quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: COLHENDO OS FRUTOS DA GLÓRIA - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

 Crônica: Colhendo os frutos da glória

               João Ubaldo Ribeiro

        Um dos maiores problemas que enfrento na minha profissão é que não tenho cara de escritor.

        Aliás, não sei bem que cara tenho, mas sei que não presta para a maioria das atividades que exerço ou já exerci. Lembro-me de que, quando era professor, sempre tive dificuldade em convencer novos alunos de que era o professor. Um, chamado Bruno Maracajá e hoje meu amigo (um dos meus tipos inesquecíveis, pela razão que se segue), teve uma crise incontrolável de riso quando entrou numa sala de cursinho para vestibular, perguntou quem era o professor de inglês e me apontaram. Foi meio chato e, se não se tratasse de cursinho para vestibular, não haveria santo que desse um jeito de o Bruno passar em inglês sem pelo menos saber a obra completa de Shakespeare de cor.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxxf3xKPv2JN2GMP_aNMEE_b26RYvxbu63uaAiKpX2vUuYPxgqvOL8z1-2EzKBGUj-5wYuLtCWK2FP7OkKLvYszvhnym8uyao83VhWXljFn6LFVEwdHU0eicDL23GYHgr4T1yTeEHv2-icNu2vNfkU4fxxIkPV9WlCf3BIweVPIoPh7YSnJJpjTBhhfFI/s320/dia-nacional-do-escritor-como-presentear-um-literato.jpg


        Quando eu era jornalista em Salvador e metido a celebridade municipal, escrevendo já colunas e artigos assinados, Seu Severino, vizinho nosso, sorria no elevador com bondosa malícia, toda vez que perguntava se era eu mesmo quem havia escrito tal ou qual artigo e eu respondia que sim. Ele tinha certeza de que o autor era meu pai e acho que até hoje tem. Outra vez, em crise de indignação cívica combinada com um acesso de pernosticismo — síndrome de que nenhum baiano está livre vez por outra, e alguns permanentemente —, escrevi um artigo altamente polissilábico e proparoxítono contra um figurão, que, naturalmente, não gostou. Mas não veio tomar satisfações a mim, foi buscá-la furioso junto a meu pai; porque estava seguro de que "aquele rapaz não tem condição de escrever um artigo desse nível, nem muito menos coragem".

        Também não posso resistir à porta da conferência. Bem verdade que, à já natural falta de cara, somei ainda o estar barbado e meio andrajoso (quando minha mulher não me lembra de mudar as calças, eu me esqueço — ela já testou e eu entrava no Guinness fácil).Tinha vindo de Itaparica de mau humor, como sempre fico quando saio de lá, só atravessei a baía por honra da firma, porque assumira o compromisso. Mas aí, auditório cheio (já estive em voga, era especialista em generalidades esquerdóides que agradavam muito as plateias naquela época, embora a gente fosse em cana bastante) e tudo mais, cheguei à entrada, dei boa-noite, fui passando, a mocinha me barrou.

        — Cartão, por favor.

        — Cartão, que cartão?

        — O cartão que dá direito ao ingresso.

        — Não me deram cartão nenhum. Eu estava em Itaparica e…

        — Lamento muito, mas sem cartão o senhor não vai poder entrar.

        — Eu…

        — O senhor, por favor, quer dar licença? As pessoas atrás estão querendo entrar e o senhor está atrapalhando a passagem.

        Fiquei com preguiça de explicar que eu era o conferencista e — por que não confessar, oh mesquinharia humana — também um pouco com vontade de ver a cara da mocinha depois que me descobrissem ali à porta, barrado e rejeitado. Como de fato fui descoberto, uns vinte minutos mais tarde, quando a chamada mesa diretora dos trabalhos começou a pedir desculpas ao público porque o palestrante, apesar de ter confirmado várias vezes sua aquiescência em vir, havia deploravelmente faltado ao compromisso. Dei um pulinho do banco onde estava derreado, passei pela mocinha sem ela ter tempo de me deter, entrei, pedi a palavra e comuniquei à mesa que a culpa era dela, por não ter mandado o cartão.

        Para a atividade de escritor, a falta de uma cara apropriada é gravíssima, porque as pessoas são ainda mais rigorosas para com caras de escritores do que para com quaisquer outros tipos de cara. Cara de escritor influencia até a crítica, e é por isso que aqueles entre nós que são deficientes nesse setor ficam muito incomodados com problemas de cara. O Fernando Sabino mesmo, cujo caso não é tão sério quanto o meu, mas inspira cuidados, se queixa amargamente de uma recepcionista de hotel que não acreditou que ele era Fernando Sabino, o es-cri-tor, e passou o tempo todo chamando-o de "um homônimo". O grande poeta Almeidinha, queridíssimo presidente da famosa confraria etílica dos Amigos do Museu em São Paulo, de que sou sócio correspondente, me confundiu comigo mesmo. Fazia tempo que a gente não se via e, quando ele apareceu, fui-lhe ao encontro de braços abertos.

        — Grande Almeidinha! — exultei. — Que alegria! Valeu a pena vir a São Paulo só para estar com você!

        — Muito obrigado — respondeu ele com um sorriso amável. — E muito prazer em conhecê-lo. Aliás, o senhor lembra muito um amigo meu da Bahia, um escritor baiano amigo meu, interessante, lembra muito esse amigo meu.

