terça-feira, 16 de janeiro de 2018

TEXTO: A DANÇA - VOLTAIRE - COM GABARITO

Texto: A dança
                       Voltaire

        Sétoc precisava fazer uma viagem de negócios à ilha de Serendib; mas, estando no primeiro mês de seu casamento, que, como se sabe, é a lua-de-mel, não podia deixar sua mulher, nem sequer pensar que pudesse fazê-lo um dia: ele pediu a seu amigo Zadig que fizesse a viagem em seu lugar.
        — Pobre de mim! — lamentava-se Zadig. — Será preciso que eu aumente ainda mais a distância que há entre mim e minha bela Astartéia? Mas eu tenho de servir aos meus benfeitores. 
        Disse, chorou e partiu.
        Não precisou passar muito tempo em Serendib para ser visto como um homem extraordinário. Tornou-se o árbitro de todas as disputas entre os negociantes, o amigo dos sábios, o conselheiro daquele pequeno número de pessoas que querem conselhos. O rei quis vê-lo e ouvi-lo. Percebeu logo todo o valor de Zadig; confiou em sua sabedoria e fê-lo seu amigo. A familiaridade e a
estima do rei assustaram Zadig. Dia e noite ele pensava nos infortúnios que lhe tinham causado as atenções que recebera de Moabdar. “O rei gosta de mim”, pensava ele. “Não estarei perdido?” Contudo, não se podia furtar às amabilidades de Sua Majestade: porque, verdade seja dita, Nabussan, rei de Serendib, filho de Nussanab, filho de Nabassun, filho de Sanbusná, era um dos melhores príncipes da Ásia e, quando se falava com ele, era difícil não amá-lo.
        Esse bom príncipe era sempre louvado, enganado e roubado; era como se houvesse uma disputa para ver quem mais lhe pilhava os tesouros. O recebedor-geral da ilha de Serendib era o primeiro a fazer isso, sendo fielmente seguido pelos outros. O rei sabia disso: várias vezes já mudara o recebedor; mas não pudera mudar o modo já estabelecido de dividir as rendas do rei em duas partes desiguais, ficando sempre a menor para Sua Majestade e a maior para seus administradores.
        O rei Nabussan confiou seu problema ao sábio Zadig.
        — Vós, que conheceis tantas e tão belas coisas, por acaso não saberíeis me dizer como encontrar um tesoureiro que não me roube? — perguntou ele.
        — Certamente. Conheço uma forma infalível de encontrar um homem que tenha as mãos limpas — respondeu Zadig.
       O rei, encantado, abraçando-o, perguntou-lhe o que devia fazer para conseguir isso. 
        — Basta — disse Zadig — mandar que dancem todos aqueles que se candidatarem ao cargo de tesoureiro. Aquele que dançar com mais leveza será com toda certeza o homem mais honesto. 
        — Estais a zombar de mim — disse o rei. — Eis uma maneira muito estranha de escolher alguém para cuidar de minha fortuna. Ora! Quereis dizer que quem fizer o melhor entrechat será o tesoureiro mais íntegro e mais capaz? — perguntou o rei.
         — Eu não vos disse que será o mais capaz — retorquiu Zadig. — Mas vos asseguro que, sem sombra de dúvida, será o homem mais honesto.
        Zadig falava com tanta segurança que o rei supôs que ele tivesse algum dom sobrenatural para conhecer administradores de finanças.
       — Não gosto de coisas sobrenaturais — disse Zadig. — Sempre me desagradaram pessoas e livros ligados a milagres e prodígios; se Vossa Majestade permitir que eu faça a prova que proponho, haverá de se convencer de que meu segredo é a coisa mais simples e sem mistérios.
       Nabussan, rei de Serendib, espantou-se muito mais em ouvir que o segredo era simples do que se lhe tivessem apresentado como um milagre. 
        — Pois bem — disse ele. — Podeis fazer como vos aprouver.
        — Deixai que o faça — disse Zadig. — Vossa Majestade haverá de ganhar muito mais do que imagina.
        No mesmo dia, Zadig fez publicar, em nome do rei, que todos os que aspirassem ao cargo de recebedor-geral de Sua Graciosa Majestade Nabussan, filho de Nussanab, fossem, em trajes de seda leve, na primeira noite da lua do crocodilo, à antecâmara do rei. Lá compareceram sessenta e quatro pessoas. Trouxeram-se violinos para a sala contígua; estava tudo pronto para o baile; mas a porta do salão estava fechada e, para entrar lá, era preciso passar por uma pequena galeria, bastante escura. Um porteiro ficou encarregado de acompanhar cada candidato a essa passagem, onde eram deixados alguns instantes a sós.
        O rei, que já estava bem avisado, expusera todos os seus tesouros na galeria. Quando todos os candidatos haviam chegado ao salão, Sua Majestade ordenou que dançassem. Jamais se dançou de forma tão pesada e tão desajeitada. Todos mantinham a cabeça baixa, as costas curvadas, as mãos coladas ao corpo. 
        — Que gatunos! — dizia baixinho Zadig. Apenas um entre eles dançava com leveza, a cabeça levantada, o olhar seguro, os braços estendidos, o corpo ereto, os jarretes firmes. — Ah, que
homem honesto! Que homem bom! — dizia Zadig.
        O rei abraçou aquele bom dançarino, nomeou-o tesoureiro e todos os outros foram acusados e punidos com toda justiça: porque todos eles, no momento em que se encontravam sozinhos
no corredor, haviam enchido os bolsos e mal conseguiam andar. O rei se tomou de desgosto pela natureza humana, pelo fato de haver sessenta e três gatunos entre os sessenta e quatro dançarinos. A galeria escura foi chamada Corredor da Tentação. Se o caso se tivesse dado na Pérsia, esses sessenta e três senhores teriam sido empalados; em outros países, eles seriam submetidos a um processo cujo custo se elevaria ao triplo do valor roubado, que não haveria de voltar aos cofres do soberano; em um outro reino, eles teriam provado sua completa inocência, fazendo com que o dançarino mais lépido caísse em desgraça; em Serendib, foram condenados apenas a aumentar o tesouro público, porque Nabussan era muito complacente. 
        Era também muito reconhecido; ele deu a Zadig uma soma em dinheiro muito maior do que jamais um tesoureiro foi capaz de roubar ao rei, seu senhor. Zadig a usou para enviar mensageiros à Babilônia, que deviam se informar sobre o destino de Astartéia. A voz lhe tremeu ao dar essa ordem, o sangue refluiu ao coração, os olhos se turvaram, sua alma por pouco não o abandonou. O mensageiro partiu, Zadig viu-o embarcar; ele voltou para o palácio do rei sem enxergar ninguém, como se estivesse em seu quarto, pronunciando a palavra “amor”. 
        — Ah! O amor — disse o rei. — É justamente disso que se trata. Vós adivinhais o meu tormento. Sois um grande homem! Espero que me ensineis a conhecer uma mulher de suma virtude, como me fizestes encontrar um tesoureiro desinteressado.
       Zadig, caindo em si, prometeu ajudá-lo no amor como o fizera nas finanças, embora isso lhe parecesse uma coisa ainda mais difícil. 

