Entrevista: Um país chamado Teatro
ARIANE MNOUCHKINE e o Théâtre du
Soleil
ARIANE MNOUCHKINE é considerada uma das mais importantes diretoras de teatro em atividade no mundo. Ela fundou a lendária companhia Théâtre du Soleil, na ativa desde 1964, com sede em Paris (França). Surgida no contexto dos movimentos contestadores da década de 1960, sua companhia tem forte conexão com a liberdade, partindo em busca de uma linguagem inovadora. O processo de criação do grupo é coletivo, isto é, com total envolvimento de atores, diretores e técnicos em todas as etapas de realização do espetáculo. Outra característica da companhia é seu engajamento social com as questões contemporâneas.

O Théâtre du
Soleil está no Brasil, neste mês, apresentando-se em São Paulo no
Sesc Belenzinho, com a peça Os Náufragos da Louca Esperança. Esta é a
segunda vez que o País recebe essa companhia, que em 2007
apresentou Les Ephémères. Ariane, aos 72 anos, é referência de inventividade,
fôlego e vigor.
Esta é a segunda vez que a senhora vem ao
Brasil com sua companhia. Qual sua expectativa para esta turnê?
A expectativa é igualmente alegre e
maravilhosa, como da primeira vez. Nós estamos muito
felizes, evidentemente, porque a impressão é a de que estamos sendo
recebidos por amigos. Temos boas lembranças de São Paulo, tivemos uma boa
receptividade do público.
A
nova montagem do Théâtre du Soleil, Os Náufragos da Louca Esperança, é
baseada no romance póstumo Les naufragés du Jonathan, de Júlio Verne. Como
foi o processo de criação desse espetáculo?
O processo foi duplo. A primeira parte
concerne à própria história do romance. Os atores realizam
um processo de mise en abîme [criação de uma narrativa dentro de
outra narrativa] e improvisam a parte inventada da história.
O
Théâtre du Soleil é reconhecido em todo o mundo pelo seu engajamento
social e pela sua diversidade, com atores vindos de diferentes países. No
que isso interfere no processo de criação e no resultado de suas obras?
É difícil medir isso, porque não
enxergo as pessoas que trabalham conosco como estrangeiros. Nós somos
todos do mesmo país, que é o país chamado teatro. Num dado momento, não
existem franceses, brasileiros, espanhóis. É verdade, nós somos
vinte e três nacionalidades aqui. Ao mesmo tempo, todos falam
francês, é o teatro francês, vai além de questões de etnia e
nacionalidade.
A
turnê do Théâtre du Soleil inclui, além da apresentação do espetáculo,
encontro com o público e oficina com atores. Qual o interesse em realizar
essa troca?
O objetivo é chamar o máximo de jovens,
estudantes, universitários e pessoas que estudam teatro
para compartilhar com eles não o nosso método, porque não temos um
método, mas nosso jeito de fazer a nossa pesquisa. Por um lado, é muito,
muito, muito trabalho. Por outro, é mostrar que não há um
segredo, mas muito trabalho.
A
companhia surgiu em 1964, em meio à efervescência cultural e política que
o mundo vivia. Passadas cinco décadas, o que mudou nesse trabalho?
A gente mantém as bases como no início:
a igualdade de salários, a democracia nas decisões grandes e
importantes, uma forma bastante coletiva de trabalhar, mas talvez de certa
forma também tenhamos avançado, eu espero. Temos trabalhado cada dia
mais e mais.
Em
sua opinião, qual é o papel do teatro e das artes na compreensão do mundo?
É uma pergunta difícil, porque isso
renderia um livro. O teatro encarna o mundo, é uma arte da
encarnação. Ele não conta ideias, ele conta corpos, atos e emoções. É
através desses corpos, atos e emoções que certas ideias são esclarecidas.
Eu não acredito que a arte seja para compreender o mundo, mas para sentir
o mundo, esclarecer o mundo.
A
senhora está à frente do Thêátre du Soleil desde a fundação. Como pensa na
continuidade da companhia?
Trabalho na formação de sucessores. Eu
tenho um codiretor, por exemplo, o Charlie-Henri Bradier,
que trabalha comigo há vinte anos. É preciso que isso continue depois
de mim. Cada um sabe o que pode ser feito, o que não pode ser feito, o que
pode ser falado e o que não. Todos pensam e refletem; o segredo em si
é o processo de criação ser aberto. O segredo da continuidade é a
hospitalidade, que nós já fazemos agora, o modo como recebemos gente nova.
Eu tenho muito trabalho, o que é cansativo às vezes.
Há
um rico material de cinema sobre o Théâtre du Soleil. Qual a motivação do
grupo para realizar o registro dos espetáculos?
Nós realizamos filmes, não meros
registros das peças, sobre nossos trabalhos. O espetáculo Les
Ephémères foi o único que, de fato, foi registrado, porque
era fundamental ver o público. Os outros espetáculos são realmente
filmes. Nossa intenção não é imortalizar o que quer que seja. Ouvia as
pessoas pedindo que deixássemos traços para quem não pudesse ver
os espetáculos. Eu compreendi isso um dia, há muito tempo, após
assistir a dez segundos de um filme de uma peça. Esses dez segundos foram
muito importantes para mim. A cena não era extraordinária, mas
me tocou profundamente. E então eu compreendi que era importante
deixar traços do nosso trabalho para que atores e estudantes pudessem ver.
