Conto: O SÁBIO DA EFELOGIA
Malba Tahan
Aqui é relatada a singular história de
um pseudo-sábio que assombrava os seus ouvintes derramando uma erudição
espantosa. No fim o leitor descobre que o herói do conto é um tipo semelhante a
muitos outros que encontramos a cada passo na vida: verdadeiros sábios da
Efelogia.
Durante a última excursão que fiz a
Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.

Conheci-o casualmente, no velho hotel
de Yazid El-Kedim, em Marrakech. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e
olhos escuros; vestia sempre pesadíssimo casaco de astracã, com esquisita gola
de peles que lhe chegava até às orelhas. Falava pouco; quando conversava
casualmente com os outros hóspedes, não fazia a menor referência à sua vida ou
ao seu passado. Deixava, porém, de vez em quando, escapar observações eruditas,
denotadoras de grande e extraordinário saber.
Além do nome — Vladimir Kolievich —
pouco mais se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em “El-Kedim”,
constava que o misterioso cavalheiro era um antigo e notável professor da Universidade
de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revolução contra o
governo da Letônia.
Uma noite, como de costume estávamos
reunidos na sala de jantar, quando uma jovem escritora russa, Sônia Baliakine,
que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou:
— Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?
— O quê? Rio Falgu?
Ao cabo de alguns momentos de baldada
pesquisa nos escaninhos da memória, fui obrigado a confessar a minha
ignorância, lamentável nesse ponto. Nunca tinha ouvido falar em semelhante rio,
apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.
Com surpresa de todos, o misterioso
Vladimir Kolievich, que fumava em silêncio a um canto, veio esclarecer a dúvida
da encantadora excursionista russa:
— O Rio Falgu fica nas proximidades da
cidade de Gaya, na Índia. Para os budistas, o Falgu é um rio sagrado, pois foi
junto a ele que Buda, fundador da grande religião, recebeu a inspiração de
Deus.
E diante da admiração geral dos
hóspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e concentrado, continuou:
— É muito curioso o rio Falgu. O seu
leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, árido, como um
deserto. O viajante que dele se aproxima não vê água nem ouve o menor rumor do
líquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lençol de
água pura e límpida.
E, Com a simplicidade e clareza
peculiares aos grandes sábios, passou a contar-nos coisas curiosas, não só da Índia,
como de várias outras partes do mundo. Falou-nos minuciosamente das
“filazenes”, espécie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os
habitantes de Madagáscar.
— Que grande talento! Que invejável
cultura científica! — segredou, a meu lado, um missionário católico,
sinceramente admirado.
A formosa Sônia afirmou que encontrara
referências ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de
Otávio Feuillet.
— Ah! Feuillet, o célebre romancista
francês! — atalhou ainda o erudito cavalheiro do astracã. — Otávio Feuillet
nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco
exagerado, são notáveis pela finura das observações e pela concisão e brilho do
estilo.
E, durante algum tempo, prendeu a
atenção de todos, discorrendo sobre Otávio Feuillet, sobre a França e sobre os
escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de
Gustavo Flaubert: “Salambô”, “Madame Bovary”, “Educação Sentimental”...
— Não se limita a conhecer a Geografia
— acrescentou, a meia-voz, o velho missionário. — Sabe também literatura a
fundo!
Realmente. A precisão com que o erudito
Vladimir citava datas e nomes, e a segurança com que expunha os diversos assuntos,
não deixavam dúvida alguma sobre a extensão de seu considerável saber.
Nesse momento, começava uma forte
ventania. As janelas e portas batem com violência. Alguns excursionistas que se
achavam na sala mostraram-se assustados.
— Não tenham medo — acudiu, bondoso, o
extraordinário Kolievich. — Não há motivo para temores ou receios. Faye, o
grande astrônomo, que estudou a teoria dos ciclones...
E depois de discorer longamente sobre a
obra de Faye, e depois passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones,
avalanches, erupções e todos os flagelos da natureza.
Senti-me seriamente intrigado. Quem
seria, afinal, aquele homem tão sábio, de rara e copiosa erudição, que se
deixava ficar modesto, incógnito, como simples aventureiro, numa velha e
monótona cidade marroquina?
