Conto: Bandeira branca
Luís Fernando Veríssimo
Ele, tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

Encontraram-se de novo no baile
infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos
fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães
reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob
ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu?
— Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia
americana.
Só no sétimo baile (pirata, chinesa)
desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem
no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no
Carnaval, a tia é que era sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com
a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa,
brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do
vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca,
ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados.
E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que
vem" e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos,
pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina
espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam
olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque de bailarina. Ela diria para a
mãe que o tinha perdido no salão.
No ano seguinte, ela não apareceu no
baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia
nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro
pensando nela, às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo,
antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu.
Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o
guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua
cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
— Era exatamente como se sentia. Como
alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha
mais o cheiro dela.
Mas no ano seguinte, ele foi ao baile
dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo.
Uma fantasia indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela,
rindo.
Estava diferente. Era só o corpo. Menos
tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó
morrera, logo no Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa
florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos,
amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo,
alguém disse "Píndaro?!", e todos caíram na risada. Ele viu que ela
estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O
Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas
sob as calças da fantasia de sultão.
O Marcelão tinha o que ele precisava
para preencher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou
perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos
30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada,
bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma
sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista,
certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de
calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu
dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas,
quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída,
tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era
ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para
dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e
encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
Encontraram-se de novo 15 anos depois.
Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do
interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio.
Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a
reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina
espanhola. A última coisa que ele dissera fora "preciso te dizer uma
coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval
seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro
estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele,
como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na
fantasia de falsa bávara...
— O que você ia me dizer, no outro
Carnaval? – perguntou ela.
—
Esqueci – mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram,
mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e
a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas
essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da
minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da
minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o
nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo
inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...
Extraído de: Os
melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000, p. 582 a 585.
Fonte: Programa de Formação
de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 285-287.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o papel do
Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?
O Carnaval atua
como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da
relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio
à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles
floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta.
Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.
02 – Como a inocência da
infância é retratada no início do conto?
A inocência da
infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se
conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito
diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos
maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de
confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que
afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de
outro."
03 – Qual é o significado da
música "Bandeira Branca" dentro do conto?
A música
"Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e,
principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos
momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um
desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam,
simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O
momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e
Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre
eles.
04 – Como a passagem do tempo
afeta a relação e a percepção dos personagens?
A passagem do
tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes,
dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e
na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de
ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com
o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No
reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da
juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta
com a persistência de memórias e sentimentos.
05 – Que elemento revela a
persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?
O elemento que
revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que
Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou,
Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para
cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No
reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque"
sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.
06 – Qual é a principal
diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?
A principal
diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência
(aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda
são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de
"Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro
na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela
quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão
com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com
seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro
sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu
nome evidenciam essa perda.
07 – O que a reflexão final de
Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da
memória?
A reflexão final
sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza
um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro")
como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico
e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas
o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de
que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de
Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não
teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras
prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a
dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser
processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o papel do
Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?
O Carnaval atua
como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da
relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio
à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles
floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta.
Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.
02 – Como a inocência da
infância é retratada no início do conto?
A inocência da
infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se
conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito
diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos
maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de
confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que
afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de
outro."
03 – Qual é o significado da
música "Bandeira Branca" dentro do conto?
A música
"Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e,
principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos
momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um
desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam,
simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O
momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e
Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre
eles.
04 – Como a passagem do tempo
afeta a relação e a percepção dos personagens?
A passagem do
tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes,
dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e
na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de
ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com
o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No
reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da
juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta
com a persistência de memórias e sentimentos.
05 – Que elemento revela a
persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?
O elemento que
revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que
Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou,
Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para
cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No
reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque"
sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.
06 – Qual é a principal
diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?
A principal
diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência
(aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda
são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de
"Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro
na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela
quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão
com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com
seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro
sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu
nome evidenciam essa perda.
07 – O que a reflexão final de
Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da
memória?
A reflexão final
sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza
um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro")
como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico
e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas
o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de
que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de
Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não
teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras
prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a
dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser
processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.. Eram de
culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se
entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de
outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os
apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de
confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de
jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile
infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos
fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães
reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob
ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu?
— Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia
americana.
Só no sétimo baile (pirata, chinesa)
desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem
no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no
Carnaval, a tia é que era sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com
a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa,
brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do
vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca,
ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados.
E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que
vem" e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos,
pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina
espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam
olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque de bailarina. Ela diria para a
mãe que o tinha perdido no salão.
No ano seguinte, ela não apareceu no
baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia
nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro
pensando nela, às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo,
antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu.
Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o
guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua
cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
— Era exatamente como se sentia. Como
alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha
mais o cheiro dela.
Mas no ano seguinte, ele foi ao baile
dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo.
Uma fantasia indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela,
rindo.
Estava diferente. Era só o corpo. Menos
tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó
morrera, logo no Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa
florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos,
amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo,
alguém disse "Píndaro?!", e todos caíram na risada. Ele viu que ela
estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O
Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas
sob as calças da fantasia de sultão.
O Marcelão tinha o que ele precisava
para preencher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou
perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos
30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada,
bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma
sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista,
certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de
calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu
dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas,
quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída,
tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era
ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para
dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e
encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
Encontraram-se de novo 15 anos depois.
Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do
interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio.
Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a
reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina
espanhola. A última coisa que ele dissera fora "preciso te dizer uma
coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval
seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro
estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele,
como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na
fantasia de falsa bávara...
— O que você ia me dizer, no outro
Carnaval? – perguntou ela.
—
Esqueci – mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram,
mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e
a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas
essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da
minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da
minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o
nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo
inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...
Extraído de: Os
melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000, p. 582 a 585.
Fonte: Programa de Formação
de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 285-287.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o papel do
Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?
O Carnaval atua
como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da
relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio
à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles
floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta.
Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.
02 – Como a inocência da
infância é retratada no início do conto?
A inocência da
infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se
conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito
diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos
maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de
confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que
afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de
outro."
03 – Qual é o significado da
música "Bandeira Branca" dentro do conto?
A música
"Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e,
principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos
momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um
desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam,
simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O
momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e
Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre
eles.
04 – Como a passagem do tempo
afeta a relação e a percepção dos personagens?
A passagem do
tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes,
dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e
na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de
ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com
o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No
reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da
juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta
com a persistência de memórias e sentimentos.
05 – Que elemento revela a
persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?
O elemento que
revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que
Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou,
Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para
cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No
reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque"
sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.
06 – Qual é a principal
diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?
A principal
diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência
(aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda
são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de
"Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro
na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela
quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão
com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com
seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro
sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu
nome evidenciam essa perda.
07 – O que a reflexão final de
Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da
memória?
A reflexão final
sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza
um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro")
como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico
e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas
o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de
que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de
Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não
teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras
prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a
dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser
processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.
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