Texto: O
soldado amarelo
Graciliano Ramos
[...] Desembaraçou o cabresto, puxou o
fação, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que interrompiam a passagem.
Tinha feito um estrago feio, a terra se
cobria de palmas espinhosas. Deteve-se, percebendo rumor de garranchos,
voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à
cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo
durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais
tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. [...]
O soldado, magrinho, enfezadinho,
tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas
os músculos afrouxavam. [...]
Tinha medo e repetia que estava em
perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca
vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? Não pisava
os pés dos matutos, na feira? Não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.
Irritou-se. Por que seria que aquele safado
batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não
via? Fechou a cara. A ideia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo
nem precisava fação, bastavam as unhas. Agitando os chocalhos e os látegos,
chegou a mão esquerda, grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se
encostou a uma catingueira, o infeliz teria caído.
Fabiano pregou nele os olhos
ensanguentados, meteu o facão na bainha. Podia mata-lo com as unhas. Lembrou-se
da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava
dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo? O rosto de
Fabiano contraía-se, medonho, mais feio que um focinho. Hem? Estava certo?
Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguém. Por quê? Sufocava-se, as
rugas na testa aprofundavam-se, os pequenos olhos abriam-se, escondia-se por
trás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. [...] Durante um
minuto, a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que
recuperou a força e avançou para o inimigo.
A raiva cessou, os dedos que feriam a
palma descerraram-se – e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo
amolecido.
Aquela coisa arriada e achacada metia
as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de
saúde e muque, estava certo. Enfim, apanhar do governo não é desfeita, e
Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo... Soltou
uns grunhidos. Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se tinha
receio de empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as
pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria
pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles? Não iria. [...]
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do
polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o
resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente
que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza
fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não
valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacilou e coçou a testa. Havia muitos
bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se inquieto. Vendo-o acanalhado
e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho.
E Fabiano tirou o chapéu de couro.
Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e
ensinou o caminho ao soldado amarelo.
Graciliano Ramos. Vidas secas. São Paulo:
Record,
1982, p. 99-107.
Interpretação do texto:
01 – Qual foi a primeira
reação de Fabiano ao encontrar o soldado amarelo?
Fabiano baixou a arma. Aquilo durou um
segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o
amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado.
02 – Fabiano tinha certeza
do que deveria fazer? Como conclui-se isso?
Ele não tinha certeza, tinha vontade de
levantar o facão, mas tinha medo e repetia que estava em perigo.
Conclui-se pela frase: “Tinha vontade,
mas os músculos afrouxavam. [...].
03 – Como você entende a
frase dita por Fabiano: “Governo é governo”, logo após ele decidir ensinar o
caminho ao soldado amarelo?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Escreva, com suas
palavras, uma frase com o mesmo significado da frase da questão anterior.
Resposta pessoal
do aluno.
05 – Fabiano se sentia
injustiçado?
Sim. Foi preso
por desacato ao soldado amarelo... mesmo sem intenção.
06 – Observe a frase final
do capítulo: “Tirou o chapéu
de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado
amarelo”. As ações destacadas indicam quais sentimentos de Fabiano em relação
ao soldado amarelo? Explique.
Por ter complexo
de inferioridade, submete-se às autoridades e aos poderosos. E conformado com a
vida que ele e sua família têm e atribui isso ao destino.
07 – No texto, há várias
palavras pouco conhecidas, algumas típicas da região Nordeste. Mesmo sem
conhecer exatamente o significado de todas as palavras, podemos perceber o
significado de algumas delas, a partir do texto. Observe o trecho;
“[...] Desembaraçou o
cabresto, puxou o fação, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias
que interrompiam a passagem. [...] Tinha feito um estrago feio, a terra se
cobria de palmas espinhosas.
[...]”
As palavras destacadas são plantas,
animais ou pedras? justifique sua resposta.
São plantas:
- Quipás: É uma planta da família das
cactáceas, comum na caatinga nordestina.
- Palmatórias: Planta cactácea do Brasil
= Palmilha –do-Papa.
- Palmas: Palmeira ou espécime das
Palmáceas.
08 – No texto, há várias
palavras típicas da região Nordeste. Pesquise no dicionário as palavras abaixo:
- Garranchos: galho fino de árvore, graveto.
- Quengo: nuca, parte traseira da cabeça.
- Dunga: indivíduo corajoso, valentão.
- Mofino: infeliz, azarento, caipora.
- Látegos: açoite de corda ou de correia.
- Catingueira: nome de uma árvore.
- Arriada: zueira, sarro, uma brincadeira.
- Achacada: adoentado, enfermo, combalida.
- Acanalhado: acafajestado, próprio de canalha.
09 – No texto, há momentos
em que a linguagem focaliza as ações de Fabiano e as reações do soldado amarelo;
há passagens em que a linguagem parece brotar de dentro do personagem. Nestas,
o narrador continua presente, mas é como se registrasse apenas os pensamentos
que passavam pela cabeça do personagem! que recurso usou o narrador para
relatar o que a personagem pensava?
O narrador é
onisciente conta a história em 3ª pessoa e às vezes, permite certas
intromissões narrando em 1ª pessoa. Ele conhece tudo sobre o enredo, sobe o que
passa no íntimo das personagens, conhece suas emoções e pensamentos.
10 – “Agora dormia na bainha
rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma”. Por que o facão ora é uma
arma ora é um troço inútil?
Era arma quando
pensou em usá-la para ferir o soldado amarelo e um troço inútil quando a
guardou na bainha.
11 – Qual é o modo de
citação do discurso de Fabiano na frase “Governo é Governo”? Justifique sua
resposta.
O modo de citação
é o discurso direto, pois o discurso do personagem por meio do autor é feita de
modo objetivo e direto.
12 – Nas cinco últimas
linhas do texto, o narrador relata que Fabiano transformou em subserviência a
sua raiva contra o soldado amarelo – cite a passagem em que a própria fala de
Fabiano Traduz essa reação de submissão.
“Fabiano tirou
o chapéu de couro.
Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e
ensinou o caminho ao soldado amarelo.”
Na questão 11, ocorre discurso indireto livre.
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