quinta-feira, 6 de junho de 2019

CONTO: ALGUMAS PALAVRAS - ANA MIRANDA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Algumas palavras
                 
                  Ana Miranda

        Quando o sol se põe, as luzes se apagam e nossos olhos se fecham, somos lançados num outro mundo, o mundo dos sonhos, um reino de absurdos povoados por seres que não conhecemos, onde se passam acontecimentos incontroláveis, alguns líricos, outros bárbaros, hediondos ou depravados, um pouco parecido com o mundo da arte, em que amamos sem amar, matamos sem matar, morremos sem morrer. A nossa percepção nos comprova, nesse momento, que há outros mundos diferentes de nossa “realidade”, poderosos, capazes de mudar nosso comportamento e nos levar a gestos que não compreendemos. A mente humana, mesmo a daquelas pessoas que não se dão conta disso, é uma trama de mundos que se influenciam, numa obsessiva continuidade. Ao raiar da manhã saímos desse lugar obscuro, inconsciente, deixamos que fique adormecido, passamos a ter controle sobre ele, e habitamos um mundo exterior legível, porém inexorável. Assim vivemos um pouco cegos, distantes da inquietação da loucura. Mas quando a noite retorna, somos novamente tragados pelos mundos irreais, parecidos com a morte e com a infância.
        Aprendemos muito cedo a conviver com a angustia noturna. A noite é traiçoeira. Os livros infantis e as babás contam histórias atemorizantes, vivemos entre perpétuas e invisíveis ameaças. Quando pequena, eu tinha receio de ficar acordada, porém sentia ainda mais medo dos sonhos. Guardava na minha lembrança o horror de meu primeiro pesadelo, aos seis, ou sete anos de idade, em que uma sósia caminhava por uma estrada deserta, na minha direção. Tive tanto medo da aproximação da múmia que acordei suada e com o coração palpitante. Eu usava erradamente a palavra sósia, sem saber o significado, pensava que era múmia. Já tinha pavores secretos de encontrar a mim mesma.
        No entanto, logo ao entrar na adolescência, passei a observar os sonhos com interesse literário, e a anotá-los. Não lembro como isso começou, nem os motivos que me levaram a escrevê-los. Talvez precisasse de ajuda, talvez quisesse me livrar de minha assustadora personalidade noturna. Havia alguém no meu interior diferente de quem eu acreditava ser, do que eu conhecia de mim. Sei que foi uma decisão intuitiva, porém mais tarde descobri que essa era uma antiga prática literária, há escritores de sonhos, como o norte-americano Van Dusen; ou o próprio Freud, que anotou e interpretou clássicos da literatura onírica, sonhos seus, como o da garganta de Irma, e sonhos de seus pacientes, como o dos lobos na árvore; ou, ainda, Jung, que tinha um sonho recorrente de portas que davam num laboratório zoológico onde ficava, atrás de uma cortina, a cama de sua mãe, vazia. A literatura é repleta de menções a sonhos, quando não por eles constituída. Há obras literárias escritas por visionários sonhadores, como William Blake, ou Goethe, que, com o Romantismo, rejeitaram o pensamento racionalista em favor do poder criativo da imaginação. Assim, à medida que eu me interessava pela literatura, me interessava pelos sonhos, e quanto mais me envolvia com os sonhos, mais era absorvida pela literatura.
        O sonho é uma espécie de experiência literária. Quando ele acontece, sabemos que nosso corpo está dormindo mas a mente fica acordada. Sentimo-nos imóveis, tomados de uma sensação de impotência, massacrados por questões pequenas que parecem imensas. Os sentidos também estão adormecidos, não temos tato, não ouvimos o que se passa em torno, não percebemos cheiros, nem sabores, e não vemos com os olhos que estão fechados. Mas, incrivelmente, mesmo com os olhos fechados, vemos. Vemos a imaginação, uma ficção alucinada cheia de significados ocultos, que nos desperta sentimentos e lembranças dos sentidos.
        Como não podemos reagir aos sinais do cérebro, usamos a imaginação. Parece simples, mas é um dos mais antigos, subjetivos e profundos mistérios da mente. E como na literatura, a linguagem dos sonhos é o que mais importa.
        O ser humano sempre teve a ânsia de compreender os sonhos, uma proeza que nem a ciência nem a arte conseguem realizar. Soam um pouco pueris as tentativas dos cientistas, com fios e eletrodos medindo as intensidades das ondas do cérebro ou dos rápidos movimentos dos olhos, tentando relacioná-las com os sonhos de uma maneira racional. Parecem um tanto fantásticas as associações feitas por Freud entre os sonhos e os danos emocionais causados, na infância, pelas repressões e distorções do instinto da vida, especialmente o instinto sexual. A interpretação de Artemidoro, em sua fabulosa compilação, Oneirocrítica, que tanta influência teve nas interpretações posteriores, serve mais como um retrato da mentalidade de sua época. E embora Borges costume nos surpreender com a revelação dos significados, suas observações acerca dos sonhos os tornam ainda mais enigmáticos. O sonho é um mundo imperioso. As palavras parecem inadequadas para explica-lo. Talvez fosse preciso se inventar um outro sistema, tão fabuloso quanto o alfabeto o é para a transmissão de pensamento; um sistema mais próximo do ideograma. Tentamos entrar no mundo dos sonhos, relatando-os, e assim percebemos que as palavras não são uma linguagem adequada nem mesmo à anotação onírica, assim como não são adequadas à poesia. Além disso, não é possível escrevermos enquanto dormimos, embora possamos sonhar que estamos escrevendo. Porém o exercício de escrever os sonhos na flagrância, um ato quase irracional, permite se revelar um pouco desse mundo secreto, mesmo sabendo-se que a memória do sonho é apenas uma recriação desse lugar intransponível, o qual não se pode penetrar a não ser pelos valores das metáforas, pela aceitação do absurdo, ou seja, uma libertação da mente.
        Escrevi diversos Cadernos de Sonhos. Eram cadernos, mesmo, de folhas pautadas, presas por um espiral metálico, nas quais eu fazia anotações noturnas, ou matinais, em algumas vezes longos relatos, noutras apenas frases rascunhadas ou simplesmente palavras soltas, telegráficas, que serviam de senha para que, ao despertar, eu pudesse me lembrar do episódio sonhado. Em alguns casos eu desenhava os seres oníricos: pequenos e estranhos animais peludos, felinos com asas, pássaros de fogo, homens com rabo e chifres, mulheres de dentes vermelhos. Com as anotações nos cadernos passei aos poucos a lembrar de sonhos mais distantes, e mais imaginativos. Às vezes de manhã me recordava não de um, mas de uma série deles. Conseguia capturar alguns, por palavras, outros escapuliam. E quanto mais profundos os sonhos, mais misteriosos eram os seres e os acontecimentos.
        Os Cadernos de Sonhos se perderam. Este foi o único que restou. Escrevi-o quando estava grávida de meu filho, durante seu nascimento, e seus primeiros tempos de vida. Eu tinha vinte e um anos.
                                        Caderno de Sonhos. Rio de Janeiro: Dantes, 2000.
Entendendo o conto:

01 – Ao caracterizar os acontecimentos que podem fazer parte de nossos sonhos, a autora lança mão de algumas palavras que nos fazem imaginar muitas coisas.

a)   No caderno, relacione essas palavras aos seus significados:
1 – Líricos.
2 – Bárbaros.
3 – Hediondos.
4 – Depravados.

(1) Sentimentais, sonhadores, apaixonados.
(3) Devassos, corrompidos, pervertidos.
(4) Selvagens, rudes, incultos.
(2) Horrendos, imundos, repulsivos.

b)   Como você imagina que poderiam ser, nos sonhos, acontecimentos “líricos”; “bárbaros”; “hediondos” e “depravados”? Se quiser, parta de seus próprios sonhos para imaginar esses acontecimentos.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O que se quer aqui é que os alunos percebam o alcance das imagens sugeridas pelas palavras trabalhadas.

02 – Leia as frases que aparecem no prefácio do Caderno de Sonhos:
I – “... ou o próprio Freud, que anotou e interpretou clássicos da literatura onírica, sonhos seus, como o da garganta de Irma, e sonhos de seus pacientes, como o dos lobos na árvore [...]”;
II – “Tentamos entrar no mundo dos sonhos, relatando-os, e assim percebemos que as palavras não são uma linguagem adequada nem mesmo à anotação onírica, assim como não são adequadas à poesia.”
III – “Em alguns casos eu desenhava os seres oníricos: pequenos e estranhos animais peludos, felinos com asas, pássaros de fogo, homens com rabo e chifres, mulheres de dentes vermelhos.”

a)   Anote no caderno o que você entende por:
I – Literatura onírica.
Literatura que descreve os sonhos.

