domingo, 16 de junho de 2019

CONTO: NÃO CHORE, PAPAI - SÉRGIO FARACO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Não chore, papai
        
    Sérgio Faraco

   Embora você proibisse, tínhamos combinado: depois da sesta iríamos ao rio e a bicicleta já estava no corredor que ia dar na rua. Era uma Birmingham que Tia Gioconda comprara em São Paulo e enlouquecia os piás da vizinhança, que a pediam para andar na praça e depois, agradecidos, me presenteavam com estampas do Sabonete Eucalol.
        Na hora da sesta nossa rua era como as ruas de uma cidade morta. Os raros automóveis pareciam sestear também, à sombra dos cinamomos, e nenhum vivente se expunha ao fogo das calçadas. Às vezes passava chiando uma carroça e então alguém, querendo, podia pensar: como é triste a vida de cavalo.
        Em casa a sesta era completa, o cachorro sesteava, o gato, sesteavam as galinhas nos cantos sombrios do galinheiro. Mariozinho e eu, você mandava, sesteávamos também, mas naquela tarde a obediência era fingida.
        Longe, longíssimo era o rio, para alcançá-lo era preciso atravessar a cidade, o subúrbio e um descampado de perigosa solidão. Mas o que e a quem temeríamos, se tínhamos a Birmingham? Era a melhor bicicleta do mundo, macia de pedalar coxilha acima e como dava gosto de ouvir, nos lançantes, o delicado sussurro da catraca!
        Tínhamos a Birmingham, mas era a primeira vez que, no rio, não tínhamos você, por isso redobrei os cuidados com o mano. Fiz com que sentasse na areia para juntar seixos e conchinhas e enquanto isso, eu, que era maior e tinha pernas compridas, entrava n’água até o peito e me segurava no pilar da ponte ferroviária.
        Estava nu e ali mesmo me deixei ficar, a fruir cada minuto, cada segundo daquela mansa liberdade, vendo o rio como jamais o vira, tão amável e bonito como teriam sido, quem sabe, os rios do Paraíso. E era muito bom saber que ele ia dar num grande rio e este num maior ainda, e que as mesmas águas, dando no mar, iam banhar terras distantes, tão distantes que nem a Tia Gioconda conhecia.
        Eu viajava nessas águas e cada porto era uma estampa do cheiroso sabonete.
        Senhores passageiros, este é o Taj Mahal, na Índia, e vejam a Catedral de Notre Dame na capital da França, a Esfinge do Egito, o Partenon da Grécia e esta, senhores passageiros, é a Grande Muralha da China – isso sem falar nas antigas maravilhas, entre elas a que eu mais admirava, os Jardins Suspensos que Nabucodonosor mandara fazer para sua amada, a filha de Ciáxares, que desafeita ao pó da Babilônia vivia nostálgica das verduras da Média.
        E me prometia viajar de verdade, um dia, quando crescesse, e levar meu irmãozinho para que não se tornasse, ai que pena, mais um cavalo nas ruas da cidade morta, e então vi no alto do barranco você e seu Austin.
        Comecei a voltar e perdi o pé e nadei tão furiosamente que, adiante, já braceava no raso e não sabia. Levantei-me, exausto, você estava à minha frente, rubro e com as mãos crispadas.
        Mariozinho foi com você no Austin, eu pedalando atrás e adivinhando o outro lado da ventura: aquele rio que parecia vir do Paraíso ia desembocar no Inferno.
        Você estacionou o carro e mandou o mano entrar. Pôs-se a amaldiçoar Tia Gioconda e, agarrando a bicicleta, ergueu-a sobre a cabeça e a jogou no chão. Minha Birmingham, gritei. Corri para levantá-la, mas você se interpôs, desapertou o cinto e apontou para a garagem, medonho lugar dos meus corretivos.
        Sentado no chão, entre cabeceiras de velhas camas e caixotes de ferragem caseira, esperei que você viesse. Esperei sem medo, nenhum castigo seria mais doloroso do que aquele que você já dera. Mas você não veio. Quem veio foi mamãe, com um copo de leite e um pires de bolachinha-maria. Pediu que comesse e fosse lhe pedir perdão. E passava a mão na minha cabeça, compassiva e triste.
        Entrei no quarto. Você estava sentado na cama, com o rosto entre as mãos. “Papai”, e você me olhou como se não me conhecesse ou eu não estivesse ali. “Perdão”, pedi. Você fez que sim com a cabeça e no mesmo instante dei meia-volta, fui recolher minha pobre bicicleta, dizendo a mim mesmo, jurando até, que você podia perdoar quantas vezes quisesse, mas que eu jamais o perdoaria.
        Mas não chore, papai.
        Quem, em menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os Jardins da Babilônia e outras estampas do Sabonete Eucalol não acha em seu coração lugar para o rancor. Eu jurei em falso. Eu perdoei você.

                 Sérgio Faraco. Dançar tango em Porto Alegre. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2004.

Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo.
·        Birmingham: bicicleta produzida na cidade de Birmingham, Inglaterra.
·        Bracear: mover os braços ao nadar.
·        Cinamomo: nome de um arbusto ou árvore.
·        Crispado: contraído.
·        Lançante: ladeira, descida.
·  Seixo: pedra pequena e arredondada, muito comum em leitos e margens de rios.

