quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

TEXTO: O SOFISMA DA ESPECIALIZAÇÃO - CLÁUDIO DE MOURA CASTRO - COM GABARITO

Texto: O SOFISMA DA ESPECIALIZAÇÃO


     Alguém disse que um especialista é uma pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. A frase é engraçadinha, porém errada. Cadê o especialista que só sabe de um assunto? Certamente, não está nos empregos mais cobiçados.
     Pensemos no caso dos cientistas. Noventa e nove vírgula nove por cento dos mortais não entendem suas publicações, sobretudo nas ciências naturais. Mas um cientista fez um primário e um secundário genérico, uma faculdade pouco especializada e os cursos de doutorado são bastante amplos e, quase sempre, multidisciplinares. Portanto, em seus vinte anos de estudos, relativamente pouco tempo foi concentrado em áreas especializadas. E mesmo estudando áreas especializadas, muito do proveito foi afiar a capacidade de manipular ideias. No fundo, o bom cientista é um grande generalista que, além disso, domina uma área específica. Os russos tinham um curso para engenheiros especializados em tintas com pigmento orgânico e outro para inorgânico. Mas se são bons engenheiros é porque passaram muitos anos adquirindo uma competência mais ampla para analisar problemas e pensar claro.
        É a maior capacidade de pensar de forma abrangente que faz de alguém um grande cientista e não um reles operador de laboratório. Robert Merton demonstrou que a diferença entre um prêmio Nobel e outros cientistas é sua capacidade de escolher o problema certo na hora certa. Portanto, não é o conhecimento especializado – por certo necessário na pesquisa e em muitas outras áreas – que conta, mas a combinação deste com sua série de competências generalizadas. Ou seja, todo especialista de primeira linha é também um generalista.
        Dentre as ocupações valorizadas e mais bem remuneradas, há duas categorias. A primeira é a dos cientistas, engenheiros e muitos outros profissionais cuja preparação requer o domínio de técnicas complexas e especializadas – além das competências “genéricas”. Ninguém vira engenheiro eletrônico sem longos anos de estudo. Mas pelo menos a metade das ocupações que requerem diploma superior exige conhecimentos específicos limitados. Essas ocupações envolvem administrar, negociar, coordenar, comunicar-se e por aí afora. Pode-se aprendê-las por experiência ou em cursos curtos. Mas somente quem dominou as competências genéricas trazidas por uma boa educação tem a cabeça arrumada de forma a aprendê-las rapidamente. Por isso, nessas ocupações há gente com todos os tipos de diploma. Nelas estão os graduados em economia, direito e dezenas de outras áreas. É tolo pensar que estão fora de lugar ou mal aproveitados, ou que se frustrou sua profissionalização, pois não a exercem. É interessante notar que as grandes multinacionais contratam “especialistas” para posições subalternas e, para boa parte das posições mais elevadas, pessoas com a melhor educação disponível, qualquer que seja o diploma.
        A profissionalização mais duradoura e valiosa tende a vir mais do lado genérico que do especializado. Entender bem o que leu, escrever claro e comunicar-se, inclusive em outras línguas, são os conhecimentos profissionais mais valiosos. Trabalhar em grupo e usar números para resolver problemas, pela mesma forma, é profissionalização. E quem suou a camisa escrevendo ensaios sobre existencialismo, decifrando Camões ou Shakespeare pode estar mais bem preparado para uma empresa moderna do que quem aprendeu meia dúzia de técnicas, mas não sabe escrever.
        A lição é muito clara: o profissional de primeira linha pode ou não ser um especialista, dependendo da área. Pode ou não ter a necessidade de conhecer as últimas teorias da moda. Mas não pode prescindir dessa “profissionalização genérica”, sem a qual será um idiota, cuspindo regras, princípios e números que não refletem um julgamento maduro do problema. Portanto, lembremo-nos: especialista não é quem sabe só de um assunto, e ser profissional não é apenas conhecer técnicas específicas. O profissionalismo mais universal é saber pensar, interpretar a regra e conviver com a exceção.

                                 CASTRO, Cláudio de Moura. Veja, 4 abr. 2001.

Entendendo o texto:

01 – A grande tese defendida pelo autor poderia ser resumida por qualquer uma das seguintes afirmações:
      - Quem não pensa de modo mais abrangente não é bom profissional;
      - Todo especialista de primeira linha é também um generalista.

02 – Ele apresenta ao leitor alguns argumentos para sustentar sua tese. Por exemplo:
a)   Discute as características da formação de um cientista e, afirma: “No fundo, o bom cientista é um grande generalista que, além disso, domina uma área específica”. Para sustentar essa afirmação, ele apresenta um argumento empírico. Qual?
       No 2º parágrafo, ele traz como argumento empírico a formação altamente técnica de engenheiros russos especializados em tintas (havia um curso para tintas com pigmentos orgânicos e outro para tintas com pigmentos inorgânicos). Mas, se eram bons engenheiros, isso se devia à formação ampla que recebiam.

b)   Em seguida, ele afirma: “É a maior capacidade de pensar de forma abrangente que faz de alguém um grande cientista e não um reles operador de laboratório”. E sustenta sua afirmação com um argumento de autoridade. Qual?
       No 3º parágrafo, o autor se sustenta na autoridade de Robert Merton, que demonstrou que a diferença entre um prêmio Nobel e outros cientistas é sua capacidade de escolher o problema certo na hora certa.

c)   Em alguns pontos do texto, ele faz referência a “empregos mais cobiçados” e “ocupações valorizadas”. Por que esses elementos tem força argumentativa no conjunto do texto?
       Porque é com o que as pessoas sonham.

03 – Cláudio de Moura Castro adota um tópico comum, mas, ao mesmo tempo, faz críticas a outros. Diz, por exemplo, que é tola uma certa crença social (pensar que está necessariamente fora de lugar ou mal aproveitado um profissional que está ocupando uma posição diretamente correlacionada ao diploma que tem).
a)   Que função argumentativa essa crítica tem no raciocínio que o autor desenvolve no seu texto?
      Ela reforça a tese do texto: o sabor genérico é indispensável para o bom profissional e não apenas uma especialização muito restrita.

b)   De que modo vai na mesma direção argumentativa a afirmação: “E quem suou a camisa escrevendo ensaios sobre existencialismo, decifrando Camões ou Shakespeare pode estar mais bem preparado para uma empresa moderna do que quem aprendeu meia dúzia de técnicas, mas não sabe escrever”?
      O domínio das técnicas só é de fato produtivo se o profissional tiver uma formação genérica que envolve, como fator básico, o domínio da escrita.

04 – Quais capacidades o autor menciona como componentes de uma formação generalista?
       Ele apresenta estas capacidades em vários parágrafos: competência mais ampla para analisar problemas e pensar claro (2º parágrafo), entender bem o que leu, escrever claro e comunicar-se, conhecer outras línguas, saber trabalhar em grupo e usar números para resolver problemas (5º parágrafo).



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