar encontrar o ser amado é como caminhar em um labirinto, pois muitas vezes as pessoas se perdem nessa busca e não alcançam o objetivo.

            b) O que justifica o emprego da palavra milagre nesse contexto?
       Encontrar o ser verdadeiramente amado é um acontecimento extraordinário, incomum, pois os desencontros amorosos são frequentes.

            c) Considerando o texto quanto a tema, tempo e espaço, assim como quanto ao seu caráter reflexivo, conclua: A que gênero ele pertence?
       Ao gênero crônica.

05 – Depois de refletir sobre os relacionamentos amorosos, o narrador volta o olhar para a sua bem-amada “como se nunca a tivesse visto antes” e exclama: “É ela, Deus do céu, é ela”.
            a) Por que o narrador tem a sensação de descoberta ou de redescoberta da mulher amada?
       A observação do casal de namorados e a reflexão sobre o amor fazem com que o narrador tenha uma espécie de revelação, isto é, passe a ver as coisas de modo diferente, mais intenso e profundo. Daí reconhecer que a mulher amada é o milagre em sua vida.

            b) Que palavras ou expressões revelam o desejo do narrador de seu amor seja eterno?
       “Gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas” / “nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos, mirando muito além das estrelas”.

            c) Interprete a última frase do texto: O que os olhos podem ver “muito além das estrelas”?
       Os olhos podem ver não apenas as aparências, o que está ao alcance dos olhos, mas o interior da pessoa amada, sua essência, o amor, o infinito.




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