segunda-feira, 26 de março de 2018

PARÁBOLA DO CÁGADO VELHO - PEPETELA - COM GABARITO

PARÁBOLA DO CÁGADO VELHO


        Houve um tempo anterior a tudo, há sempre, não é mesmo?
        Munakazi era dum kimbo próximo, há duas horas de marcha na chana para ocidente. Era um kimbo mais pequeno e mais pobre, retirado dos caminhos principais que cruzam a Munda. Ulume reparou nela em noite de festa. A rapariga estava sentada com outras à volta da fogueira, esperando aquecer dos tambores para o ritmo se soltar da pele dos ngomas e entrar nas pernas e mãos que não mais parariam. Os pés dela o atraíram. Ela sentava de joelhos unidos, mas um pé olhando o outro, os dedos grandes levantados. Dos pés subiu para os olhos iluminados pelo clarão da fogueira, grandes olhos melancólicos de antílope. As maçãs do rosto ligeiramente salientes, os lábios carnudos desenhados. Era bela, Munakazi. No próprio riso, na ansiedade da dança iminente, uma ponta de melancolia. Não pôde mais separar Munakazi e a melancolia. Ela falava, ria com as outras, mas uma parte estava dentro dela própria, sempre.
        Ulume era bem mais velho, casado com a Muari e tendo filhos já grandes, talvez mais velhos que a rapariga. A partir da noite em que seus olhos caíram sobre os pés convergentes de Munakazi, se encontraram mais vezes nas festas ou cerimônias rituais e ele a fitava com agrado. Apenas.
        Mas sucedeu a cena da granada, como um aviso dos antepassados. A granada vinha no ar e ele deitado nomeio do talude. A granada caiu a dois metros. Placado ao solo, encostou a cabeça na terra e pensou vou morrer. Não havia tempo para o medo. Olhou o céu pela última vez e então a imagem de Munakazi se recortou, nítida, na luminosidade do dia. Uma saudade imensa, saudade do que não acontecera. Ouviu a explosão, mais nada, mas continuou a ver Munakazi sorrindo para ele e lhe segredando porque não me procuraste, seria tua. E sofreu a perda definitiva de Munakazi. Nada sentia no corpo, não tinha sensações, só saudade era dolorosa.
        O sentimento de perda acompanhou-o, mesmo quando se apercebeu de continuar vivo. Difícil foi passar o atordoamento pela explosão tão próxima, recuperar o domínio dos sentidos, difícil foi compreender como não morrera. Mas o atordoamento e a perplexidade não tinham peso em face do peso de mil Mundas da saudade de Munakazi.
       Decidiu ali, sem ainda saber quanto estava ferido, Munakazi tem de ser minha. Não fazia senão seguir a sabedoria vinda de muito atrás, pois se alguém que pensa morrer tem saudade de uma mulher, então é inútil lutar contra esse amor avassalador, o mais sensato é conviver com ele. Sabedorias antigas trazidas por todos os cágados do mundo. E o Ulume respeitava os ensinamentos dos antepassados, resguardados nas mahambas que se enterram à entrada dos kimbos ou nas encruzilhadas dos caminhos, como respeitava os desejos dos espíritos que se forma como a areia se espalhava pelo chão e na ordem com que os objetos se posicionavam no cesto de adivinhação do tahi da Luanda. Nunca os seus lábios proferiram qualquer blasfêmia contra os antepassados, ou contra o espírito que agitava o vento. Como pode então desprezar ou mesmo ignorar o sinal evidente que a granada lhe deu? A sua decisão de ter Munakazi era irrevogável, ele sabia, e nós a partir de agora como vamos esquecer?

                   Pepetela. Parábola do cágado velho. Rio de Janeiro.
                                                         Nova Fronteira, 2005. p. 11-12.

Entendendo o texto:
01 – Ao lermos o texto de Pepetela, nota-se a riqueza poética presente nas descrições, nas reflexões e no sentimento da personagem Ulume. A partir da leitura e de suas observações, escolha uma palavra, expressão ou frase, presente ou não no texto, que sintetize a ideia principal de cada um dos cinco parágrafos.
     Resposta pessoal.

02 – Como é caracterizado o ambiente em que se passa o acontecimento com Ulume?
     Parece ser uma comunidade distante de um centro principal, mais pobre e menor.

03 – A partir dessa caracterização e de sua observação sobre o ambiente, pode-se afirmar que essa história se passa no Brasil? Por quê?
     NÃO. Pelo nomes e pela situação narrada, é provável que a ação se passe em outro país.

04 – O que desencadeou a ação de Ulume em procurar Munakazi para declarar-lhe o seu amor?
     A explosão da granada e a possibilidade de morrer sem ter declarado o seu amor.

05 – Descreva, com suas palavras, a forma como Ulume vê a imagem de Munakazi, na cena da granada.
     Resposta pessoal.

06 – Releia o texto e anote todas as referências que identificam as crenças africanas.
     É provável que os alunos façam referência a alguns elementos presentes no trecho a seguir: “E o Ulume respeitava os ensinamentos dos antepassados, resguardados nas mahambas... nas entranhas dos cabritos ou na forma como a areia se espalhava pelo chão e na ordem com que os objetos se posicionavam no cesto de adivinhação do tahi da Luanda.”

07 – Que estratégia você utilizou para conseguir responder a questão 6?
     O aluno pode fazer referência ao que ele observou a partir dos seus conhecimentos sobre as crenças africanas, conhecidas e/ou praticadas em várias partes do Brasil.

08 – Releia o final da cena:
       Como pôde então desprezar ou mesmo ignorar o sinal evidente que a granada lhe deu? A sua decisão de ter Munakazi era irrevogável, ele sabia, e nós a partir de agora como vamos esquecer?
     a) O que você interpretou dessa mensagem?
      Resposta pessoal.

     b) De que forma o leitor é convidado a participar da aventura de Ulume?
      No momento em que o narrador inclui o leitor como um conhecedor da história de Ulume e afirma ser impossível esquecê-la. Supõe-se, nesse caso, uma continuidade da leitura do romance.


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