Conto: Um Peixe
Luiz Vilela
Virou a capanga de cabeça para baixo, e
os peixes espalharam-se pela pia. Ele ficou olhando, e foi então que notou que
a traíra ainda estava viva. Era o maior peixe de todos ali, mas não chegava a
ser grande: pouco mais de um palmo. Ela estava mexendo, suas guelras mexiam-se
devagar, quando todos os outros peixes já estavam mortos. Como que ela podia
durar tanto tempo assim fora d'água? ...
Teve então uma ideia: abrir a torneira,
para ver o que acontecia. Tirou para fora os outros peixes: lambaris, chorões,
piaus; dentro do tanque deixou só a traíra. E então abriu a torneira: a água
espalhou-se e, quando cobriu a traíra, ela deu uma rabanada e disparou, ele
levou um susto – ela estava muito mais viva do que ele pensara, muito mais
viva. Ele riu, ficou alegre e divertido, olhando a traíra, que agora tinha
parado num canto, o rabo oscilando de leve, a água continuando a jorrar da
torneira. Quando o tanque se encheu, ele fechou-a.
– E agora? – disse para o peixe. – Quê
que eu faço com você? ...
Enfiou o dedo na água: a traíra deu uma
corrida, assustada, e ele tirou o dedo depressa.
– Você tá com fome? ... E as minhocas
que você me roubou no rio? Eu sei que era você; devagarzinho, sem a gente
sentir... Agora está aí, né? ... Tá vendo o resultado? ...
O peixe, quieto num canto, parecia
escutar. Podia dar alguma coisa para ele comer. Talvez pão. Foi olhar na lata:
havia acabado. Que mais? Se a mãe estivesse em casa, ela teria dado uma ideia –
a mãe era boa para dar ideias. Mas ele estava sozinho. Não conseguia lembrar de
outra coisa. O jeito era ir comprar um pão na padaria. Mas sujo assim de barro,
a roupa molhada, imunda.
– Dane-se – disse, e foi.
Era domingo à noite, o quarteirão
movimentado, rapazes no footing, bares cheios. Enquanto ele andava, foi
pensando no que acontecera. No começo fora só curiosidade; mas depois foi
bacana, ficou alegre quando viu a traíra bem viva de novo, correndo pela água,
esperta. Mas o que faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso.
Se ela já estivesse morta, seria diferente; mas ela estava viva, e ele não
queria matá-la. Mas o que faria com ela? Poderia criá-la; por que não? Havia o
tanquinho do quintal, tanquinho que a mãe uma vez mandara fazer para criar
patos. Estava entupido de terra, mas ele poderia desentupi-lo, arranjar tudo;
ficaria cem por cento. É, é isso o que faria. Deixaria a traíra numa lata
d'água até o dia seguinte e, de manhã, logo que se levantasse, iria mexer com
isso.
Enquanto era atendido na padaria, ficou
olhando para o movimento, os ruídos, o vozerio do bar em frente. E então pensou
na traíra, sua trairinha, deslizando silenciosamente no tanque da pia, na casa
escura. Era até meio besta como ele estava alegre com aquilo. E logo um peixe
feio como traíra, isso é que era o mais engraçado.
Toda manhã – ia pensando, de volta para
casa – ele desceria ao quintal, levando pedacinhos de pão para ela. Além disso,
arrancaria minhocas, e de vez em quando pegaria alguns insetos. Uma coisa que
podia fazer também era pescar depois outra traíra e trazer para fazer companhia
a ela; um peixe sozinho num tanque era algo muito solitário.
A empregada já havia chegado e estava
no portão, olhando o movimento.
– Que peixada bonita você pegou...
– Você viu?
– Uma beleza... Tem até uma trairinha.
– Ela foi difícil de pegar, quase que
ela escapole; ela não estava bem fisgada.
– Traíra é duro de morrer, hem?
–
Duro de morrer? ...
Ele parou.
– Uai, essa que você pegou estava
vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água...
Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando?
Juro. Ela estava toda folgada, nadando.
– E aí?
– Aí? Uai, aí eu escorri a água para
ela morrer; mas você pensa que ela morreu? Morreu nada! Traíra é duro de
morrer, nunca vi um peixe assim. Eu soquei a ponta da faca naquelas coisas que
faz o peixe nadar, sabe? Pois acredita que ela ainda ficou mexendo? Aí eu
peguei o cabo da faca e esmaguei a cabeça dele, e foi aí que ele morreu. Mas
custou, ô peixinho duro de morrer! Quê que você está me olhando?
– Por nada.
– Você não está acreditando? Juro; pode
ir lá na cozinha ver: ela está lá do jeitinho que eu deixei.
Ele foi caminhando para dentro.
– Vou ficar aqui mais um pouco – disse
a empregada. – depois vou arrumar os peixes, viu?
– Sei.
Acendeu a luz da sala. Deixou o pão em
cima da mesa e sentou-se. Só então notou como estava cansado.
Luiz Vilela. O violino e outros contos. 7.
ed. São Paulo: Ática, 2007. p. 36-38.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das
palavras abaixo:
· Capanga: bolsa pequena, de tecido, couro ou plástico, usada a
tiracolo.
·
Footing: passeio a pé, com o objetivo de arrumar namorado(a).
· Guelra: estrutura do órgão respiratório da maioria dos animais
aquáticos.
·
Rabanada: movimento brusco com o rabo.
·
Vozerio: som de muitas vozes juntas.
02 – Qual é o foco narrativo
do conto? Justifique com elementos do texto.