No dia seguinte, ao regressar de
fatigante excursão aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho,
no pátio da linda mesquita de Kasb. Não me contive e fui ter com ele.
— O senhor maravilhou-nos ontem com o
seu saber — confessei, respeitoso. — Não podíamos imaginar, com franqueza, que
fosse um homem de tão grande cultura. Na sua academia, com certeza...
— Qual, meu amigo! — obtemperou ele,
amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um
professor. Eu pouco sei – ou melhor – eu nada sei. Não reparou nas palavras de
que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo.
Começam todas pela letra “F”. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela
letra “F”.
Fiquei ainda mais admirado. Qual seria
a razão de tão curiosa extravagância no saber?
— Eu lhe explico — acudiu com bom humor
o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do fumo.
Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria.
O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me como
herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco esse
idioma – e, como não tivesse em que me ocupar – li e reli centenas de vezes as
páginas que possuía. Eram todas da letra “F”. Ao final, fiquei sabendo muita
coisa; tudo, porém sem sair da letra “F”: fá, fabagela, fabela, fabiana,
fabordão.
Achei curiosa aquela conclusão da
original história do inteligente Kolievich, o negociante de fumo. Ele era
precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir
uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição,
que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da
letra “F” de uma velha enciclopédia.
Era, inquestionavelmente, o homem que
mais conhecia a ciência que ele próprio denominara “efelogia”!
Malba Tahan, Seleções –
Os melhores contos – Conquista, Rio, 1963.
Entendendo o conto:
01 – Quem é o narrador do
conto e onde ele conhece o personagem principal?
O narrador é o
próprio autor, Malba Tahan, que encontra o personagem principal, Vladimir
Kolievich, casualmente no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrakech,
Marrocos, durante uma excursão.
02 – Quais eram as
características físicas e de vestimenta de Vladimir Kolievich, e o que se dizia
sobre seu passado?
Vladimir
Kolievich era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros, que
vestia sempre um pesadíssimo casaco de astracã com gola de peles. Constava que
ele era um antigo e notável professor da Universidade de Riga, foragido por ter
participado de uma revolução na Letônia.
03 – Qual foi a primeira
demonstração de grande saber de Vladimir Kolievich que surpreendeu os hóspedes?
A primeira
demonstração de saber que surpreendeu a todos foi quando ele esclareceu a dúvida
de uma jovem escritora russa sobre a localização do rio Falgu. Ele não apenas
soube onde ficava, mas também forneceu detalhes sobre sua importância para os
budistas e suas características geológicas.
04 – Além de geografia, sobre
quais outros assuntos, Vladimir Kolievich, demonstrou grande conhecimento?
Além de geografia
(como o rio Falgu e Madagáscar), Vladimir Kolievich demonstrou conhecimento
aprofundado em literatura, discorrendo sobre Otávio Feuillet e citando obras de
Gustavo Flaubert, e também em meteorologia/astronomia, falando sobre a obra de
Faye e os fenômenos naturais como ciclones e erupções.
05 – Qual é a revelação
surpreendente de Vladimir Kolievich sobre a origem de seu vasto conhecimento?
A revelação
surpreendente é que seu vasto conhecimento se limita a palavras que começam com
a letra "F". Ele explica que, durante dez anos na prisão na Sibéria,
leu e releu centenas de vezes as páginas de uma velha enciclopédia francesa que
haviam sido deixadas por um prisioneiro anterior, e todas essas páginas eram da
letra "F".
06 – O que o narrador entende
por "efelogia" no final do conto?
No final do
conto, o narrador entende "efelogia" como a ciência ou arte de saber
tudo sobre palavras que começam com a letra "F". É a área de conhecimento
peculiar e limitada de Vladimir Kolievich, que ele próprio denominou.
07 – Como o conto "O
Sábio da Efelogia" critica a aparência de erudição superficial?
O conto critica a
aparência de erudição superficial ao apresentar um personagem que, à primeira
vista, parece ter um saber universal e profundo, mas que, na realidade, possui
um conhecimento vasto, porém limitado e específico a uma única letra. Isso
sugere que o que parece ser sabedoria ilimitada pode ser, na verdade, uma
memorização focada e enganosa, destacando a diferença entre o conhecimento
genuíno e a mera ostentação de informações.
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