sábado, 27 de janeiro de 2018

CRÔNICA: VIDA EM FAMÍLIA - CARLOS EDUARDO NOVAES - COM GABARITO

CRÔNICA: Vida em família
                Carlos Eduardo Novaes
        [...]

  Julinho provoca o pai que mal desviou o olhar do prato à sua chegada.
   A provocação dissimulada era uma das táticas preferidas de guerrilha familiar no confronto não-declarado com Alberto, em constante desacordo sobre sua forma de viver e pensar o mundo.
    O garoto permanecia ali, imóvel, expondo-se como um manequim de vitrine e nem Vera nem Alberto percebiam seus pés descalços.
    Entre dentadas e comentários tão triviais quanto o repasto, a mãe anunciou uma surpresa, mas antes que pudesse dizê-la, o filho agitou os dedos do pé, acenando para sua desatenção.

        — Você está sem sapatos, filho! Que houve?
        Julinho esboçou um sorriso sarcástico, agradecendo enfim pela observação, fixou o polegar esquerdo na palma da mão direita e girou os dedos no clássico gesto que significa “roubo”. Vera pulou da cadeira:
        — Meu Deus! Você foi assaltado!
        — De novo? — reagiu o pai, largando o osso e chupando os dedos.
        — Foi agora? Como? Onde? Fala! Diz!
        — O pivete me abordou ali na ciclovia da Lagoa e com uma faca nas mãos mandou que eu tirasse o tênis.
        — Tênis? Aquele tênis que eu trouxe dos Estados Unidos mês passado? – assombrou-se o pai. — Que custou uma fortuna...?
        O garoto concordou com a cabeça, sem dizer palavra, sem alargar os gestos, represando emoção. Era o terceiro assalto que sofria e, para quem acabara de ver o brilho de uma lâmina espetando-lhe as costelas, demonstrava uma tranquilidade irritante. Talvez por entender que os assaltos são parte da rotina da vida. Talvez por desconhecer o preço de um tênis Platinum, de série limitada.
        Julinho tornava-se espectador da sua própria cena. Enquanto os pais discutiam o melhor comportamento a seguir diante de um assaltante empunhando uma arma branca, ele revia seu algoz na telinha da imaginação.
        Uma visão parcial, encoberta pelas sombras da noite que não lhe permitiam distinguir outros traços além dos olhos verdes e a cara de lua cheia. O garoto já o percebera antes, no mesmo local, sempre sozinho, a olhar o céu, distraído demais para infundir temor aos passantes. Desta vez, o mulato alto e magro como Julinho fazia-se acompanhar por um bando de meninos maltrapilhos que, bem mais baixos, lembravam jogadores de um time infantil à volta de um treinador adulto. O garoto surpreendeu-se com a abordagem, é fato, mas muito mais com o comportamento do assaltante que parecia ensinar aos pirralhos o modo correto de praticar um assalto.
        — E vai ficar por isso mesmo? — a voz de Alberto adquiriu um tom de afronta.
        Julinho respondeu com um leve movimento de ombros, murmurando por entre os dentes: “Deixa pra lá, pai”. Foi o que faltava para Alberto pôr sua raiva em movimento:
        — Deixa pra lá? Você fala assim porque o dinheiro não sai do seu bolso. É por isso que a violência não diminui.
        Ninguém dá queixa. Ninguém faz nada. Todo mundo deixa pra lá! Eu não vou deixar! Eu não vou deixar! — e repetiu escandindo as sílabas:
        — Não vou deixar!
        O garoto ouviu-o impassível, sem autoridade para contestá-lo, mas Vera reagiu chamando o marido à razão:
        — Alberto! Você não vai sair por aí feito um maluco por causa de um par de tênis!
        — Podia ser um grampo! — esbravejou. — De hoje em diante, vou atrás do que é meu, seja lá o que for. Não aguento mais ser saqueado por essa bandidagem. Já foi carro, relógio, bolsa, rádio...
        Alberto ajeitou-se na cadeira e, assumindo ares de delegado de polícia, espetou o dedo indicador na mesa perguntando ao filho em que ponto da ciclovia exatamente ocorreu o assalto. Julinho preferiu baixar os olhos e continuar em silêncio, que ele conhecia muito bem o temperamento do pai e não queria vê-lo envolvido em mais violência. Alberto aguardou a resposta e, sem obtê-la, ergueu-se impetuoso:
        — Muito bem! Você não diz, mas eu vou descobrir. Vou à Polícia, à Interpol, ao Exército, onde for preciso, mas vou trazer esse tênis de volta ou não me chamo Alberto Calmon! De agora em diante, vai ser na lei do cão!
        Julinho olhou para os pés descalços e, por alguma razão, pensou no tênis, apenas um calçado para ele, talvez um pequeno sonho para o pivete. Estranho pensamento.
        [...]

Carlos Eduardo Novaes. O Imperador da Ursa Maior.
São Paulo: Ática, 2000. (Fragmento).


Vocabulário:
Repasto – refeição.
Algoz – aquele que trata outro com crueldade, carrasco.

Entendendo o texto:
01 – Julinho e o pai não se entendiam muito bem. Qual fato pode comprovar essa afirmação?
      Os pais não prestavam muita atenção nele, pois custaram a perceber que ele estava descalço, além de haver um clima de provocação entre o menino e o pai.

02 – Segundo o texto, a tensão familiar concentrava-se na relação entre Julinho e seu pai, Alberto. De que maneira Julinho provocava o pai?
      Ficava parado sem dizer uma palavra, como manequim de vitrine.

03 – Por que Alberto e o filho não se davam bem?
      Porque o pai parece ser autoritário e não sabe conversar e perguntar o que o filho tem e sente. No entanto, o pai se preocupa com o preço do objeto roubado.

04 – Apesar do susto, Julinho mantinha-se aparentemente calmo e ironizava a situação. Por que Julinho procurou não revelar suas emoções?
      Porque ele estava acostumado com os assaltos e não dava importância ao valor das coisas.

05 – O narrador descreve a tranquilidade do menino como 'irritante'. Ela era irritante para quem?
      Para o pai, pois tinha um temperamento mais explosivo.

06 – “Julinho tornava-se espectador da sua própria cena". De que cena ele estava sendo espectador?
      Da cena do assalto.

07 - Por que o narrador classifica o pensamento de Julinho como "estranho"?

      Porque parece que o ladrão tinha razão justificável para assaltar.

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