Crônica: Gente boa
Maitê Proença
Li outro dia um artigo sobre monges
budistas, freiras de clausura e essa gente toda que medita com frequência.
Estudos provam que eles têm mais desenvolvida a parte do cérebro que percebe o
aspecto luminoso das coisas. Enxergam mínimas virtudes, têm mais com paixão e
sabem amar com desprendimento.
Há sete anos passei um mês em Myanmar,
a antiga Birmânia, e lembro-me de sentir nitidamente que aquela gente era
melhor que eu. Havia harmonia e benevolência na expressão das pessoas. Não
penso que fosse a visão superficial de quem enxerga os encantos do exotismo. Lá
eu acordava predisposta para o bem e não porque seja de fato boa, mas porque
era o que se esperava de mim. Ninguém na rua imaginava que eu pudesse dar um
golpezinho, enganar ou pensar algo negativo enquanto sorria gentilmente. A
delicadeza estava por toda parte apontando para o que há de mais puro na gente,
contagiando com qualidades altruístas. Enquanto estive com aquela gente, umas
belezas emboloradas foram brotando feito susto de dentro de meus egoísmos. Não
havia, na época, o hábito da televisão a qualquer hora, sequer existia TV por
satélite, e a cultura mantinha-se, assim, preservada dos costumes ocidentais.
Não vi uma pessoa vestindo calça jeans, nem eu mesma, que rapidamente aprendi a
amarrar panos na cintura pra fazer saia igual à das moças de lá — se amarrar
diferente vira saia de homem. A única infiltração de hábito ocidental que se
percebe é um pouco de cinema e, mesmo assim, os filmes são quase sempre
indianos. Quem chega ali vindo de um mundo onde tudo se consegue pela força
fica perplexo diante de meninos e meninas que escolhem passar às vezes três
anos de sua adolescência burilando o espírito em monastérios budistas, no preparo
para a vida adulta. Saem sabendo tudo de abnegação, de generosidade, da
importância do silêncio, do não julgamento… Sabem pouco ou nada de sexo, drogas
e rock’n’roll. E conseguem viver sem isso, rindo! Não falarei do sistema
político e suas violências, contradições há por toda parte, e não se contrapõem
ao relato que faço aqui. Também não pretendo fazer o relato sentimental da
pureza de um povo simples e isolado do mundo, mas é que a virtude precisa mesmo
de exercício para manter-se espontânea, e aquele povo, sei lá por que, parece
achar essa prática importante.
Também não compreendo por que as
pessoas mais simples tendem a ser melhores. Por que os jogadores de futebol,
por exemplo, compram casa pra mãe, pra tia e pra família inteira, enquanto os “bem
de berço”, se fazem fortunas, tratam logo de brigar com qualquer infeliz que
possa um dia vir tirar uma lasquinha.
Tenho consciência de que um dia fui
melhor que hoje — quando era mais simples. A vida foi se sofisticando, me
deixando esperta e mais apta pro jogo social. Tive ganhos com isso, mas perdi
algo de genuíno que me diferenciava. Fui perdendo, no corre-corre do “fiz faço
aconteço”, o que me aproximava de uma experiência particular e única — e
melhor, eu acho. Felizmente, nada é irreversível e não preciso ir morar em
Myanmar pra resgatar minhas virtudes distantes. Posso fazer isso do meu
apartamento em Copacabana, já que nada é mais poderoso que a firmeza de uma
intenção.
Mas aí… cadê a firmeza?
Maitê Proença. Entre
ossos e a escrita. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 95-96.
Fonte: Universos –
Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 9º ano – Camila Sequetto
Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª
edição, 2015. p. 66.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com a crônica,
qual foi a principal percepção da autora durante sua estadia em Myanmar?
A – Ela ficou frustrada com a
falta de modernidade e de entretenimento como televisão e cinema.
B – Ela percebeu que
as pessoas eram melhores que ela e que ela mesma se sentia predisposta ao bem.
C – Ela sentiu que a cultura
ocidental era superior e que o povo de lá era muito atrasado.
D – Ela se sentiu isolada e
solitária, pois não conseguia se comunicar com os habitantes locais.
02 – A autora compara a
generosidade de monges e freiras com qual característica das pessoas simples em
geral?
A – A capacidade de se afastar
do mundo ocidental para ter virtudes.
B – A tendência de
serem melhores e a espontaneidade da virtude em suas vidas.
C – A tendência a viverem em
monastérios budistas.
D – A habilidade de meditar
para desenvolver o cérebro.
03 – Qual é a principal razão
pela qual a autora acredita que os habitantes de Myanmar mantêm suas virtudes?
A – O isolamento do país
devido a um sistema político violento.
B – A exposição constante à
cultura ocidental através da televisão e internet.
C – A forte influência do
cinema indiano.
D – A prática
constante da virtude, que se torna espontânea.
04 – A autora faz uma
distinção entre jogadores de futebol e pessoas 'bem de berço' com fortunas.
Qual é essa diferença?
A – Ambos os grupos tendem a
brigar para proteger suas fortunas.
B – Jogadores de
futebol compram casa para a família, enquanto os 'bem de berço' evitam dividir
a fortuna.
C – Os 'bem de berço' são mais
simples e generosos, enquanto os jogadores de futebol são mais espertos e
egoístas.
D – Jogadores de futebol
tendem a gastar seu dinheiro consigo mesmos, enquanto os 'bem de berço' ajudam
a família.
05 – No final da crônica, qual
é a principal reflexão da autora sobre o resgate de suas virtudes?
A – Ela decide que precisa se
mudar para um local mais simples, como Myanmar, para se tornar uma pessoa
melhor novamente.
B – Ela conclui que é
impossível recuperar suas virtudes perdidas devido ao 'jogo social'.
C – Ela acha que suas virtudes
se perderam para sempre no corre-corre da vida e não há como recuperá-las.
D – Ela acredita que
a firmeza de uma intenção é o mais poderoso, mas questiona se ela tem essa
firmeza.
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