02 – O primeiro parágrafo do conto já revela ao leitor que a história está construída sobre um ato de desobediência.
a)   Que expressão revela isso?
“Embora você proibisse”.

b)   De que desobediência se trata?
Os meninos vão sozinhos de bicicleta até o rio no horário da sesta, o que havia sido proibido pelo pai.

c)   Encontre nesse parágrafo uma frase que expresse a ansiedade do protagonista em relação ao passeio até o rio.
“[...] e a bicicleta já estava no corredor que ia dar na rua”.

03 – No conto que você leu, há um conflito presente desde o início da narrativa. Qual é esse conflito?
      O conflito entre a proibição do pai e a decisão do menino de ir até o rio.

04 – Banhar-se no rio traz uma dupla satisfação para o menino: o contato físico com a água e o que essa água representa para ele.
a)   Que sensações o menino experimenta ao entrar no rio?
O menino sente-se tranquilo, livre e feliz, como se estivesse no paraíso.

b)   Que outras impressões a água do rio traz à imaginação do menino?
O menino sente-se conectado à vastidão do mundo por meio do rio, pois sabe que a água do rio vai desembocar em um outro rio, maior, e dali chegará ao mar, que banha terras muito distantes, cuja existência ele conhece pelas estampas do Sabonete Eucalol.

05 – Releia: “Eu viajava nessas águas e cada porto era uma estampa do cheiroso sabonete”.
a)   Que sentido tem a palavra viajava nesse trecho?
A palavra viajava tem sentido de “imaginava”, “fantasiava”, “transportava-me para outra realidade”.

b)   Que relação há entre a viagem do menino e as estampas do sabonete?
As estampas do Sabonete Eucalol revelam lugares muito distantes, fantásticos, maravilhosos, que mexem com a imaginação do menino.

c)   Que característica da personalidade do narrador-personagem fica evidente nessa passagem?
A característica de ser muito imaginativo e sonhador.

06 – Em determinado momento, a tensão da narrativa cresce, em uma sucessão de eventos, até explodir em um ato violento.
a)   Que fato determina esse momento de maior tensão?
O aparecimento do pai.

b)   Qual é a expectativa do menino com relação à atitude do pai?
Ele acredita que o pai vai brigar com ele, puni-lo pela desobediência.

c)   Quais eventos acrescentam tensão ao conto?
O pai leva o irmãozinho do narrador de volta para casa; o pai amaldiçoa a tia Gioconda por ter dado a bicicleta ao menino.

d)   Que ato violento fecha a cena do rio?
O ato, praticado pelo pai, de levantar a bicicleta e atirá-lo ao chão.

07 – Após o clímax, a situação se transforma. Enquanto espera pelo castigo do pai na garagem, o que muda no sentimento do menino? Por quê?
      O menino não sente mais medo, pois nenhum castigo seria mais doloroso do que ter a bicicleta jogada ao chão pelo pai.

08 – Releia:
        “Mas não chore, papai.
        Quem, em menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os Jardins da Babilônia e outras estampas do Sabonete Eucalol não acha em seu coração lugar para o rancor. Eu jurei em falso. Eu perdoei você.”

a)   Por que motivo o pai choraria?
Talvez por ter sentido muito medo do que poderia ter acontecido aos meninos quando nadavam no rio; pelo alívio de tê-los encontrado bem; e, ainda, por imaginar que se excedera ao jogar a bicicleta violentamente no chão.

b)   Embora a frase: “Mas não chore, papai.”, dita pelo narrador, já tivesse sido anunciada no título, ao aparecer no final do conto causa uma quebra de expectativa na leitura. Por quê?
A frase surpreende o leitor, pois quem tinha bons motivos para chorar, por tudo o que foi narrado, era o menino.

09 – Embora jurasse que não iria jamais perdoar o pai, o narrador surpreende o leitor no final do conto: “Eu jurei em falso. Eu perdoei você”. Essas frases indicam que o narrador-personagem está contando os fatos em um tempo diferente do acontecido.
a)   Em que momento da vida do protagonista ocorreram os fatos narrados?
Na época de sua infância.

b)   Em que momento de sua vida o protagonista nos conta sua história? Justifique sua resposta com elementos do conto.
O protagonista já é adulto quando narra essa história. A frase: “Quem em menino [...] sonhou com os jardins da Babilônia [...]” e o próprio ato de ter perdoado o pai, embora tivesse jurado que não faria na ocasião, indicam uma análise mais madura do episódio, compreendendo a fúria do pai.

10 – Quem escreveu o conto “Não chore, papai”?
      O autor Sérgio Faraco.

11 – Quem é o narrador da história?
      O narrador é um menino que sai de casa escondido do pai, com o irmão mais novo, para ir nadar no rio.

12 – Que papel tem o narrador nessa história?
      O narrador desempenha o papel de personagem principal da história, tendo participado de todos os acontecimentos.

25 comentários:

  1. Valeu me salvou de ler o texto enorme 😘👋🏻

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  2. Obrigadaaaaa me ajudou muitooo🖤🖤🖤🖤

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  3. Tem mais peguntas no meu tem ate a 15

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