Conto: A moura torta
Henriqueta Lisboa.
Era uma vez um rei que tinha um filho
único, e este, chegando a ser rapaz, pediu para correr mundo. Não houve outro
remédio senão deixar o príncipe seguir viagem como desejava.

Nos primeiros tempos nada aconteceu de
novidades. O príncipe andou, andou, dormindo aqui e acolá, passando fome e
frio. Numa tarde ia ele chegando a uma cidade quando uma velhinha, muito
corcunda, carregando um feixe de gravetos, pediu uma esmola. O príncipe, com
pena da velhinha, deu dinheiro bastante e colocou nos ombros o feixe de
gravetos, levando a carga até pertinho das ruas. A velha agradeceu muito,
abençoou e disse:
– Meu netinho, não tenho nada para lhe
dar; leve essas frutas para regalo mas só abra perto das águas correntes.
Tirou do alforje sujo três laranjas e
entregou ao príncipe, que as guardou e continuou sua jornada.
Dias depois, na hora do meio-dia,
estava morto de sede e lembrou-se das laranjas. Tirou uma, abriu o canivete e
cortou. Imediatamente a casca abriu para um lado e outro e pulou de dentro uma
moça bonita como os anjos, dizendo:
– Quero água! Quero água!
Não havia água por ali e a moça
desapareceu. O príncipe ficou triste com o caso. Dias passados sucedeu o mesmo.
Estava com sede e cortou a segunda laranja. Outra moça, ainda mais bonita,
apareceu, pedindo água pelo amor de Deus.
O príncipe não pôde arranjar nem uma
gota. A moça sumiu-se como uma fumaça, deixando-o muito contrariado.
Noutra ocasião o príncipe tornou a ter
muita sede. Estava já voltando para o palácio de seu pai. Lembrou-se do
sucedido com as duas moças e andou até um rio corrente. Parou e descascou a
última laranja que a velha lhe dera. A terceira moça era bonita de fazer raiva.
Muito e muito mais bonita que as duas outras. Foi logo pedindo água e o
príncipe mais que depressa lhe deu. A moça bebeu e desencantou, começando a
conversar com o rapaz e contando a história. Ficaram namorados um do outro. A
moça estava quase nua e o príncipe viajava a pé, não podendo levar sua noiva
naqueles trajes. Mandou subir para uma árvore, na beira do rio, despediu-se
dela e correu para casa.
Nesse momento chegou uma escrava negra,
cega de um olho, a quem chamavam a Moura Torta. A negra baixou-se para encher o
pote com água do rio mas avistou o rosto da moça que se retratava nas águas e
pensou que fosse o dela. Ficou assombrada de tanta formosura.
– Meu Deus! Eu tão bonita e carregando
água? Não é possível… Atirou o pote nas pedras, quebrando-o e voltou para o
palácio, cantando de alegria. Quando a viram voltar sem água e toda importante,
deram muita vaia na Moura Torta, brigaram com ela e mandaram que fosse buscar
água, com outro pote.
Lá voltou a negra, com o pote na
cabeça, sucumbida. Meteu o pote no rio e viu o rosto da moça que estava na
árvore, mesmo por cima da correnteza. Novamente a escrava preta ficou
convencida da própria beleza. Sacudiu o pote bem longe e regressou para o
palácio, toda cheia de si.
Quase a matam de vaias e de puxões.
Deram o terceiro pote e ameaçaram a negra de uma surra de chibata se ela
chegasse sem o pote cheio d’água. Lá veio a Moura Torta no destino. Mergulhou o
pote no rio e tornou a ver a face da moça. Esta, não podendo conter-se com a
vaidade da negra, desatou uma boa gargalhada. A escrava levantou a cabeça e viu
a causadora de toda sua complicação.
– Ah! É vossimicê, minha moça branca?
Que está fazendo aí, feito passarinho? Desça para conversar comigo.
A moça, de boba, desceu, e a Moura
Torta pediu para pentear o cabelo dela, um cabelão louro e muito comprido que
era um primor. A moça deixou. A Moura Torta deitou a cabeça no seu colo e
começou a catar, dando cafuné e desembaraçando as tranças. Assim que a viu
muito entretida, fechando os olhos, tirou um alfinete encantado e fincou-o na
cabeça da moça. Esta deu um grito e virou-se numa rolinha, saindo a voar.
A negra trepou-se na mesma árvore e
ficou esperando o príncipe, como a moça lhe tinha dito, de boba.
Finalmente o príncipe chegou, numa
carruagem dourada, com os criados e criadas trazendo roupa para vestir a noiva.