Entendendo o texto:

01 – A ética é um conceito abstrato. Voltaire utilizou-se dessa história para falar a respeito desse conceito. O que seria um comportamento ético?
      Ser honesto, não roubar.

02 – Entre sessenta e quatro ladrões, havia um homem honesto. Esse fato indica a opinião de Voltaire a respeito do ser humano em relação à ética. Qual é a opinião indireta de Voltaire sobre isso?
      A maioria das pessoas não agem de acordo com a ética.

03 – Segundo o texto, a personagem Sétoc deveria fazer uma viagem de negócios à ilha de Serendib, mas pediu ao amigo Zadig para substituí-lo. A forma que Sétoc agiu foi de forma ética?
      Não, pois ele pediu algo que não seria capaz de fazer.

04 – Zadig logo foi reconhecido coo um homem sábio e honesto e ganhou a confiança das pessoas. Por que Zadig conquistou esse prestígio tão rapidamente?
      As pessoas só pensavam nelas, agindo de forma não ética, enquanto que ele agiu em favor dos outros.

05 – A fama de Zadig chegou até os ouvidos do rei, que logo quis conhecê-lo. Como se pode caracterizar a sociedade de Serendib, já que o próprio rei parecia admirado com a conduta de Zadig?

      Ele era uma pessoa incomum na sociedade, pois tinha qualidades diferenciadas.

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