É mais do que uma questão de imortalizar ou atingir o maior número
de pessoas: é criar um material de consulta.
A senhora acha que a televisão abre espaço
para apreciar e discutir as artes?
Muito raramente, mesmo na França. Cada
vez menos. Mas, no ano que vem isso vai mudar, porque vamos ganhar as
eleições. Estou brincando, mas espero.
Revista Sesc TV, out.
2011. Edição 55. Disponível em: www.sesctv.com.br/revista.cfm?materiaid=111.
Acesso em: fev. 2013.
Fonte: Arte em
Interação – Hugo B. Bozzano; Perla Frenda; Tatiane Cristina Gusmão – volume
único – Ensino médio – IBEP – 1ª edição – São Paulo, 2013. p. 123-125.
Entendendo a entrevista:
01 – Quais são as principais
características do Théâtre du Soleil, fundado por Ariane Mnouchkine, conforme
descrito no texto?
O Théâtre du
Soleil, fundado em 1964 por Ariane Mnouchkine, é conhecido por várias
características marcantes. Primeiramente, ele surgiu no contexto dos movimentos
contestadores da década de 1960, buscando liberdade e uma linguagem inovadora
no teatro. O grupo adota um processo de criação coletivo, envolvendo totalmente
atores, diretores e técnicos em todas as etapas da produção. Além disso, a
companhia é reconhecida por seu forte engajamento social com questões
contemporâneas e pela diversidade de suas 23 nacionalidades em seu elenco,
apesar de todos falarem francês durante o trabalho.
02 – Como Ariane Mnouchkine
descreve a experiência de se apresentar no Brasil pela segunda vez com o
Théâtre du Soleil?
Ariane Mnouchkine
descreve a experiência de se apresentar no Brasil pela segunda vez como
"igualmente alegre e maravilhosa" como da primeira vez. Ela expressa
grande felicidade, afirmando que a impressão é de estarem sendo recebidos por
amigos, e relembra a boa receptividade do público de São Paulo em sua visita
anterior em 2007, quando apresentaram "Les Ephémères".
03 – Qual é a base da nova
montagem do Théâtre du Soleil, "Os Náufragos da Louca Esperança", e
como foi seu processo de criação?
A nova montagem,
"Os Náufragos da Louca Esperança", é baseada no romance póstumo
"Les naufragés du Jonathan", de Júlio Verne. O processo de criação
foi duplo. A primeira parte envolveu a história do próprio romance. A segunda
parte consistiu em os atores realizarem um processo de "mise en
abîme" (criação de uma narrativa dentro de outra narrativa) e improvisarem
a parte inventada da história, o que sugere uma abordagem orgânica e
exploratória na construção do espetáculo.
04 – Segundo Ariane
Mnouchkine, como a diversidade de nacionalidades do elenco do Théâtre du Soleil
interfere no processo de criação e no resultado das obras?
Ariane Mnouchkine
afirma que é difícil medir a interferência da diversidade de nacionalidades do
elenco porque ela não enxerga os membros do grupo como estrangeiros. Para ela,
todos são do "país chamado teatro", transcendendo questões de etnia e
nacionalidade. Apesar de haver 23 nacionalidades, todos falam francês, e a
companhia é considerada "teatro francês". Isso sugere que a
diversidade é absorvida e unificada pela identidade teatral do grupo, em vez de
ser um fator de interferência negativa.
05 – Qual é o principal
objetivo dos encontros com o público e das oficinas com atores que o Théâtre du
Soleil realiza durante suas turnês?
O principal
objetivo dos encontros com o público e das oficinas é chamar o máximo de
jovens, estudantes e universitários para compartilhar o "jeito de fazer a
pesquisa" do grupo. Mnouchkine ressalta que não se trata de um
"método" secreto, mas sim de mostrar que o trabalho do Théâtre du
Soleil é o resultado de "muito, muito, muito trabalho". A intenção é
desmistificar o processo criativo e inspirar os futuros profissionais da área.
06 – Como Ariane Mnouchkine
define o papel do teatro e das artes na compreensão do mundo?
Para Ariane
Mnouchkine, o teatro é uma "arte da encarnação"; ele não se limita a
contar ideias, mas "conta corpos, atos e emoções". Ela acredita que é
por meio desses elementos concretos que certas ideias são esclarecidas.
Mnouchkine não vê a arte primariamente como uma ferramenta para "compreender
o mundo", mas sim para "sentir o mundo" e "esclarecer o
mundo", sugerindo que a experiência visceral e emocional proporcionada
pelo teatro é mais fundamental do que uma compreensão puramente intelectual.
07 – Qual a motivação do
Théâtre du Soleil para realizar registros cinematográficos de suas peças, e
qual é o objetivo desses materiais?
A motivação do
Théâtre du Soleil para realizar filmes (e não meros registros) sobre seus
trabalhos é deixar "traços" para quem não pôde ver os espetáculos e,
mais importante, criar um "material de consulta" para atores e
estudantes. Ariane Mnouchkine inicialmente não tinha a intenção de imortalizar
suas obras, mas compreendeu a importância de deixar esses registros após ser
tocada por dez segundos de um filme de uma peça antiga. O objetivo, portanto,
vai além da imortalização ou de atingir um grande público; é fornecer um
recurso pedagógico e inspirador para o futuro da arte teatral.
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