        Mas agora, depois de haver "gramado uma pior anos e anos", como me lembrou jovialmente o colega Fausto Wolf na televisão, eis que a glória e o reconhecimento me bafejam, apesar de a cara não ter melhorado, antes pelo contrário. Meu abnegado editor, Dr. Sérgio Lacerda — o único editor que mente ao contrário para seu editado (não me deixa ver um relatório de vendas, aos berros de "best-seller, best-seller!", para que eu não chore ao descobrir que um livro meu só está vendendo em Araraquara, assim mesmo porque uma prima de minha mulher que mora lá faz rifa com ele todas as terças, quintas e sábados — ninguém esconde nada do romancista), me demoveu da relutância que eu tinha em ficar para a Feira do Livro ora acontecendo aqui no Rio. É bem verdade que, conhecedor de minha alma sensível, ele houve por bem me oferecer um suborno, o qual, naturalmente, aceitei de imediato.

        — Levas este mimo como lembrança da casa — anunciou-me ele orgulhosamente. — Ainda serás um "su" na Feira. Que queres mais da vida, um pôster na entrada do People? Pode ser arranjado.

        Acreditei, é claro. Todo mundo acredita em elogio, como já observou o Chacrinha, ao pronunciar um calouro banguela a cara do Burt Reynolds e ver que o calouro (que era a cara do Peter Lorre com malária e sem dentadura) acreditava piamente e fazia até uma pose reynoldiana. Saí então para testar minha popularidade, entrei numa livraria aqui da Visconde de Pirajá, senti que se declarou um frisson entre os balconistas, à minha chegada. Disfarcei, procurei assumir uma certa nonchalance, até para ser celebridade a gente tem de ser prático. Fingi que estava interessadíssimo em alguns livros, folheei atentamente um manual de datilografia sem mestre que caiu nas mãos. Com o rabo do olho, vi que um dos balconistas, em nome dos outros, tomava coragem para me falar. Fiquei firme no manual, obtive um timing perfeito na hora de levantar os olhos para reconhecer a presença dele junto a mim.

        — Sim? — falei com a mesma expressão que tinha visto num documentário em que Leonard Bernstein foi surpreendido por populares numa livraria da Quinta Avenida.

        — O senhor não é…? — falou ele, quase gaguejando.

        — Sim, sim, suponho que sim, ha-ha.

        Ele inflou o peito de orgulho. Olhou triunfalmente para os colegas do outro lado da loja — "eu não disse?".

        — Faça-me o favor — falou, me pegando pelo cotovelo na direção do grupo. — Eu tenho de apresentar o senhor.

        — Com prazer.

        — Pessoal! — trombeteou ele, cabeça erguida e mão no meu ombro. — Vocês são uns ignorantes e nem reconhecem quando pinta na casa um escritor consagrado! Quero apresentar a vocês o grande escritor (pausa dramática) João Antônio! João Antônio! Sempre fui fã do João Antônio!

        — Eu também — disse eu. — Tem alguma agência de viagem aqui por perto?

8 de setembro de 1985.

Extraído de: Arte e ciência de roubar galinha: crônica de João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 216-218.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o principal problema que o autor, João Ubaldo Ribeiro, afirma enfrentar em sua profissão de escritor?

      O maior problema que ele enfrenta é não ter "cara de escritor", o que o leva a ser frequentemente confundido ou desacreditado em sua verdadeira identidade profissional.

02 – Como o autor ilustra sua dificuldade em ser reconhecido como professor?

      Ele relata o caso de um aluno, Bruno Maracajá, que teve uma crise incontrolável de riso ao descobrir que João Ubaldo era seu professor de inglês, por não ter a "cara" esperada para um professor.

03 – Que situação o autor viveu em Salvador que demonstrava a desconfiança sobre sua capacidade de escrever?

      Seu vizinho, Seu Severino, sempre sorria com malícia e acreditava que era o pai do autor quem escrevia os artigos. Além disso, um "figurão" que não gostou de um artigo do autor foi tirar satisfações com seu pai, por não acreditar que "aquele rapaz" tivesse capacidade ou coragem para escrever algo daquele nível.

04 – Descreva a situação constrangedora que o autor passou na porta de uma conferência.

      Ele foi barrado por uma mocinha na entrada, que exigiu um cartão de ingresso. Mesmo sendo o próprio conferencista, ele não foi reconhecido e só conseguiu entrar cerca de vinte minutos depois, quando a mesa diretora anunciou que o palestrante havia faltado.

05 – Além de si mesmo, que outros escritores o autor menciona que também enfrentam problemas de "cara de escritor"?

      Ele menciona Fernando Sabino, que não foi reconhecido por uma recepcionista de hotel, e o poeta Almeidinha, que o confundiu com um "amigo baiano" que "lembrava muito" o próprio João Ubaldo.

06 – Como o editor de João Ubaldo, Dr. Sérgio Lacerda, o convenceu a participar da Feira do Livro?

      O editor o convenceu oferecendo um suborno (um "mimo como lembrança da casa") e elogiando sua futura popularidade na feira, prometendo até um pôster na entrada da revista People.

07 – Qual foi o desfecho hilário da tentativa do autor de testar sua popularidade em uma livraria?

      Um balconista, ao apresentá-lo aos colegas com grande orgulho, confundiu João Ubaldo Ribeiro com o escritor João Antônio, demonstrando que, apesar de toda a suposta glória, sua "cara de escritor" ainda não o tornava inconfundível.

 

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