CRÔNICA: FALA,
AMENDOEIRA
Carlos Drummond de Andrade
Esse ofício de rabiscar sobre as coisas
do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não
presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista deparou no
firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de
névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões.
Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que
ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições
mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá
está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua
vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada
aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a
molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de
dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta
sua barraca, e, ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo
tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra,
que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há
longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras
precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa
ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa
gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição,
depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam seu esforço, e também
elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o
ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador de seu
azedinho. É como se o cronista, lhe perguntasse – Fala, amendoeira – por que
fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore
pareceu explicar-lhe:
--- Não vês? Começo a outonear. É 21 de
março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu
dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
--- E vais outoneando sozinha?
--- Na medida do possível. Anda tudo
muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma
antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me
fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
--- Somos todos assim.
--- Os homens, não. Em ti, por exemplo,
o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu
trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos
numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara
que o outono é mais estação da alma que da natureza.
--- Não me entristeças.
--- Não, querido, sou tua
árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize
com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu
definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma
coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-se
com dignidade, meu velho.
(Carlos
Drummond de Andrade)
Entendendo o texto:
01 – As palavras
remoto (primeiro parágrafo), afetar (segundo parágrafo) e ostentar (terceiro
parágrafo) significam, no texto, respectivamente:
A) ( ) longínquo, afeiçoar,
alardear;
B) ( ) distante, distrair,
mostrar;
C) (X) antigo, incomodar, exibir;
D) ( ) distraído,
aparentar, ornamentar;
02 – Equinócio (quarto parágrafo) significa:
A) ( ) equívoco;
B) (X)
ponto de órbita da terra onde se registra igual duração do dia e da noite;
C) ( ) mancha escura que
aparece de vez em quando no céu;
D) ( ) que tem poder igual;
03 – Em “precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes” (passagem situada no segundo parágrafo), o autor refere-se:
A) ( ) à fome dos cães que
comem as amêndoas da amendoeira;
B) (X) ao
hábito que os cães têm de urinar em postes ou troncos de árvore;
C) (
) aos cães vira-latas que, famintos, comem as folhas de amendoeira;
D) (
) à precisão com que os humildes cãezinhos demonstram ao andar;
04 – Destaque o item que melhor caracteriza o “ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”, situado no primeiro parágrafo:
A) ( ) desenhista que só se
inspira na natureza;
B) ( ) escritor que só
escreve sobre a natureza;
C) ( ) pintor de paisagens;
D) (X) autor que escreve sobre
temas da época em que vive;
05 – Quando o cronista, referindo-se à árvore escreveu “fala, amendoeira”, no terceiro parágrafo:
A) ( ) cometeu um erro
porque árvore não fala;
B) ( ) estava delirando;
C) (X) usou
um recurso de estilo atribuindo à amendoeira qualidades humanas;
D) ( ) foi imperativo
porque a árvore era sua;
06 – O trecho “frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva”, localizado no oitavo parágrafo, refere-se:
A) (X) aos escritos do autor;
B) ( ) aos frutos da
amendoeira;
C) ( ) aos frutos colhidos
na árvore à noitinha;
D) ( ) ao trabalho dos
agricultores;
07 – Ao usar a passagem “Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais”, quis o autor demonstrar:
A) ( ) que a árvore
plantada à sua porta é um bem pessoal;
B) (X)
carinho pela árvore que está plantada em frente à sua porta e que a considera
como sua;
C) (
) que ia iniciar uma descrição da árvore que está plantada em frente à
sua porta;
D) (
) que não permitirá nunca que a árvore seja retirada da frente de sua
porta;
08 – As expressões anjo vegetal (primeiro parágrafo) e árvore-da-guarda (décimo parágrafo):
A) ( ) são arcaicas;
B) ( ) atestam os erros
comuns no autor;
C) ( ) revelam o descuido
do autor no uso da Língua Portuguesa;
D) (X) são
criadas pelo autor pela associação com a expressão anjo-da-guarda;
09 – Destaque o item que NÃO corresponde à crônica lida:
A) (
) o autor espiritualizou a amendoeira atribuindo-lhe sentimentos humanos;
B) (
) o autor compara, na crônica, seu envelhecer com o da amendoeira;
C) (X) a
ideia central da crônica é a descrição dos efeitos do outono sobre as
amendoeiras;
D) (
) a amendoeira com que o autor “conversa” demonstrou sabedoria e bom
senso;
10 – Destaque o item que encerra a ideia central, a mensagem, enviada pelo cronista:
A) ( )
descuido das autoridades que permitiam a permanência da amendoeira naquele
local;
B) ( ) reverencia a
amendoeira que considerava sua;
C) (X) aceitação do envelhecimento
com serenidade;
D) ( ) engrandecimento do
outono;
muito interessante!!! gostei...
ResponderExcluirAmo Carlos Drumond de Andrade. Mineiro como eu! Sinto muito meu querido amigo, mas tenho tido muita dificuldade em outoniizar-me com DIGNIDADE!
ResponderExcluirTexto maravilhoso! Obrigada por disponibilizar!
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