sábado, 9 de agosto de 2025

CRÔNICA: ALÉM DO POSSÍVEL - FERREIRA GULLAR - COM GABARITO

 Crônica: Além do possível

              Ferreira Gullar

        Coisa fácil é julgar os outros e difícil é compreendê-los. Já afirmei, aqui, que quem admite a complexidade da realidade não pode ser radical nem sectário, pela simples razão de que, se os problemas são complexos, não serão resolvidos de uma penada. Alias, toda vez que se tenta fazê-lo, o desastre é inevitável. Mas a tendência mais comum é acreditar nas soluções milagrosas, mesmo porque aceitar que as coisas são complicadas custa muito, a não ser se se trata de nós mesmos. Claro, quando alguém nos acusa de ter agido mal, nossa resposta é sempre que não deu pra fazer melhor. “As coisas são complicadas”, a gente argumenta. E são mesmo, mas para os outros também.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjgrN-1FZnXiXRai23fdTszZuI8cMijpWOoQREPvnHih5DG6bes92ZnpEE73ij-4_HZf5c7-hTbpwx1kZ53hPU6_fQ2p5XNEUDVsG91x3Uy2424fA3VsFHn3Y6TqiHdqhqFSZTxXnR7z6Mca-22v2MbTIBxWioe4sKqnMmdTQzgqi40W1tW-Haq0vVFl3w/s1600/images.jpg


        Essas considerações vêm a propósito de uma conversa que tive com uma amiga muito querida, que vive sonhando. Devo esclarecer que nasci sob o signo de Virgo e sou, portanto, segundo a discutível astrologia, um tipo da terra, que vive pesando e medindo tudo, sem tirar os pés do chão. Tanto isso é verdade que muito raramente escrevo poesia, uma vez que a poesia nos obriga a voar. Essa é a razão por que, quando me perguntam se eu sou o poeta Ferreira Gullar, eu respondo: “Às vezes”. Dá então para entender a dificuldade que tenho de discutir certas coisas com uma pessoa do signo de Balança, por exemplo. Essa minha amiga é de Balança, isto é, não só hesita, sobe e desce, como flutua o tempo todo. E por isso, apesar do carinho que nos une, frequentemente nos desentendemos.

        -- Mas você não vê que isso é loucura, menina?

        -- Loucura? Só porque desejo ir pro deserto de Atacama catar múmia?

        -- Não sabia que você virou arqueóloga!

        -- E precisa ser arqueóloga pra ir catar múmia em Atacama?

        -- Precisa, sim. Mesmo porque aquilo deve ser um campo arqueológico, supervisionado pelo governo chileno. Não pode qualquer pessoa chegar lá e começar a cavucar.

        -- Você é um chato, ouviu! É por isso que não suporto os virginianos!

        -- Você não suporta é a realidade, meu amor!

        Pedi a conta e saímos amuados do restaurante. Ao chegar em casa, refleti.

        -- Que diabo tenho eu que ficar botando areia no sonho dos outros?

        E, como bom virginiano, aleguei que só falara aquilo temendo que ela entrasse numa fria, se tocasse para o deserto de Atacama e desse com os burros n’água.

        No dia seguinte, liguei para ela e me desculpei, expliquei-lhe que minha intenção era apenas alertá-la.

        -- E você pensa que eu sou maluca? Acha que eu ia mesmo me tocar para Atacama semana que vem?

        -- Temia que...

        -- O que você não entende é que tenho necessidade de sonhar, de imaginar coisas maravilhosas. Se as levarei à prática ou não, é secundário. Às vezes levo, como a viagem que fiz ao Himalaia e a outra, a Machu Picchu. Sei muito bem que fazer é mais difícil que sonhar, e por isso mesmo é que eu sonho.

        Caí em mim. Lembrei-me de uma coisa que sei e de que às vezes me esqueço: a vida não é só o possível. Sem o impossível, não se vai muito além da próxima esquina.

Ferreira Gullar. Além do possível. Em: Ferreira Gullar: crônicas para jovens. São Paulo: Global, 2011. p. 108-109 (Coleção Crônicas para jovens).

Fonte: Universos – Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 9º ano – Camila Sequetto Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª edição, 2015. p. 80-81.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal diferença de personalidade e visão de mundo entre o narrador e sua amiga, segundo o texto?

      O narrador, um virginiano, é pragmático e realista, "pesando e medindo tudo" e mantendo os "pés no chão". Ele foca no que é possível e concreto. Sua amiga, uma libriana, é sonhadora e flutuante. Ela tem a necessidade de imaginar coisas e idealizar, mesmo que não as realize de fato. Essa diferença de temperamentos é a causa de seus desentendimentos.

02 – Por que o narrador se identifica como poeta "às vezes"?

      Ele afirma que nasceu sob o signo de Virgem e se considera um tipo da terra, o que contrasta com a natureza da poesia, que exige "voar", ou seja, imaginar e sair da realidade concreta. Por isso, ele se vê como poeta apenas em momentos específicos, quando consegue se desprender de seu lado racional e pragmático para criar.

03 – Qual o motivo do desentendimento entre o narrador e sua amiga durante a conversa no restaurante?

      A amiga, sonhadora, expressa o desejo de ir ao deserto de Atacama catar múmias, uma ideia que o narrador considera "loucura" e irrealista. Ele, com sua visão pragmática, aponta as dificuldades práticas (a necessidade de ser arqueólogo, a supervisão governamental, etc.), enquanto ela enxerga a ideia como um simples sonho.

04 – Após a discussão, qual foi a reflexão do narrador?

      Depois de se desentender com a amiga, o narrador reflete sobre sua atitude e se questiona: "Que diabo tenho eu que ficar botando areia no sonho dos outros?". Ele percebe que sua tentativa de ser realista e alertá-la sobre os perigos foi, na verdade, uma intromissão desnecessária em algo que era apenas um sonho.

05 – Qual a principal lição que o narrador aprende com a amiga no final da crônica?

      A amiga explica que a necessidade de sonhar é essencial, e que a realização ou não do sonho é algo secundário. A partir disso, o narrador compreende que a vida não se resume apenas ao "possível" e que sem o "impossível" — ou seja, sem a capacidade de sonhar e idealizar — a vida se torna limitada e sem grandes avanços.

06 – Como a crônica "Além do Possível" trata a ideia de julgamento e compreensão?

      O texto começa afirmando que "coisa fácil é julgar os outros e difícil é compreendê-los". O narrador, ao longo da narrativa, exemplifica essa ideia. Inicialmente, ele julga o sonho da amiga como loucura, sem tentar entender a sua real importância para ela. Ao final, ele a compreende e se desculpa, percebendo que sua visão pragmática o impediu de enxergar o valor do "impossível".

07 – Qual o significado da última frase da crônica: "a vida não é só o possível. Sem o impossível, não se vai muito além da próxima esquina"?

      Essa frase sintetiza o aprendizado do narrador. Ela significa que a realidade concreta e pragmática (o possível) é apenas uma parte da vida. Para que haja progresso, inovação e até mesmo um sentido maior, é preciso sonhar, ter aspirações e idealizar (o impossível). Ficar preso apenas ao que é viável impede a pessoa de ir longe, de se aventurar e de transcender a rotina.

 

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