PARÁBOLA DO
CÁGADO VELHO
Houve um tempo anterior a tudo, há sempre, não é mesmo?
Munakazi era dum kimbo próximo, há duas horas de marcha na chana para ocidente.
Era um kimbo mais pequeno e mais pobre, retirado dos caminhos principais que
cruzam a Munda. Ulume reparou nela em noite de festa. A rapariga estava
sentada com outras à volta da fogueira, esperando aquecer dos tambores para o
ritmo se soltar da pele dos ngomas e entrar nas pernas e mãos que não mais
parariam. Os pés dela o atraíram. Ela sentava de joelhos unidos, mas um pé
olhando o outro, os dedos grandes levantados. Dos pés subiu para os olhos
iluminados pelo clarão da fogueira, grandes olhos melancólicos de antílope.
As maçãs do rosto ligeiramente salientes, os lábios carnudos desenhados. Era
bela, Munakazi. No próprio riso, na ansiedade da dança iminente, uma ponta de
melancolia. Não pôde mais separar Munakazi e a melancolia. Ela falava, ria com
as outras, mas uma parte estava dentro dela própria, sempre.
Ulume era bem mais velho, casado com a Muari e tendo filhos já grandes, talvez
mais velhos que a rapariga. A partir da noite em que seus olhos caíram sobre os
pés convergentes de Munakazi, se encontraram mais vezes nas
festas ou cerimônias rituais e ele a fitava com agrado.
Apenas.
Mas sucedeu a cena da granada, como um aviso dos antepassados. A granada vinha
no ar e ele deitado nomeio do talude. A granada caiu a dois metros.
Placado ao solo, encostou a cabeça na terra e pensou vou morrer. Não havia
tempo para o medo. Olhou o céu pela última vez e então a imagem de Munakazi se
recortou, nítida, na luminosidade do dia. Uma saudade imensa, saudade do que
não acontecera. Ouviu a explosão, mais nada, mas continuou a ver Munakazi
sorrindo para ele e lhe segredando porque não me procuraste, seria tua. E
sofreu a perda definitiva de Munakazi. Nada sentia no corpo, não tinha sensações,
só saudade era dolorosa.
O sentimento de perda acompanhou-o, mesmo quando se apercebeu de continuar
vivo. Difícil foi passar o atordoamento pela explosão tão próxima, recuperar o
domínio dos sentidos, difícil foi compreender como não morrera. Mas o
atordoamento e a perplexidade não tinham peso em face do peso
de mil Mundas da saudade de Munakazi.
Decidiu ali, sem ainda saber quanto estava ferido, Munakazi tem de ser minha.
Não fazia senão seguir a sabedoria vinda de muito atrás, pois se alguém que
pensa morrer tem saudade de uma mulher, então é inútil lutar contra esse amor
avassalador, o mais sensato é conviver com ele. Sabedorias antigas trazidas por
todos os cágados do mundo. E o Ulume respeitava os ensinamentos dos
antepassados, resguardados nas mahambas que se enterram à entrada dos kimbos ou
nas encruzilhadas dos caminhos, como respeitava os desejos dos espíritos que se
forma como a areia se espalhava pelo chão e na ordem com que os objetos se
posicionavam no cesto de adivinhação do tahi da Luanda. Nunca os seus
lábios proferiram qualquer blasfêmia contra os antepassados,
ou contra o espírito que agitava o vento. Como pode então desprezar ou mesmo
ignorar o sinal evidente que a granada lhe deu? A sua decisão de ter Munakazi
era irrevogável, ele sabia, e nós a partir de agora como vamos
esquecer?
Pepetela.
Parábola do cágado velho. Rio de Janeiro.
Nova
Fronteira, 2005. p. 11-12.
Entendendo
o texto:
01 – Ao lermos
o texto de Pepetela, nota-se a riqueza poética presente nas descrições, nas
reflexões e no sentimento da personagem Ulume. A partir da leitura e de suas
observações, escolha uma palavra, expressão ou frase,
presente ou não no texto, que sintetize a ideia
principal de cada um dos cinco parágrafos.
Resposta
pessoal.
02 – Como
é caracterizado o ambiente em que se passa o
acontecimento com Ulume?
Parece ser
uma comunidade distante de um centro principal, mais pobre e menor.
03 – A
partir dessa caracterização e de sua observação sobre o ambiente, pode-se
afirmar que essa história se passa no Brasil? Por quê?
NÃO. Pelo
nomes e pela situação narrada, é provável que a ação se passe em outro país.
04 – O
que desencadeou a ação de Ulume em procurar Munakazi para declarar-lhe o seu
amor?
A explosão
da granada e a possibilidade de morrer sem ter declarado o seu amor.
05
– Descreva, com suas palavras, a forma como Ulume vê a
imagem de Munakazi, na cena da granada.
Resposta pessoal.
06 –
Releia o texto e anote todas as referências que identificam as
crenças africanas.
É provável que os alunos façam referência a alguns elementos presentes no
trecho a seguir: “E o Ulume respeitava os ensinamentos dos antepassados,
resguardados nas mahambas... nas entranhas dos cabritos ou na forma como a
areia se espalhava pelo chão e na ordem com que os objetos se posicionavam no
cesto de adivinhação do tahi da Luanda.”
07 – Que
estratégia você utilizou para conseguir responder a questão 6?
O aluno pode fazer referência ao que ele observou a partir dos seus
conhecimentos sobre as crenças africanas, conhecidas e/ou praticadas em várias
partes do Brasil.
08 –
Releia o final da cena:
Como pôde então desprezar ou mesmo ignorar o sinal evidente que a granada lhe
deu? A sua decisão de ter Munakazi era irrevogável, ele sabia, e nós a partir
de agora como vamos esquecer?
a) O que você interpretou dessa
mensagem?
Resposta pessoal.
b) De que forma o leitor é convidado
a participar da aventura de Ulume?
No momento em que o narrador inclui o
leitor como um conhecedor da história de Ulume e afirma ser impossível
esquecê-la. Supõe-se, nesse caso, uma continuidade da leitura do romance.
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