II – Anotação onírica.
Anotações dos sonhos.

III – Seres oníricos.
Seres que aparecem nos sonhos.

b)   Escreva um possível significado para “Oneirocrítica”, título do livro escrito pelo autor grego Artemidoro.
Crítica, julgamento ou interpretação dos sonhos.

03 – Para a autora, o mundo dos sonhos tem algo de irrealidade, assim como a arte, a morte e a infância. Você concorda com essa opinião? Explique.
      Resposta pessoal do aluno.

04 – Tomando como base a visão que tinha do mundo dos sonhos, a autor conta episódios da infância e da adolescência.
a)   Que relação a autora tinha com seus sonhos durante a infância?
Tinha muito medo de seus próprios sonhos.

b)   E na adolescência?
Superou o medo e passou a anotar o que sonhava.

c)   Pode-se dizer que, quanto aos sonhos, a visão da criança e da adolescente é a mesma? Justifique sua resposta com base no texto.
Não. A autora deixa claro que, quando criança, tinha medo dos próprios sonhos. Ao se tornar adolescente, porém, esse medo se transformou em interesse, tanto que ela começou a anotar seus sonhos, talvez até buscando compreender sua personalidade noturna.

05 – No 3° parágrafo, a autora afirma:
        “Assim, à medida que eu me interessava pela literatura, me interessava pelos sonhos, e quanto mais me envolvia com os sonhos, mais era absorvida pela literatura.”

a)   Transcreva para o caderno, do 3° e do 4° parágrafos, três frases que relacionem diretamente os sonhos com a literatura.
“Sei que foi uma intuitiva, porém mais tarde descobri que essa era uma antiga prática literária, há escritores de sonhos, como o norte-americano Van Dusen...” / “A literatura é repleta de menções a sonhos, quando não por eles constituída.” / “O sonho é uma espécie de experiência literária. São as frases que relacionam diretamente o mundo onírico ao universo literário.”

b)   A partir do que você compreendeu dessas colocações da autora, explique qual seria, para ela, o principal ponto em comum quando se fala de sonhos e de literatura.
Resposta pessoal do aluno.

06 – No 6° parágrafo, a autora afirma: “O sonho é um mundo imperioso”.
a)   Explique o que você entende por essa frase.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O sonho tem um grande poder e domina a mente durante o sono, coo se fosse um imperador, de tal modo que não temos controle sobre ele.

b)   Dos trechos a seguir, copie aqueles em que se mostra a ciência tentando desvendar o mundo dos sonhos.
I – “Soam um pouco pueris as tentativas dos cientistas, com fios e eletrodos medindo as intensidades das ondas do cérebro ou dos rápidos movimentos dos olhos, tentando relacioná-las com os sonhos de uma maneira racional.”
II – “Parecem um tanto fantásticas as associações feitas por Freud entre os sonhos e os danos emocionais causados, na infância, pelas repressões e distorções do instinto da vida, especialmente o instinto sexual.”
III – “Há obras literárias escritas por visionários sonhadores, como William Blake, ou Goethe, que, com o Romantismo, rejeitaram o pensamento racionalista em favor do poder criativo da imaginação.”

07 – A autora declara que costumava anotar seus sonhos utilizando a linguagem verbal.

a)   Para ela, essa linguagem consegue recuperar o universo completo que é um sonho? Explique, justificando a resposta com uma passagem do texto.
Não. Tanto que ela sugere que seria preciso criar um outro sistema para anotar os sonhos, algo que misturasse palavra e imagem, como um ideograma.

b)   Apesar dessa opinião, a autora continuou anotando aquilo que sonhava. De que outra linguagem, além da verbal, ela lançou mão para representar as imagens de seus sonhos?
Do deserto.

08 – No caderno, indique a alternativa que deixa claro por que o texto de Ana Miranda pode ser chamado de “prefácio”:
a)   É uma narrativa na qual a autora recorda seus sonhos de infância, de adolescência e os analisa.
b)   É um texto expositivo no qual a autora explica seus sonhos e pesadelos, fazendo análise sobre eles.
c)   É um texto poético no qual aparecem belas imagens oníricas e descrições criativas de sonhos.
d)   É um texto em que a autora justifica, com o auxilia dos seus conhecimentos oníricos e da narração de alguns de seus sonhos, a publicação do livro.

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