sábado, 22 de junho de 2019

CONTO: UM PEIXE - LUIZ VILELA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Um Peixe
         Luiz Vilela

        Virou a capanga de cabeça para baixo, e os peixes espalharam-se pela pia. Ele ficou olhando, e foi então que notou que a traíra ainda estava viva. Era o maior peixe de todos ali, mas não chegava a ser grande: pouco mais de um palmo. Ela estava mexendo, suas guelras mexiam-se devagar, quando todos os outros peixes já estavam mortos. Como que ela podia durar tanto tempo assim fora d'água? ...
        Teve então uma ideia: abrir a torneira, para ver o que acontecia. Tirou para fora os outros peixes: lambaris, chorões, piaus; dentro do tanque deixou só a traíra. E então abriu a torneira: a água espalhou-se e, quando cobriu a traíra, ela deu uma rabanada e disparou, ele levou um susto – ela estava muito mais viva do que ele pensara, muito mais viva. Ele riu, ficou alegre e divertido, olhando a traíra, que agora tinha parado num canto, o rabo oscilando de leve, a água continuando a jorrar da torneira. Quando o tanque se encheu, ele fechou-a.
        – E agora? – disse para o peixe. – Quê que eu faço com você? ...
        Enfiou o dedo na água: a traíra deu uma corrida, assustada, e ele tirou o dedo depressa.
        – Você tá com fome? ... E as minhocas que você me roubou no rio? Eu sei que era você; devagarzinho, sem a gente sentir... Agora está aí, né? ... Tá vendo o resultado? ... 
        O peixe, quieto num canto, parecia escutar. Podia dar alguma coisa para ele comer. Talvez pão. Foi olhar na lata: havia acabado. Que mais? Se a mãe estivesse em casa, ela teria dado uma ideia – a mãe era boa para dar ideias. Mas ele estava sozinho. Não conseguia lembrar de outra coisa. O jeito era ir comprar um pão na padaria. Mas sujo assim de barro, a roupa molhada, imunda.
        – Dane-se – disse, e foi.
        Era domingo à noite, o quarteirão movimentado, rapazes no footing, bares cheios. Enquanto ele andava, foi pensando no que acontecera. No começo fora só curiosidade; mas depois foi bacana, ficou alegre quando viu a traíra bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas o que faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente; mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas o que faria com ela? Poderia criá-la; por que não? Havia o tanquinho do quintal, tanquinho que a mãe uma vez mandara fazer para criar patos. Estava entupido de terra, mas ele poderia desentupi-lo, arranjar tudo; ficaria cem por cento. É, é isso o que faria. Deixaria a traíra numa lata d'água até o dia seguinte e, de manhã, logo que se levantasse, iria mexer com isso.
        Enquanto era atendido na padaria, ficou olhando para o movimento, os ruídos, o vozerio do bar em frente. E então pensou na traíra, sua trairinha, deslizando silenciosamente no tanque da pia, na casa escura. Era até meio besta como ele estava alegre com aquilo. E logo um peixe feio como traíra, isso é que era o mais engraçado.
        Toda manhã – ia pensando, de volta para casa – ele desceria ao quintal, levando pedacinhos de pão para ela. Além disso, arrancaria minhocas, e de vez em quando pegaria alguns insetos. Uma coisa que podia fazer também era pescar depois outra traíra e trazer para fazer companhia a ela; um peixe sozinho num tanque era algo muito solitário.
        A empregada já havia chegado e estava no portão, olhando o movimento.
        – Que peixada bonita você pegou...
        – Você viu?
        – Uma beleza... Tem até uma trairinha.
        – Ela foi difícil de pegar, quase que ela escapole; ela não estava bem fisgada.
        – Traíra é duro de morrer, hem?
        – Duro de morrer? ...
        Ele parou.
         – Uai, essa que você pegou estava vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água... Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando? Juro. Ela estava toda folgada, nadando.
        – E aí?
        – Aí? Uai, aí eu escorri a água para ela morrer; mas você pensa que ela morreu? Morreu nada! Traíra é duro de morrer, nunca vi um peixe assim. Eu soquei a ponta da faca naquelas coisas que faz o peixe nadar, sabe? Pois acredita que ela ainda ficou mexendo? Aí eu peguei o cabo da faca e esmaguei a cabeça dele, e foi aí que ele morreu. Mas custou, ô peixinho duro de morrer! Quê que você está me olhando?
        – Por nada.
        – Você não está acreditando? Juro; pode ir lá na cozinha ver: ela está lá do jeitinho que eu deixei.
        Ele foi caminhando para dentro.
        – Vou ficar aqui mais um pouco – disse a empregada. – depois vou arrumar os peixes, viu?
        – Sei.
        Acendeu a luz da sala. Deixou o pão em cima da mesa e sentou-se. Só então notou como estava cansado.

  Luiz Vilela. O violino e outros contos. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007. p. 36-38.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·    Capanga: bolsa pequena, de tecido, couro ou plástico, usada a tiracolo.
·        Footing: passeio a pé, com o objetivo de arrumar namorado(a).
·  Guelra: estrutura do órgão respiratório da maioria dos animais aquáticos.
·        Rabanada: movimento brusco com o rabo.
·        Vozerio: som de muitas vozes juntas.