O texto é narrado
em terceira pessoa. Os verbos e pronomes na terceira pessoa justificam essa
resposta.
03 – Quais são as
características do narrador dessa história?
É um narrador em
terceira pessoa, que não participa da história, mas sabe de tudo sobre as
personagens, incluindo o que estão pensando.
04 – Releia o trecho a
seguir: “[...] Como que ela podia durar
tanto tempo assim fora d’água? ...”. De quem é essa voz?
É a voz do
narrador onisciente, que conhece até mesmo os pensamentos das personagens.
05 – O conto é um gênero de
narrativa no qual se desenvolve um único conflito envolvendo o(s)
protagonista(s). Nesse conto, assistimos a um conflito interior, que se passa
no íntimo do protagonista.
a)
Qual é esse conflito?
O conflito é o que fazer com o peixe que não havia morrido.
b)
Que fato provoca tal conflito?
O fato de a traíra ainda estar viva quando a personagem principal
despeja os peixes na pia.
06 – O conflito interior do
protagonista se inicia e vai se desenvolvendo até a decisão final.
a)
Qual é a decisão do protagonista a respeito
do peixe?
A decisão é criar a traíra no tanquinho do quintal.
b)
Quais são as etapas desde o conflito até a
tomada de decisão?
No começo, a personagem principal fica apenas curiosa, mas depois se
anima com a ideia de o peixe estar vivo. Resolve sair para comprar comida para
o peixe e decide limpar o tanquinho para ele cria-lo.
07 – Reproduza o trecho que
corresponde ao clímax desse conto e explique por que você considera esse o
momento de maior tensão da história.
O clímax se dá no
momento em que a empregada diz “—Traíra é duro de morrer, hem?”; porque, então,
a personagem principal vê desmoronar seu sonho de criar a traíra como um peixe
de estimação.
08 – A escolha do foco
narrativo em terceira pessoa permite que exista um diálogo, como o que se dá
entre a personagem principal e a empregada, carregado de tensão. Se esse conto
fosse narrado em primeira pessoa, isso seria possível? Por quê?
Não. Se o narrador fosse o menino, ele
diria o que pensou ao ouvir a empregada, e todo o clima de tensão
desapareceria.
09 – Considerando o que foi
estudado neste capítulo sobre os determinantes do substantivo, podemos dizer
que, no início da narrativa, a traíra era realmente “um peixe” para a
personagem principal, mas, no final, o menino já poderia se referir a ela como
“o peixe”. Por quê?
No início da narrativa, o uso do artigo um mostra que o peixe é
desconhecido, um peixe qualquer, igual a outros que o menino já viu. No fim, o
artigo o individualiza esse peixe: não se trata mais de qualquer peixe, mas
daquele ao qual a personagem se afeiçoou.
10 – Nos primeiros
parágrafos, o narrador descreve a cena em que a personagem principal volta de
uma pescaria. Logo em seguida, esse mesmo narrador oferece ao leitor uma
informação que vai alterar a situação inicial da história.
a)
Que informação é essa?
Trata-se da informação de que a traíra estava viva.
b)
Por que essa informação vai alterar o rumo da
trama?
Porque, a partir deste momento, a traíra mostra-se realmente viva. E
o que fazer com ela é a questão que se segue.
11 – A personagem começa a
gostar do peixe. Como isso aparece no texto?
A personagem
começa a conversar com o peixe.
12 – Releia: “[...] E então
pensou na traíra, sua trairinha, deslizando silenciosamente no tanque da pia,
na casa escura.”
a)
O que o diminutivo trairinha revela sobre os
sentimentos da personagem?
O diminutivo mostra que a personagem já estava se afeiçoando à
traíra.
b)
Como a personagem encara essa relação com a
traíra?
O menino acha curioso se interessar pela traíra, afeiçoar-se a um
peixe que nem bonito era.
13 – Releia:
“–
Traíra é duro de morrer, hem?
– Duro de morrer? ...
Ele parou.
– Uai, essa que você pegou estava
vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água...
Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando?
Juro. Ela estava toda folgada, nadando.”
a)
Em vez de dizer tudo o que a personagem
sentiu ao ouvir a empregada, o narrador limitou-se a uma frase curta e seca:
“Ele parou”. Que efeito esse recurso provoca no leitor?
Frases curtas e secas são mais diretas. Neste caso, a frase cria um
suspense, deixando o leitor na expectativa do que poderia ter de fato
acontecido ao peixe.
b)
O que a personagem pode ter pensado naquele
momento?
Resposta pessoal do aluno.
c)
Explique o uso do diminutivo vivinha nesse
trecho.
O diminutivo, nesse trecho, intensifica a ideia de vivacidade e
vitalidade; vivinha quer dizer “muito viva, bem viva”.
14 – Há no texto perguntas
não indicadas por travessão. Observe:
“[...]No
começo fora só curiosidade; mas depois foi bacana, ficou alegre quando viu a
traíra bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas o que faria com ela
agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria
diferente; mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas o que faria com
ela? Poderia criá-la; por que não?”
a)
Essas perguntas estão relacionadas à voz de
qual personagem?
À voz da personagem principal, o menino.
b)
Que informações essas perguntas revelam ao
leitor?
Essas perguntas permitem que o leitor conheça as dúvidas, os
sentimentos e pensamentos da personagem principal.
Tava precisando kkkkkk
ResponderExcluirTire do texto as palavras que sejam oxítonas, paroxítonas, proparoxítonas acentuada
ResponderExcluirQual o conflito da narrativa?
ResponderExcluirEeeee
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