Encontrou a Moura Torta, feia como a miséria. O príncipe, assim que a viu,
ficou admirado e perguntou a razão de tanta mudança. A Moura Torta disse:
– O sol queimou minha pele e os
espinhos furaram meu olho. Vamos esperar que o tempo melhore e eu fique como
era antes.
O príncipe acreditou e lá se foi a
Moura Torta de carruagem dourada, feito gente. O rei e a rainha ficaram de
caldo vendo uma nora tão horrenda como a negra. Mas palavra de rei não volta
atrás e o prometido seria cumprido. O príncipe anunciou seu casamento e mandou
convite aos amigos.
A Moura Torta não acreditava nos olhos.
Vivia toda coberta de seda e perfumada, dando ordens e ainda mais feia do que
carregando o pote d’água. Todos antipatizavam com a futura princesa.
Todas as tardes o príncipe vinha
espairecer no jardim e notava que uma rolinha voava sempre ao redor dele,
piando triste de fazer pena. Aquilo sucedeu tantas vezes que o príncipe acabou
ficando impressionado. Mandou um criado armar um laço num galho e a rolinha
ficou presa. O criado levou a rolinha ao príncipe e este a segurou com
delicadeza, alisando as peninhas. Depois coçou a cabecinha da avezinha e
encontrou um caroço duro. Puxou e saiu um alfinete fino. Imediatamente a moça
desencantou-se e apareceu bonita como os amores.
O príncipe ficou sabendo da malvadeza
da negra escrava. Mandou prender Moura Torta e contou a todo o mundo a
perversidade dela, condenando-a a morrer queimada e as cinzas serem atiradas ao
vento.
Fizeram uma fogueira bem grande e
sacudiram a Moura Torta dentro, até que ficou reduzida a poeira.
A moça casou com o príncipe e viveram
como Deus com seus anjos, querida por todos. Entrou por uma perna de pinto e
saiu por uma de pato, mandou dizer El-Rei Meu Senhor que me contassem quatro…
Conto popular.
Recontado por Lourença Maria da Conceição, in Câmara Cascudo, Contos
tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro, Ediouro, data?
Entendendo o conto:
01 – Qual foi o pedido do
príncipe ao seu pai e qual foi a condição inicial de sua viagem?
O príncipe pediu
ao seu pai, o rei, para correr mundo (viajar e conhecer lugares). Inicialmente,
ele "andou, andou, dormindo aqui e acolá, passando fome e frio", ou
seja, enfrentou dificuldades e privações.
02 – Como o príncipe ajudou a
velhinha corcunda e qual presente ele recebeu dela?
O príncipe ajudou
a velhinha corcunda dando-lhe dinheiro e colocando o feixe de gravetos dela em
seus próprios ombros, carregando-o até a cidade. Como agradecimento, a velhinha
lhe deu três laranjas, com a instrução de só abri-las perto de águas correntes.
03 – Por que as duas primeiras
moças que saíram das laranjas desapareceram?
As duas primeiras
moças desapareceram porque, ao saírem das laranjas, imediatamente pediram água,
e o príncipe não conseguiu providenciar nenhuma gota de água por perto. A falta
de água as fez sumir.
04 – Qual a atitude da Moura
Torta ao ver o reflexo da moça na água e qual foi a consequência de suas ações
para ela mesma?
A Moura Torta, ao
ver o reflexo da moça na água, pensou que fosse o seu próprio e ficou
extremamente vaidosa com tanta formosura. Por causa dessa vaidade, ela quebrou
os potes que deveria encher com água, o que resultou em "muita vaia",
brigas e ameaças de surra por parte das pessoas do palácio.
05 – Como a Moura Torta
enganou a moça encantada da laranja?
A Moura Torta enganou a moça pedindo para
pentear seu cabelo e, enquanto a moça estava relaxada e de olhos fechados, a
negra fincou um alfinete encantado na cabeça dela, transformando-a em uma
rolinha.
06 – De que forma o príncipe
descobriu a verdadeira identidade da moça transformada em rolinha e o que ele
fez com a Moura Torta?
O príncipe notou
uma rolinha piando triste no jardim e, impressionado, mandou um criado
capturá-la. Ao alisar as peninhas e coçar a cabecinha da rolinha, encontrou um
caroço duro e puxou um alfinete fino, o que fez a moça desencantar. Ao saber da
maldade, o príncipe mandou prender a Moura Torta, condenando-a a morrer
queimada e ter suas cinzas atiradas ao vento.
07 – Qual o desfecho da
história para a moça e para o príncipe?
A moça casou com
o príncipe e, segundo o conto, "viveram como Deus com seus anjos, querida
por todos", indicando um final feliz e harmonioso.
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