Poema: Atriz
Carlos
Drummond de Andrade
A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.

Professorinha pobre de Pirassununga
Cleópatra e Antígona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta, de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um nos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.
Fonte: Arte em
Interação – Hugo B. Bozzano; Perla Frenda; Tatiane Cristina Gusmão – volume
único – Ensino médio – IBEP – 1ª edição – São Paulo, 2013. p. 236.
Entendendo o poema:
01 – Como o poema "Atriz" de Carlos Drummond de
Andrade aborda a multiplicidade da identidade da atriz Cacilda Becker?
O poema
"Atriz" explora a multiplicidade da identidade de Cacilda Becker ao
apresentar a atriz não como uma figura singular, mas como um universo de
personagens. Drummond utiliza a frase "Não era uma só. Era tantas"
para iniciar essa ideia, listando uma série de papéis icônicos que Cacilda
interpretou, como Cleópatra, Antígona, Maria Stuart, Mary Tyrone, entre outros.
Além dos personagens femininos clássicos e modernos, o poema ainda expande essa
multiplicidade para além do gênero, mencionando "um garoto descarinhado e
astuto: Pinga-Fogo" e "um mendigo esperando infinitamente
Godot". Essa abordagem revela que a essência da atriz reside na sua
capacidade de encarnar diversas existências, tornando-se um repositório de
histórias e emoções que transcendem sua própria individualidade. A repetição da
ideia de que "Morrem mil Cacildas em Cacilda" ao final reforça a
noção de que a morte física de Cacilda Becker não é apenas o fim de uma pessoa,
mas o desaparecimento de inúmeras vidas e representações que ela trouxe à tona.
02 – De que forma o poema
estabelece uma relação entre a arte da interpretação e a revelação da verdade?
O poema
"Atriz" estabelece uma profunda relação entre a arte da interpretação
e a revelação da verdade, especialmente através da metáfora da "voz de
martelo sensível". Drummond descreve a voz da atriz como algo que
"martelando e doendo e descascando / a casca podre da vida / para mostrar
o miolo de sombra / a verdade de cada um nos mitos cênicos". Essa imagem
poderosa sugere que a performance de Cacilda Becker não era meramente uma
representação superficial; era um processo doloroso e incisivo que desvelava as
camadas da existência, expondo a essência humana mais profunda e, por vezes,
sombria. Os "mitos cênicos" – as histórias e personagens que ela
interpretava – tornavam-se veículos para a verdade universal, permitindo que o
público e a própria atriz confrontassem as complexidades e as contradições da
condição humana. Assim, a arte cênica, na visão do poeta, não é uma fuga da realidade,
mas um caminho para compreendê-la em sua plenitude.
03 – Qual o significado da
frase "A morte emendou a gramática" no contexto do poema?
A frase "A
morte emendou a gramática" é uma abertura impactante e carregada de
significado no poema "Atriz". Primeiramente, ela sugere uma
interrupção abrupta e definitiva, como se a morte tivesse corrigido ou
finalizado algo que estava em andamento – a vida e a carreira de Cacilda
Becker. A "gramática" pode ser interpretada como a ordem, a sequência
ou a própria estrutura da existência, que é alterada e corrigida pela
fatalidade. Em um sentido mais poético e trágico, a morte "emendou" a
"gramática" da vida de Cacilda ao impedir que ela continuasse a criar
e a se desdobrar em novos personagens, fixando-a em sua memória e em sua
contribuição. Além disso, a frase pode aludir à forma como a morte, por sua
irrevocabilidade, impõe uma nova ordem ou perspectiva sobre a vida de quem
parte, redefinindo sua história e seu legado de maneira definitiva.
04 – Analise a dimensão da
"imortalidade" da atriz presente no poema, mesmo diante da
constatação de sua morte.
Apesar de começar
com a constatação da morte de Cacilda Becker ("Morreram Cacilda
Becker"), o poema "Atriz" subtly explora a dimensão da sua
imortalidade artística. Essa imortalidade não é literal, mas reside na
perpetuação de seu legado e na permanência de suas múltiplas
"personagens" na memória coletiva e na história do teatro. A frase
"Morrem mil Cacildas em Cacilda" paradoxalmente sugere que, embora a
atriz individual tenha falecido, as inúmeras vidas que ela encarnou –
Cleópatra, Antígona, Mary Tyrone, entre outras – continuam a existir como parte
de sua memória e influência. O poema lista inclusive "outras muitas,
modernas e futuras / irreveladas", indicando que o impacto de sua arte
transcende o tempo, inspirando futuras gerações e mantendo viva a essência de
sua capacidade transformadora. A "voz de martelo sensível" que
"descasca a casca podre da vida" permanece como um eco de sua capacidade
de revelar verdades, garantindo que a contribuição de Cacilda Becker permaneça
viva no imaginário cultural, mesmo após sua morte física.
05 – De que maneira o poema
utiliza a enumeração de personagens para construir a imagem de Cacilda Becker?
O poema utiliza a
enumeração exaustiva de personagens para construir a imagem de Cacilda Becker
de uma forma que transcende a figura da atriz individual, elevando-a a um
símbolo da própria arte da interpretação. Ao listar uma vasta gama de papéis –
de Professorinha pobre de Pirassununga a Cleópatra, Antígona, Maria Stuart,
Mary Tyrone, Marta de Albee, Margarida Gauthier, Alma Winemiller, Hannah
Jelkes, e até personagens masculinos como Pinga-Fogo e o mendigo de Godot –,
Drummond demonstra a versatilidade e a profundidade de Cacilda. Essa enumeração
não é apenas uma lista de atuações, mas uma construção da identidade da atriz
como um "teatro" em si mesma, como afirma a linha "Era uma
pessoa e era um teatro". Cada nome evoca um universo dramático e uma
emoção específica, mostrando que Cacilda era capaz de habitar e dar vida a uma
diversidade extraordinária de existências humanas. Assim, a enumeração serve
para ilustrar a capacidade mimética e transformadora da atriz, consolidando a
ideia de que sua essência estava na sua habilidade de ser "tantas",
um espelho das múltiplas facetas da condição humana.
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