quarta-feira, 21 de março de 2018

CRÔNICA: FALA, AMENDOEIRA - OUTONEAR(21 DE MARÇO)- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE- COM GABARITO

CRÔNICA: FALA, AMENDOEIRA
                      Carlos Drummond de Andrade
   
        Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista deparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes.  Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
        Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e, ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
        Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador de seu azedinho. É como se o cronista, lhe perguntasse – Fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
        --- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
        --- E vais outoneando sozinha?
        --- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
        --- Somos todos assim.
        --- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
        --- Não me entristeças.
        --- Não, querido, sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-se com dignidade, meu velho.

(Carlos Drummond de Andrade)

Entendendo o texto:
01 – As palavras remoto (primeiro parágrafo), afetar (segundo parágrafo) e ostentar (terceiro parágrafo) significam, no texto, respectivamente:
A) (  ) longínquo, afeiçoar, alardear;
B) (  ) distante, distrair, mostrar;
C) (X) antigo, incomodar, exibir;
D) (  ) distraído, aparentar, ornamentar;

02 – Equinócio (quarto parágrafo) significa:
A) (  ) equívoco;
B) (X) ponto de órbita da terra onde se registra igual duração do dia e da noite;
C) (  ) mancha escura que aparece de vez em quando no céu;
D) (  ) que tem poder igual;

03 – Em “precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes” (passagem situada no segundo parágrafo), o autor refere-se:
A) (  ) à fome dos cães que comem as amêndoas da amendoeira;
B) (X) ao hábito que os cães têm de urinar em postes ou troncos de árvore;
C) (  ) aos cães vira-latas que, famintos, comem as folhas de amendoeira;
D) (  ) à precisão com que os humildes cãezinhos demonstram ao andar;

04 – Destaque o item que melhor caracteriza o “ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”, situado no primeiro parágrafo:
A) (  ) desenhista que só se inspira na natureza;
B) (  ) escritor que só escreve sobre a natureza;
C) ( ) pintor de paisagens;
D) (X) autor que escreve sobre temas da época em que vive;

05 – Quando o cronista, referindo-se à árvore escreveu “fala, amendoeira”, no terceiro parágrafo:
A) (  ) cometeu um erro porque árvore não fala;
B) (  ) estava delirando;
C) (X) usou um recurso de estilo atribuindo à amendoeira qualidades humanas;
D) (  ) foi imperativo porque a árvore era sua;

06 – O trecho “frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva”, localizado no oitavo parágrafo, refere-se:
A) (X) aos escritos do autor;
B) (  ) aos frutos da amendoeira;
C) (  ) aos frutos colhidos na árvore à noitinha;
D) (  ) ao trabalho dos agricultores;

07 – Ao usar a passagem “Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais”, quis o autor demonstrar:
A) (  ) que a árvore plantada à sua porta é um bem pessoal;
B) (X) carinho pela árvore que está plantada em frente à sua porta e que a considera como sua;
C) (  ) que ia iniciar uma descrição da árvore que está plantada em frente à sua porta;
D) (  ) que não permitirá nunca que a árvore seja retirada da frente de sua porta;

08 – As expressões anjo vegetal (primeiro parágrafo) e árvore-da-guarda (décimo parágrafo):
A) (  ) são arcaicas;
B) (  ) atestam os erros comuns no autor;
C) (  ) revelam o descuido do autor no uso da Língua Portuguesa;
D) (X) são criadas pelo autor pela associação com a expressão anjo-da-guarda;

09 – Destaque o item que NÃO corresponde à crônica lida:
A) (  ) o autor espiritualizou a amendoeira atribuindo-lhe sentimentos humanos;
B) (  ) o autor compara, na crônica, seu envelhecer com o da amendoeira;
C) (X) a ideia central da crônica é a descrição dos efeitos do outono sobre as amendoeiras;
D) (  ) a amendoeira com que o autor “conversa” demonstrou sabedoria e bom senso;

10 – Destaque o item que encerra a ideia central, a mensagem, enviada pelo cronista:
A) ( ) descuido das autoridades que permitiam a permanência da amendoeira naquele local;
B) (  ) reverencia a amendoeira que considerava sua;
C) (X) aceitação do envelhecimento com serenidade;
D) (  ) engrandecimento do outono;


3 comentários:

  1. Amo Carlos Drumond de Andrade. Mineiro como eu! Sinto muito meu querido amigo, mas tenho tido muita dificuldade em outoniizar-me com DIGNIDADE!

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  2. Texto maravilhoso! Obrigada por disponibilizar!

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