Crônica: Minha Mãe
Niki de Saint Phalle
Quando nasci, a 29 de outubro de 1930,
em Paris, o cordão umbilical estava enrolado duas vezes em meu pescoço. Você me
contou que o doutor me salvou deslizando a mão entre o cordão umbilical e meu
pescoço. Senão eu teria nascido estrangulada.

Desde o princípio, o perigo esteve
presente. Eu aprenderia a amar o perigo, o risco, a ação. Toda a vida eu seria
torturada pela asma e por problemas respiratórios.
Meu signo é Escorpião, com ascendente
em Escorpião. Todo um programa para vencer obstáculos, para amar os obstáculos.
Você me disse ainda que, em meu
nascimento, você perdeu todo o dinheiro no craque da Bolsa de Nova Iorque. E,
enquanto me esperava, descobriu a primeira infidelidade de meu pai. Eu trazia
aborrecimentos.
Eu tinha três meses quando fomos
separadas. Você foi para Nova Iorque e me mandou para a casa de meus avós, em
Nièvre. Lá passei meus primeiros três anos. Minha mãe, minha mãe, onde está
você? Por que me deixou? Você nunca vai voltar? Tudo é minha culpa. Cada mulher
se transforma em Você, Mamãe, Mamãe. Eu não preciso de você. Saberei viver sem
você.
Sua péssima opinião sobre mim, minha
mãe, foi extremamente dolorosa e útil. Aprendi a só contar comigo. A opinião
dos outros não me importava. Isso me deu imensa liberdade. A liberdade de ser
eu mesma. Eu rejeitaria seu sistema de valores e inventaria o meu. Muito cedo,
decidi tornar-me uma heroína. Quem eu seria? George Sand, Joana D'Arc? Napoleão
de saias? Com quinze anos, ganhei o prêmio de poesias. Quem sabe eu escreveria?
O que quer que eu fizesse no futuro,
queria que fosse difícil, excitante, grandioso.
Eu não me pareceria com você, minha
mãe. Você aceitou o que lhe tinha sido transmitido por seus pais: a religião,
os papéis masculino e feminino, as ideias sobre a sociedade e a segurança.
Eu passaria minha vida questionando.
Ficaria apaixonada pelo ponto de interrogação. Por você conquistei o mundo.
Você era quem me faltava. Sou uma lutadora. O que teria feito de uma mãe me afogando
de amor? Quando eu tinha vinte e cinco anos e vivia com Harry Mathews, algumas
vezes você me visitava em meu atelier. Você escondia os olhos com as mãos,
sobretudo para não ver minhas horríveis pinturas... Deus, como era estimulante!
Você detestava o Harry. Um dia, viu-o
passar o aspirador no apartamento e pensou que ele me roubava o papel de
mulher. Você não podia compreender.
Você era muito linda, minha mãe. Sua
beleza e seu charme (quando queria usá-los) eram mágicos.
Você poderia ter sido uma grande atriz,
minha mãe. Como era teatral!
Lembre-se da primeira vez que lhe
apresentei Jean Tinguely. Nós nos encontramos no Coupole para almoçar. Você
fechou seus olhos magníficos e disse tragicamente: "Não posso comer com o
amante de minha filha... Por que você não pode ficar com o seu marido e ter um
amante em segredo como todo mundo?".
Isso divertiu muitíssimo Jean, mas eu
deixei a mesa, furiosa. A partir desse momento, a cada vez que via Jean, ele
flertava com você e você adorava isso. Você nunca foi a grande santa que
pretendia ser. Lembro-me muito bem de seus amantes, quando eu era adolescente.
Havia um ruivo, jornalista, sedutor, que eu odiava com todas as minhas forças.
Para você, tudo deveria ficar
escondido.
Quanto a mim, eu me mostraria.
Mostraria tudo. Meu coração, minhas emoções. Verde-vermelho-amarelo-azul-violeta.
Ódio, amor, riso, medo, ternura.
Gostaria que você ainda estivesse aqui,
minha mãe. Gostaria de tomá-la pelas mãos e lhe mostrar o Jardim do Tarô. Bem
que você poderia não ter mais uma opinião tão negativa sobre mim. Quem sabe?
Minha mãe, obrigada. Que vida tediosa
eu teria tido sem você. Sinto saudades.
Niki de Saint Phalle.
Catálogo da Exposição de Niki de Saint Phalle, São Paulo, Pinacoteca, 1997.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 228-229.
Entendendo a crônica:
01 – Qual evento no nascimento
da autora prefigura sua personalidade e os desafios que enfrentaria?
O cordão
umbilical enrolado duas vezes em seu pescoço ao nascer, quase a estrangulando,
prefigura que o perigo esteve presente desde o início, e que ela aprenderia a
"amar o perigo, o risco, a ação", além de ser torturada por problemas
respiratórios.
02 – Como a separação precoce
da mãe e a "péssima opinião" dela sobre a autora impactaram seu
desenvolvimento?
A separação e a
opinião negativa da mãe foram, ironicamente, "extremamente dolorosas e
úteis". Elas a fizeram aprender a contar apenas consigo mesma, a não se
importar com a opinião alheia, o que lhe deu "imensa liberdade" para
ser quem era e inventar seu próprio sistema de valores, decidindo muito cedo
tornar-se uma "heroína".
03 – Quais são as principais
diferenças que a autora destaca entre sua personalidade e a de sua mãe?
A autora se descreve como alguém que
questionaria tudo, apaixonada pelo "ponto de interrogação", uma
"lutadora" que "mostraria tudo" (emoções, cores). Sua mãe,
por outro lado, é descrita como alguém que aceitou os valores tradicionais
(religião, papéis de gênero, ideias sobre sociedade e segurança) e preferia
manter as coisas "escondidas".
04 – Como a mãe de Niki de
Saint Phalle reagiu às pinturas da filha e ao relacionamento dela com Harry
Mathews?
A mãe detestava
as pinturas da filha, chegando a esconder os olhos para não vê-las, o que a
autora achava "estimulante". Em relação a Harry Mathews, a mãe o
detestava por vê-lo passar o aspirador, interpretando que ele "roubava o
papel de mulher" da filha, sem conseguir compreender a dinâmica do casal.
05 – Apesar das tensões e das
diferenças, qual é a atitude final de Niki de Saint Phalle em relação à sua
mãe, expressa no último parágrafo?
Apesar de todas
as dificuldades e desaprovações, a atitude final de Niki de Saint Phalle é de
gratidão e saudade. Ela reconhece a influência da mãe em sua vida, afirmando
que teria tido uma "vida tediosa" sem ela, e expressa o desejo de que
a mãe ainda estivesse presente para ver seu trabalho e talvez mudar sua opinião
negativa.
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