02 – Qual é o foco narrativo do conto? Justifique com elementos do texto.
      O texto é narrado em terceira pessoa. Os verbos e pronomes na terceira pessoa justificam essa resposta.

03 – Quais são as características do narrador dessa história?
      É um narrador em terceira pessoa, que não participa da história, mas sabe de tudo sobre as personagens, incluindo o que estão pensando.

04 – Releia o trecho a seguir: “[...] Como que ela podia durar tanto tempo assim fora d’água? ...”. De quem é essa voz?
      É a voz do narrador onisciente, que conhece até mesmo os pensamentos das personagens.

05 – O conto é um gênero de narrativa no qual se desenvolve um único conflito envolvendo o(s) protagonista(s). Nesse conto, assistimos a um conflito interior, que se passa no íntimo do protagonista.
a)   Qual é esse conflito?
O conflito é o que fazer com o peixe que não havia morrido.

b)   Que fato provoca tal conflito?
O fato de a traíra ainda estar viva quando a personagem principal despeja os peixes na pia.

06 – O conflito interior do protagonista se inicia e vai se desenvolvendo até a decisão final.
a)   Qual é a decisão do protagonista a respeito do peixe?
A decisão é criar a traíra no tanquinho do quintal.

b)   Quais são as etapas desde o conflito até a tomada de decisão?
No começo, a personagem principal fica apenas curiosa, mas depois se anima com a ideia de o peixe estar vivo. Resolve sair para comprar comida para o peixe e decide limpar o tanquinho para ele cria-lo.

07 – Reproduza o trecho que corresponde ao clímax desse conto e explique por que você considera esse o momento de maior tensão da história.
      O clímax se dá no momento em que a empregada diz “—Traíra é duro de morrer, hem?”; porque, então, a personagem principal vê desmoronar seu sonho de criar a traíra como um peixe de estimação.

08 – A escolha do foco narrativo em terceira pessoa permite que exista um diálogo, como o que se dá entre a personagem principal e a empregada, carregado de tensão. Se esse conto fosse narrado em primeira pessoa, isso seria possível? Por quê?
      Não. Se o narrador fosse o menino, ele diria o que pensou ao ouvir a empregada, e todo o clima de tensão desapareceria.

09 – Considerando o que foi estudado neste capítulo sobre os determinantes do substantivo, podemos dizer que, no início da narrativa, a traíra era realmente “um peixe” para a personagem principal, mas, no final, o menino já poderia se referir a ela como “o peixe”. Por quê?
      No início da narrativa, o uso do artigo um mostra que o peixe é desconhecido, um peixe qualquer, igual a outros que o menino já viu. No fim, o artigo o individualiza esse peixe: não se trata mais de qualquer peixe, mas daquele ao qual a personagem se afeiçoou.

10 – Nos primeiros parágrafos, o narrador descreve a cena em que a personagem principal volta de uma pescaria. Logo em seguida, esse mesmo narrador oferece ao leitor uma informação que vai alterar a situação inicial da história.
a)   Que informação é essa?
Trata-se da informação de que a traíra estava viva.

b)   Por que essa informação vai alterar o rumo da trama?
Porque, a partir deste momento, a traíra mostra-se realmente viva. E o que fazer com ela é a questão que se segue.

11 – A personagem começa a gostar do peixe. Como isso aparece no texto?
      A personagem começa a conversar com o peixe.

12 – Releia: “[...] E então pensou na traíra, sua trairinha, deslizando silenciosamente no tanque da pia, na casa escura.”
a)   O que o diminutivo trairinha revela sobre os sentimentos da personagem?
O diminutivo mostra que a personagem já estava se afeiçoando à traíra.

b)   Como a personagem encara essa relação com a traíra?
O menino acha curioso se interessar pela traíra, afeiçoar-se a um peixe que nem bonito era.

13 – Releia:
        “– Traíra é duro de morrer, hem?
        – Duro de morrer? ...
        Ele parou.
         – Uai, essa que você pegou estava vivinha na hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque cheio d'água... Quando eu cheguei, ela estava toda folgada, nadando. Você não está acreditando? Juro. Ela estava toda folgada, nadando.”

a)   Em vez de dizer tudo o que a personagem sentiu ao ouvir a empregada, o narrador limitou-se a uma frase curta e seca: “Ele parou”. Que efeito esse recurso provoca no leitor?
Frases curtas e secas são mais diretas. Neste caso, a frase cria um suspense, deixando o leitor na expectativa do que poderia ter de fato acontecido ao peixe.

b)   O que a personagem pode ter pensado naquele momento?
Resposta pessoal do aluno.

c)   Explique o uso do diminutivo vivinha nesse trecho.
O diminutivo, nesse trecho, intensifica a ideia de vivacidade e vitalidade; vivinha quer dizer “muito viva, bem viva”.

14 – Há no texto perguntas não indicadas por travessão. Observe:
        “[...]No começo fora só curiosidade; mas depois foi bacana, ficou alegre quando viu a traíra bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas o que faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente; mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas o que faria com ela? Poderia criá-la; por que não?”

a)   Essas perguntas estão relacionadas à voz de qual personagem?
À voz da personagem principal, o menino.

b)   Que informações essas perguntas revelam ao leitor?
Essas perguntas permitem que o leitor conheça as dúvidas, os sentimentos e pensamentos da personagem principal.




4 comentários: