terça-feira, 22 de setembro de 2020

CRÔNICA: OS HOMENZINHOS DE GRORK - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: OS HOMENZINHOS DE GRORK

                 Luís Fernando Veríssimo

        A ficção científica parte de alguns pressupostos, ou preconceitos, que nunca foram devidamente discutidos. Por exemplo: sempre que uma nave espacial chega à Terra vinda de outro planeta, é um planeta mais adiantado do que o nosso. Os extraterrenos nos intimidam com suas armas fantásticas ou com sua sabedoria exemplar. Pior do que o raio da morte é o seu ar de superioridade moral. 

        A civilização deles é invariavelmente mais organizada e virtuosa do que a da Terra e eles não perdem a oportunidade de nos lembrar disto. Cansado de tanta humilhação, imaginei uma história de ficção diferente. Para começar, o Objeto Voador Não Identificado que chega à Terra, descendo numa planície do Meio-Oeste dos Estados Unidos, chama a atenção por um estranho detalhe: a chaminé.

        ― Vi com estes olhos, xerife. Ele veio numa trajetória irregular, deu alguns pinotes, tentou subir e depois caiu como uma pedra.

        ― Deixando um facho de luz atrás?

        ― Não, um facho de fumaça. Da chaminé.

        ― Chaminé? Impossível. Vai ver o alambique do velho Sam explodiu outra vez e sua cabana voou.

        ― Não. Tinha o formato de um disco voador. Mas com uma chaminé em cima.

        O xerife chama as autoridades estaduais, que cercam o aparelho. Ninguém ousa se aproximar até que cheguem as tropas federais. Um dos policiais comenta para outro:

        ― Você notou? A vegetação em volta...

        ― Dizimada. Provavelmente um campo magnético destrutivo que cerca o disco e...

        ― Não. Parece cortada a machadinha. Se não fosse um absurdo eu até diria que eles estão colhendo lenha.

        Nesse instante, um segmento de um dos painéis do disco, que é todo feito de madeira compensada, é chutado para fora e aparecem três homenzinhos com machadinhas sobre os ombros. Os três saem à procura de mais árvores para cortar. Estão examinando as pernas de um dos policiais, quando este resolve se identificar e aponta um revólver para os homenzinhos.

        ― Não se mexam ou eu atiro.

        Os homenzinhos recuam, apavorados, e perguntam: 

        ― Atira o quê?

        ― Atiro com este revólver.

        O policial dá um tiro para o chão como demonstração. Os homenzinhos, depois de refeitos do susto, aproximam-se e passam a examinar a arma do policial, maravilhados. Os outros policiais saem de seus esconderijos e cercam os homenzinhos rapidamente. Mas não há perigo. Eles querem conversa. Para facilitar o desenvolvimento da história, todos falam inglês.

        ― Vocês não conhecem armas, certo? ― quer saber um Policial. ― Estão num estágio avançado de civilização em que as armas são desnecessárias. Ninguém mais mata ninguém.

        ― Você está brincando? ― responde um dos homenzinhos. ― Usamos machadinhas, tacapes, estilingue, catapulta, flecha, qualquer coisa para matar. Uma arma como essa seria um progresso incrível no nosso planeta. Precisamos copiá-la!

        Chegam as tropas federais e diversos cientistas para examinarem os extraterrenos e seu artefato voador. Começam as perguntas. De que planeta eles são? De Grork. Como é que se escreve? Um dos homenzinhos risca no chão: GRRK.

        ― Deve faltar uma letra ― observa um dos cientistas. ― O "O".

        ― O "O"?

        ― Assim ― diz o cientista da Terra, fazendo uma roda no chão.

        O homenzinho examina o "O". As possibilidades da forma são evidentes. A roda! Por que não tinham pensado nisso antes? Voltarão para o Grork com três ideias revolucionárias: o revólver, a roda e a vogal. Querem saber onde estão, exatamente. Nunca ouviram falar na Terra. Sempre pensaram que seu planeta fosse o centro do universo e aqueles pontinhos no céu, furos no manto celeste. Sua viagem era uma expedição científica para provar que o planeta Grork não era chato como muitos pensavam e que ninguém cairia no abismo se passasse do horizonte. Sua intenção era navegar até o horizonte.

        E como tinham vindo parar na Terra?

        Pois é. Alguma coisa deu errado.

        Tinham descido na Terra, porque faltara lenha para a caldeira que acionava as pás que moviam o barco. Então aquilo era um barco? Bom, a ideia fora a de fazer um barco. Só que em vez de flutuar, ele subira. Um fracasso. Os homenzinhos convidam os cientistas a visitarem a nave. Entram pelo mesmo buraco de madeira da nave, que depois é tapado com uma prancha e a prancha pregada na parede. Outra boa ideia que levarão da Terra é a da dobradiça de porta.

        O interior da nave é todo decorado com cortinas de veludo vermelho. Há vasos com grandes palmas, lustres, divãs forrados com cetim. Um dos homenzinhos explica que também tinham um piano de cauda, mas que o queimaram na caldeira quando faltou lenha. Tudo do mais moderno.

