Texto: O SOFISMA DA ESPECIALIZAÇÃO
Alguém disse que um
especialista é uma pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. A frase
é engraçadinha, porém errada. Cadê o especialista que só sabe de um assunto?
Certamente, não está nos empregos mais cobiçados.
Pensemos no caso dos cientistas.
Noventa e nove vírgula nove por cento dos mortais não entendem suas
publicações, sobretudo nas ciências naturais. Mas um cientista fez um primário
e um secundário genérico, uma faculdade pouco especializada e os cursos de
doutorado são bastante amplos e, quase sempre, multidisciplinares. Portanto, em
seus vinte anos de estudos, relativamente pouco tempo foi concentrado em áreas
especializadas. E mesmo estudando áreas especializadas, muito do proveito foi
afiar a capacidade de manipular ideias. No fundo, o bom cientista é um grande
generalista que, além disso, domina uma área específica. Os russos tinham um
curso para engenheiros especializados em tintas com pigmento orgânico e outro
para inorgânico. Mas se são bons engenheiros é porque passaram muitos anos
adquirindo uma competência mais ampla para analisar problemas e pensar claro.
É a maior capacidade de
pensar de forma abrangente que faz de alguém um grande cientista e não um reles
operador de laboratório. Robert Merton demonstrou que a diferença entre um
prêmio Nobel e outros cientistas é sua capacidade de escolher o problema certo
na hora certa. Portanto, não é o conhecimento especializado – por certo
necessário na pesquisa e em muitas outras áreas – que conta, mas a combinação
deste com sua série de competências generalizadas. Ou seja, todo especialista
de primeira linha é também um generalista.
Dentre as ocupações
valorizadas e mais bem remuneradas, há duas categorias. A primeira é a dos
cientistas, engenheiros e muitos outros profissionais cuja preparação requer o
domínio de técnicas complexas e especializadas – além das competências
“genéricas”. Ninguém vira engenheiro eletrônico sem longos anos de estudo. Mas
pelo menos a metade das ocupações que requerem diploma superior exige
conhecimentos específicos limitados. Essas ocupações envolvem administrar,
negociar, coordenar, comunicar-se e por aí afora. Pode-se aprendê-las por
experiência ou em cursos curtos. Mas somente quem dominou as competências
genéricas trazidas por uma boa educação tem a cabeça arrumada de forma a
aprendê-las rapidamente. Por isso, nessas ocupações há gente com todos os tipos
de diploma. Nelas estão os graduados em economia, direito e dezenas de outras
áreas. É tolo pensar que estão fora de lugar ou mal aproveitados, ou que se
frustrou sua profissionalização, pois não a exercem. É interessante notar que
as grandes multinacionais contratam “especialistas” para posições subalternas
e, para boa parte das posições mais elevadas, pessoas com a melhor educação
disponível, qualquer que seja o diploma.
A profissionalização mais
duradoura e valiosa tende a vir mais do lado genérico que do especializado.
Entender bem o que leu, escrever claro e comunicar-se, inclusive em outras
línguas, são os conhecimentos profissionais mais valiosos. Trabalhar em grupo e
usar números para resolver problemas, pela mesma forma, é profissionalização. E
quem suou a camisa escrevendo ensaios sobre existencialismo, decifrando Camões
ou Shakespeare pode estar mais bem preparado para uma empresa moderna do que
quem aprendeu meia dúzia de técnicas, mas não sabe escrever.
A lição é muito clara: o
profissional de primeira linha pode ou não ser um especialista, dependendo da
área. Pode ou não ter a necessidade de conhecer as últimas teorias da moda. Mas
não pode prescindir dessa “profissionalização genérica”, sem a qual será um
idiota, cuspindo regras, princípios e números que não refletem um julgamento
maduro do problema. Portanto, lembremo-nos: especialista não é quem sabe só de
um assunto, e ser profissional não é apenas conhecer técnicas específicas. O
profissionalismo mais universal é saber pensar, interpretar a regra e conviver
com a exceção.
CASTRO, Cláudio de
Moura. Veja, 4 abr. 2001.
Entendendo o texto:
01 – A grande tese defendida pelo autor poderia ser resumida por
qualquer uma das seguintes afirmações:
- Quem não pensa de modo mais abrangente
não é bom profissional;
- Todo especialista de primeira linha é também um generalista.
02 – Ele apresenta ao leitor alguns argumentos para sustentar sua tese.
Por exemplo:
a) Discute as
características da formação de um cientista e, afirma: “No fundo, o bom
cientista é um grande generalista que, além disso, domina uma área específica”.
Para sustentar essa afirmação, ele apresenta um argumento empírico. Qual?
No 2º parágrafo, ele traz como argumento
empírico a formação altamente técnica de engenheiros russos especializados em
tintas (havia um curso para tintas com pigmentos orgânicos e outro para tintas
com pigmentos inorgânicos). Mas, se eram bons engenheiros, isso se devia à
formação ampla que recebiam.
b) Em seguida, ele
afirma: “É a maior capacidade de pensar de forma abrangente que faz de alguém
um grande cientista e não um reles operador de laboratório”. E sustenta sua
afirmação com um argumento de autoridade. Qual?
No 3º parágrafo, o autor se sustenta na
autoridade de Robert Merton, que demonstrou que a diferença entre um prêmio
Nobel e outros cientistas é sua capacidade de escolher o problema certo na hora
certa.
c) Em alguns pontos do
texto, ele faz referência a “empregos mais cobiçados” e “ocupações
valorizadas”. Por que esses elementos tem força argumentativa no conjunto do
texto?
Porque é com o que as pessoas sonham.
03 – Cláudio de Moura Castro adota um tópico comum, mas, ao mesmo tempo,
faz críticas a outros. Diz, por exemplo, que é tola uma certa crença social
(pensar que está necessariamente fora de lugar ou mal aproveitado um
profissional que está ocupando uma posição diretamente correlacionada ao
diploma que tem).
a) Que função
argumentativa essa crítica tem no raciocínio que o autor desenvolve no seu
texto?
Ela reforça a tese do texto: o sabor
genérico é indispensável para o bom profissional e não apenas uma
especialização muito restrita.
b) De que modo vai na
mesma direção argumentativa a afirmação: “E quem suou a camisa escrevendo
ensaios sobre existencialismo, decifrando Camões ou Shakespeare pode estar mais
bem preparado para uma empresa moderna do que quem aprendeu meia dúzia de
técnicas, mas não sabe escrever”?
O domínio das técnicas só é de fato
produtivo se o profissional tiver uma formação genérica que envolve, como fator
básico, o domínio da escrita.
04 – Quais capacidades o autor menciona como componentes de uma formação
generalista?
Ele
apresenta estas capacidades em vários parágrafos: competência mais ampla para
analisar problemas e pensar claro (2º parágrafo), entender bem o que leu,
escrever claro e comunicar-se, conhecer outras línguas, saber trabalhar em
grupo e usar números para resolver problemas (5º parágrafo).
Nenhum comentário:
Postar um comentário