Crônica: Muito cedo para decidir – Fragmento
Rubem Alves
Gandhi se casou menino. Foi casado
menino. O contrato, foram os grandes que assinaram. Os dois nem sabiam direito
o que estava acontecendo, ainda não haviam completado 10 anos de idade, estavam
interessados em brincar. Ninguém era culpado: todo mundo estava sendo levado de
roldão pelas engrenagens dessa máquina chamada sociedade, que tudo ignora sobre
a felicidade e vai moendo as pessoas nos seus dentes. Os dois passaram o resto
da vida se arrastando, pesos enormes, cada um fazendo a infelicidade do
outro.

Vocês dirão que felizmente esse costume
nunca existiu entre nós: obrigar crianças que nada sabem a entrar por caminhos
nos quais terão de andar pelo resto da vida é coisa muito cruel e... burra!
Além disso já existe entre nós remédio para casamento que não dá certo.
[...]
Pois dentro de poucos dias vai
acontecer com nossos adolescentes coisa igual ou pior do que aconteceu com o
Gandhi e a mulher dele, e ninguém se horroriza, ninguém grita, os pais até
ajudam, concordam, empurram, fazem pressão, o filho não quer tomar a decisão,
refuga, está com medo. "Tomar uma decisão para o resto da minha vida, meu
pai! Não posso agora!" e o pai e a mãe perdem o sono, pensando que há algo
errado com o menino ou a menina, e invocam o auxílio de psicólogos para
ajudar...
Está chegando para muitos o momento
terrível do vestibular, quando vão ser obrigados por uma máquina, do mesmo
jeito como o foram Gandhi e Casturbai (era esse o nome da menina), a escrever
num espaço em branco o nome da profissão que vão ter.
Do mesmo jeito não: a situação é muito
mais grave. Porque casar e descasar são coisas que se resolvem rápido. Às
vezes, antes de se descasar de uma ou de um, a pessoa já está com uma outra ou
um outro. Mas, com a profissão não tem jeito de fazer assim.
Pra casar, basta amar.
Mas na profissão, além de amar tem de
saber. E o saber leva tempo pra crescer.
A dor que os adolescentes enfrentam
agora é que, na verdade, eles não têm condições de saber o que é que eles amam.
Mas a máquina os obriga a tomar uma decisão para o resto da vida, mesmo sem
saber.
Saber que a gente gosta disso e gosta
daquilo é fácil. O difícil é saber qual, dentre todas, é aquela de que a gente
gosta supremamente. Pois, por causa dela, todas as outras terão de ser
abandonadas. A isso que se dá o nome de "vocação"; que vem do latim,
vocare, que quer dizer "chamar". É um chamado, que vem de dentro da
gente, o sentimento de que existe alguma coisa bela, bonita e verdadeira à qual
a gente deseja entregar a vida.
[...]
Um conselho aos pais e aos
adolescentes: não levem muito a sério esse ato de colocar a profissão naquele
lugar terrível. Aceitem que é muito cedo para uma decisão tão grave. Considerem
que é possível que vocês, daqui a um ou dois anos, mudem de ideia. Eu mudei de
ideia várias vezes, o que me fez muito bem. Se for necessário, comecem de novo.
Não há pressa. Que diferença faz receber o diploma um ano antes ou um ano
depois?
[...]
Assim, Raquel, não se aflija. A vida é
uma ciranda com muitos começos.
Coloque lá a profissão que você julgar
a mais de acordo com o seu coração, sabendo que nada é definitivo. Nem o casamento.
Nem a profissão. E nem a própria vida...
Rubem Alves. Estórias
de quem gosta de ensinar: o fim dos vestibulares. Campinas: Papirus, 2000. p.
35-40.
Fonte: Universos –
Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 9º ano – Camila Sequetto
Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª
edição, 2015. p. 211.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a principal
crítica do autor em relação ao casamento de Gandhi?
O autor critica o
fato de que Gandhi e sua esposa foram forçados a se casar ainda crianças, sem
entender o que estava acontecendo. Ele descreve o casamento como um ato cruel e
"burro", uma decisão imposta pela sociedade que os levou a uma vida
de infelicidade.
02 – Qual é a analogia que o
autor faz entre o casamento de Gandhi e o vestibular?
Rubem Alves
compara o vestibular com o casamento de Gandhi, pois ambos são situações em que
adolescentes são forçados a tomar uma decisão grave e definitiva para suas
vidas sem ter a maturidade e o conhecimento necessários para tal escolha.
03 – Por que o autor considera
a decisão do vestibular "muito mais grave" do que o casamento?
O autor argumenta
que a escolha da profissão é mais grave porque, ao contrário do casamento que
pode ser desfeito, a profissão exige tempo para o saber crescer. Não é algo que
se resolve rapidamente e, uma vez trilhado o caminho, as outras opções são
abandonadas.
04 – O que o texto define como
"vocação"?
O autor define
"vocação" como um "chamado" que vem de dentro da pessoa, um
sentimento de que existe algo "belo, bonito e verdadeiro" ao qual ela
deseja dedicar sua vida. É a escolha suprema que faz com que as outras sejam
deixadas de lado.
05 – Qual conselho o autor dá
aos pais e adolescentes que estão nesse dilema?
O autor aconselha
que não levem a decisão da profissão "muito a sério", pois é muito
cedo para uma escolha tão grave. Ele sugere que aceitem a possibilidade de
mudar de ideia, que, se necessário, comecem de novo, e que não há pressa.
06 – Por que o autor usa sua
própria experiência para dar conselhos?
O autor usa sua
própria experiência de ter mudado de ideia várias vezes para mostrar que a vida
é uma jornada de múltiplos começos e que isso o fez muito bem. É uma forma de
encorajar os adolescentes a não encararem a decisão como algo definitivo.
07 – Qual a mensagem final do
autor para a leitora chamada Raquel?
Para Raquel, a
mensagem é para que não se aflija, pois a vida é uma ciranda com muitos
começos. Ele a encoraja a escolher a profissão que mais se alinha com o seu
coração, mas com a consciência de que nada é definitivo, nem a profissão, nem o
casamento, nem a própria vida.
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