        ― E que mensagem vocês trazem para o povo da Terra? ― pergunta um dos cientistas.

        Os homenzinhos se entreolham. Não vieram preparados. Mas como a Terra os recebeu tão bem, resolvem revelar o segredo mais valioso da sua civilização. A fórmula de transformar qualquer metal em ouro.

        ― Vocês conseguiram isso? ― espanta-se um cientista.

        ― Ainda não ― responde um homenzinho ― mas é só uma questão de tempo. Nossos cientistas trabalham sem cessar na fórmula, queimando velas toda a noite.

        ― Velas? Lá não há eletricidade?

        ― Elequê?

        ― Eletricidade. Energia elétrica. As coisas lá são movidas a quê?

        ― A vapor. É tudo com caldeira.

        ― Mas isso não é incômodo?

        ― Às vezes. O barbeador portátil, por exemplo. Precisa de dois para segurar. Mas o resto...

Luís Fernando Veríssimo. Ed Mort e outras histórias. Porto Alegre, L&PM. 1984.

Fonte: Língua Portuguesa. Entre palavras – Edição renovada. Mauro Ferreira. 5ª série. Ed. FTD – São Paulo – 1ª edição – 2002. P. 166-170.

Entendendo a crônica:

01 – O autor resolveu escrever uma história de ficção diferente. Por que ele tomou essa decisão?

      Porque ele se cansou de ser humilhado pela superioridade dos extraterrenos das histórias tradicionais de ficção.

02 – Indique algumas diferenças entre a história criada pelo autor e as histórias tradicionais de ficção científica.

      Ele inverte os papeis: os humanos, que nas histórias comuns são mais atrasados, sentem-se e agem como superiores; os visitantes, normalmente mais inteligentes e avançados, são atrasados e primitivos: usam machadinha, não conhecem a roda, viajam de “barco a vapor”, etc.

03 – Identifique a primeira situação do texto que permite ao leitor concluir que a história terá um caráter humorístico.

      A primeira situação de humor do texto é a discrição da espaçonave: tem chaminés, faz uma trajetória irregular e dá pinotes.

04 – Como o narrador caracteriza os visitantes quanto aos aspectos físico e cultural? Com que intenção ele os imagina assim?

      Ele diz que os visitantes são baixinhos, meio ingênuos e culturalmente muito atrasado. O narrador os imagina assim porque a intenção dele é justamente desvalorizar os visitantes.

05 – Um dos policiais, quando começou a conversar som os homenzinhos, fez uma suposição. Ela estava correta? Justifique.

      Não. O policial supôs que os homenzinhos fizessem parte de uma civilização adiantada, que não usava mais armas, mas isso é negado por um dos ETs. O extraterrestre afirma que, para matar, eles usavam armas primitivas (tacape, flecha, etc.).

06 – Os homenzinhos se mostraram entusiasmados com três “ideias” que julgaram “revolucionárias”.

a)   O que é uma ideia ou uma invenção revolucionária?

É algo absolutamente novo, que surpreende pela originalidade, pela inventividade e que muda totalmente determinados conceitos.

b)   Que ideias os homenzinhos julgaram revolucionárias?

O revólver, a roda e a letra “o”.

c)   O fato de os extraterrestres não conhecerem as três invenções citadas no texto sugere ao leitor que caraterística de sua civilização?

Ela é muito atrasada, se comparada com a nossa, que já usa essas invenções há muito tempo.

07 – Existe um recurso de linguagem que permite afirmar alguma coisa de modo que o leitor (ou ouvinte) entenda de forma diferente, geralmente de forma contrária. Esse recurso chama-se ironia. No texto, várias vezes o autor emprega a ironia. Veja, por exemplo, o trecho destacado:

        “Os homenzinhos se entreolham. Não vieram preparados. Mas como a Terra os recebeu tão bem, resolvem revelar o segredo mais valioso da sua civilização.” Releia o texto do 8° parágrafo até o 18° parágrafo e explique por que o trecho destacado acima é irônico.

      Porque os homenzinhos não foram bem recebidos; ao contrário: a recepção foi agressiva e hostil.

08 – A alquimia, ciência primitiva que surgiu há mais de dois mil anos, acreditava ser possível transformar qualquer metal em ouro. Baseando-se nessa informação, responda: o que o narrador insinua, isto é, diz de forma indireta, a respeito dos cientistas de Grork?

      Ele insinua que os cientistas de Grork são tão atrasados e ultrapassados quanto os alquimistas, porque eles – os cientistas de Grork – ainda acreditam ser possível transformar qualquer metal em ouro.

09 – Releia a questão 4 e depois responda: você julga que o narrador conseguiu o que ele pretendia inicialmente? Justifique.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim. Os fatos e situações dessa “história de ficção” criam uma imagem caricaturesca, ridícula dos homenzinhos, no aspecto físico e, principalmente, no aspecto intelectual e científico.

     

Um comentário: