Conto: Ciúme
Lygia Bojunga Nunes
Eu tinha 9 anos quando a gente se
encontrou: o Ciúme e eu.
Era verão. Eu dormia no mesmo quarto que a
minha irmã. A janela estava aberta.
De repente, sem nem saber direito se eu
estava acordada ou dormindo, eu senti direitinho que ele estava ali: entre a
cama da minha irmã e a minha. A noite não tinha lua nem tinha estrela; e quando
eu fui estender o braço para acender a luz, ele não quis:
“Me deixa assim no escuro.”
Que medo que me deu.
Senti ele chegando cada vez mais perto.
Fui me encolhendo.
“Pega a minha irmã” eu falei. “Ali, ó,
na outra cama. Eu sou pequena e ela já fez 14 anos, pega ela. Ela é bonita e eu
sou feia; o meu pai, a minha mãe, a minha tia, todo o mundo prefere ela: por que
você não prefere também?”
Mas o Ciúme não queria saber da minha
irmã, e eu já estava tão espremida no canto (a minha cama era contra a parede)
que eu não tinha mais pra onde fugir, então eu pedia e pedia de novo:
“Ela é a primeira da turma e eu tenho
horror de estudar, olha, ela tá logo ali; e ela é tão inteligente pra
conversar! Ela diz poesia, ela sabe dançar, o meu pai tá ensinando inglês e
francês pra ela e diz que pra mim não vale a pena porque eu não presto atenção,
então você pensa que eu não vejo o jeito que o meu pai olha pra ela quando todo
o mundo diz que encanto de moça que é a sua filha mais velha? Pega, pega, PEGA
ela!”
“Não. Eu quero é você.”
E o Ciúme disse aquilo com uma voz tão
calma que eu fui me acalmando. E o medo meio que foi passando.
“Bom” eu acabei suspirando “pelo menos
tem alguém que gosta mais de mim do que dela.”
E aí o vento do mar entrou pela janela,
soprou o Ciúme e apagou ele feito vela.
NUNES, Lygia Bojunga.
A troca e a tarefa. In Tchau.
Rio de Janeiro: Agir,
1985. p.51.
Entendendo o conto:
01 – Pela leitura do texto,
o que leva você a garantir que a narração não é relato de uma “história
verdadeira”, um relato de vida?
Mesmo sem
considerar as características do objeto livro, o título do livro e do conto
indicariam mais ficção. A personificação do sentimento – Ciúme, com maiúscula é
decisiva.
02 – O narrador pode ser ou
não personagem da história. Qual é o caso, na narrativa anterior?
O narrador é a
personagem principal.
03 – A opção por um ou outro
tipo de narrador traz procedimentos e resultados diferentes para a história.
a)
Em que pessoa a história é narrada?
A narrativa se faz em 1ª pessoa: ...a gente se encontrou: o Ciúme e
eu.
b) Essa escolha torna a narrativa mais ou
menos subjetiva? Justifique sua resposta, com passagens do texto.
Torna o texto mais subjetivo, com os
fatos trabalhados do ponto de vista da personagem. O que ocorre tem de ser
filtrado por ela.
04 – Indique que outras
personagens aparecem nesse trecho e qual a sua importância para a narrativa.
Aparecem os
familiares: irmão, mãe, tia, e principalmente o pai. E o Ciúme.
05 – Por meio de que
argumento ou expressões a narradora cria um ambiente indefinido, propício ao aparecimento
do Ciúme?
Estava escuro
(como se ela não pudesse “ver” com clareza, e ela não sabia se estava dormindo
ou não. É como se ela antecipasse a possibilidade de um sonho.
06 – Indiquem os elementos
que marcam a passagem do tempo.
De repente;
quando eu quis acender a luz; então eu pedia e pedia de novo. E o vento disse
aquilo...; E o medo foi passando; E aí. (A própria repetição da conjunção
aditiva e cria um desdobramento temporal.)
07 – Por que o Ciúme aparece
entre as duas camas?
O sentimento era uma ligação entre a menina e a irmã.
08 – Por que, quanto mais a
narradora fala, mais o Ciúme quer ficar com ela, e não com a irmã?
As falas todas da
menina eram representações do Ciúme.
09 – Por meio de que recursos, usados pelo
autor, você sente o medo da menina?
O uso dos
verbos/adjetivos (tão espremida no canto). Mas também pela repetição do “pega
ela”. Um deles está todo em maiúsculas.
Li esse livro na minha infância, e hoje aos 34 anos me recordo com clareza. Muito bom.
ResponderExcluirlivro mto bom
ResponderExcluirFiz a leitura desse conto para os meus alunos porque achei a narração super criativa para descrever uma criança com ciúme e, além disso, há muitos elementos de coesão que podem ser observados pelos leitores.
ResponderExcluirsempre levo este texto para sala de aula para fazer com que os alunos discutam e descubram que esse sentimento é universal. Peço que redijam sobre seus ciúmes. São incríveis os textos apresentados. Discutimos o tema em sala de aula. Muito produtivo.
ResponderExcluir