Texto/Relato: Pequeno relato de um pinguim de geladeira
Regina Chamlian
Nunca esqueci o instante em que mãos
pouco amistosas agarraram-me e, sem maiores explicações, me encerraram numa
caixa de papelão.
Esse gesto significou para mim o fim de
uma era de felicidade.
Ali, naquela cozinha, sobre a
geladeira, ouvi conversas, projetos, sonhos, presenciei almoços e jantares,
discussões, cenas de amor.
Ali, sobre a geladeira, teci meus
próprios projetos e sonhei com o Ártico onde, com outros pinguins de porcelana,
eu nadava no gelo.
Mas o calor e o ronco do motor sempre
me chamavam de volta à realidade da casa e sua rotina.
Durante anos foi assim.
Houve momentos em que desejei falar com
os habitantes humanos da casa. Eu me iludi, pensei que também fizesse parte da
família. Até que os fatos revelaram a verdade. De uma hora para outra, passei a
ser odiado, olhado com desprezo, rejeitado brutalmente. E fui afastado do
convívio dos homens.
O longo período em que passei no
interior daquela caixa de papelão me transformou numa criatura medrosa,
insegura, sujeita a crises nervosas e ataques de choro. No começo, pensava ser
o único pinguim de geladeira a sofrer essa violência. Não suspeitava que um
verdadeiro pogrom havia sido levantado contra nós, um anátema fora lançado
contra nossa espécie. Estávamos sendo completamente banidos da decoração dos
lares.
Mais tarde vim a saber que, muitos dos
meus pares, nascidos na mesma fábrica que eu, quebraram-se, partiram-se em mil
pedaços, perderam uma asa, uma costela, um bico, um olho. Depois, foram jogados
no lixo.
Por quê?
O que motivou tanta perseguição?
Descobri, escutando fiapos de conversas
através das paredes de papelão: pinguim em cima de geladeira tinha saído de
moda. Pior: éramos sinônimo de mau-gosto, o exemplo perfeito do kitsch. Ninguém
queria ser visto conosco, ninguém queria nos acolher.
Tive sorte de me manter inteiro.
Então, nem sei quanto tempo depois, a
caixa de papelão foi aberta, mãos amistosas (e desconhecidas) pegaram-me com
cuidado, acariciaram meu corpo esmaltado e ouvi: "Que lindo. E como está
perfeito."
O resto, vocês já devem ter imaginado.
Levaram-me para a cozinha e lá me
instalaram.
É onde estou agora, na cozinha, sobre a
geladeira.
Ouço conversas, projetos, sonhos.
Presencio almoços e jantares,
discussões, cenas de amor.
Às vezes, sonho com o Ártico.
Uma
imensa geladeira desliza nas águas geladas daqueles mares.
E pinguins quebrados, sem bicos, sem
olhos, sem asas, nadam em volta de minha embarcação branca.
De repente, alguém abre a geladeira,
pega uma garrafa de coca cola e fecha a porta rudemente, com o pé.
Assustado, volto à realidade da casa e
sua rotina.
Estou aqui, sozinho agora, na cozinha,
sobre a geladeira.
Mas, até quando?
Regina Chamlian.
Contos e outras prosas. Revista Crioula. Maio de 22008. N° 3.
Entendendo o texto/relato:
01 – A respeito do texto é
possível afirmar que:
a)
É narrador em 3ª pessoa.
b)
É baseado em fatos reais.
c)
É um texto jornalístico.
d)
É uma experiência vivida por um
personagem fictício.
02 – Os relatos de
experiência se caracterizam por apresentar uma situação inicial, um clímax e um
desfecho. Qual dessas sequências representa a ordem cronológica linear dessa
estrutura no texto?
a)
Caixa de papelão – geladeira – geladeira.
b)
Geladeira – caixa de papelão –
geladeira.
c)
Caixa de papelão – geladeira – caixa de
papelão.
d)
Geladeira – geladeira – caixa de papelão.
03 – Quem é o protagonista,
ou participante da ação?
O pinguim, que é o narrador.
04 – Descreva os lugares
onde ocorreu o fato.
Em cima da
geladeira e dentro de uma caixa de papelão.
05 – Em que pessoa os verbos
pronomes são empregados predominantemente?
Em 1ª pessoa.
06 – Quais são os elementos
básicos da narrativa do relato?
A sequência dos
fatos, pessoas, tempo, espaço.
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