Conto: A República dos Argonautas
Anna Flora
Eu morava em um bairro chamado Vila
Madalena. Nos anos 70 algumas ruas ainda eram de terra, todas com nomes
bonitos: Girassol, Córrego das Corujas, Harmonia, Simpatia, Fidalga, Purpurina,
Cardeal Arcoverde, Original. Nós andávamos pelo bairro à vontade; não era como
hoje, que os pais ficam com medo quando a gente sai sozinho.
Na esquina da rua Fradique Coutinho com
a Aspicuelta havia uma loja que vendia de tudo: revistas, jornais, álbuns de
figurinha, vassouras, gibis. Quando a turma ganhava mesada, ia direto para lá.
Uma vez meu irmão comprou vinte e seis paraquedistas de plástico.
Mais em frente, na rua Inácio Pereira
da Rocha, tinha uma pinguela e um riozinho. A gente atravessava quando ia para
a casa da dona Mábile, que era costureira e morava na rua Padre João Gonçalves.
Esse passeio era muito legal, porque nos dias de chuva a rua virava uma lama
só. Eu adorava o terreno baldio que ficava em frente, cheio de pés de amora.
Dona Mábile fazia roupas muito bem, mas
eu sentia pena dela. Trabalhava feito doida para pagar os estudos do filho, que
morava em Paris. Ela aceitava qualquer serviço, desde roupa de bebê até vestido
de noiva. Eu achava estranho uma costureira tão pobre ter filho em Paris: por
que ele não estudava aqui mesmo?
Na rua Mourato Coelho ficava uma loja
de tecidos. O dono era seu Jorge. Ele era narigudo e de olhos ver - des. O
filho dele, o Jorginho, narigudo e de olhos azuis. O Jorginho, na Semana Santa,
fazia papel de Cristo na procissão da igreja do Calvário. Eu adorava entrar na
loja e sentir o cheiro dos tecidos novos. Muitas vezes ia lá só para cheirar.
Anos depois, o armarinho foi transformado em um bar que ficou conhecido como
Bar da Terra.
Outro lugar bárbaro era o armazém da
dona Dirce, na rua Simão Álvares. A gente enfiava os braços nos sacos de arroz
e feijão... Uma delícia! Mesmo quando eu já estava com treze anos ainda sentia
vontade de afundar a mão nas lentilhas, mas me controlava um pouco porque todos
diziam que eu já era mocinha.
No entanto, eu ainda gostava de muitas
coisas de criança, como essa de brincar nos sacos da mercearia, colocar
barquinho na enxurrada, jogar mamona ao alvo, organizar circo na rua... Ah!
Tinha também o seu Manoel, que vendia banana no caminhão e anunciava:
“Bananerô, bananerô”.
Na esquina da rua Mourato Coelho com a
Aspicuelta moravam o Chico e o Paulo, que desenhavam muito bem. Nós estudávamos
no mesmo colégio, o Machado de Assis. Às vezes, saindo da escola eu via não sei
se o Chico ou o Paulo, e logo depois, na pracinha, eu encontrava não sei se o
Paulo ou o Chico. Eles eram gêmeos, e eu só comecei a distingui-los porque à
medida que foram crescendo um foi ficando mais hippie do que o outro.
Na Aspicuelta ainda havia um barzão ou
uma padaria, não me lembro mais, onde os velhinhos jogavam dominó. Eles tomavam
conta do lugar como se fosse a casa deles. Até o dono muitas vezes deixava de
atender freguês para jogar uma partida.
Na Vila moravam vários casais
portugueses. Eles costumavam construir nos quintais uma outra casinha para os
filhos. Mais tarde, essas casinhas passaram a ser alugadas para os novos
moradores que foram chegando.
O
bairro parecia cenário do interior. Nossos vizinhos da direita eram dona
Natália e seu Antenor. Os dois vira e mexe, no meio de qualquer conversa, fosse
o assunto que fosse, sempre falavam do filho que estudava medicina.
No lado esquerdo morava Maria Amélia,
que tinha uma sanfona, o rosto cheio de espinha e — coisa mais careta eu achava
— esperava marido.
Em frente ficava a casa do seu Ângelo,
que era barbeiro. Nas noites de Natal ele tocava sax para os moradores, saía
distribuindo música de porta em porta. Seu filho estudava contabilidade e ele
achava o máximo que o rapaz estivesse no Mackenzie, um colégio particular. Eu
sentia uma coisa meio estranha quando seu Ângelo elogiava a contabilidade como
uma profissão segura, porque o elogio não combinava com o seu outro lado
tocador de sax. Pena que música ele só fazia uma vez por ano!
Eu não sabia bem por quê, mas aquelas
pessoas eram parecidas com as ruas da Vila: todas muito simpáticas mas
estreitinhas, para cada desejo um paralelepípedo... Às vezes essas impressões
me pareciam besteira, coisa de criança. Só mais tarde, com Magro, é que percebi
que minha intuição tinha razão de ser. Veja só:
O Zé Luís, filho do seu Jarbas,
estudava engenharia mas gostava de tocar guitarra. O seu Jarbas ficava preocupado,
onde já se viu engenheiro guitarrista? Aí o Zé Luís só ensaiava na casa do Edu
Bolão. E a rua inteira comentava quando a Marisete desfilava de minissaia, e eu
achava lindo, porque ela era manicure, usava umas unhonas vermelhas, tinha as
pernas bonitas e saía na escola de samba da rua Fidalga.
Os meninos e meninas da turma na
maioria pareciam-se com os pais: Zé Renato queria seguir a profissão do avô,
Maria Camila ia fazer escola normal, Paulinho ia escolher uma carreira que
desse dinheiro.
Nada contra quem gosta da mesma
profissão do avô ou quem prefira lecionar. E ser bem-sucedido todo mundo quer,
não é? O lance é que eu sentia uma coisa dentro de mim que não combinava com
eles. Eu não sabia bem o que desejava, mas não era aquela vidinha de tocar
guitarra escondido do pai. Era bom fazer parte da turma, mas às vezes
apertava...
Que nem daquela vez quando a Amelinha
fez quinze anos e todas as meninas da rua acharam a festa ma-ra-vi-lho-sa.
Assim que entrei no salão da ACM e vi minhas amigas vestidas de branco, cheias
de rendinhas, e aqueles caras de fardinha e as flores cor-de-rosa, e o tule
rosa-choque e as velas com florzinhas, e os meninos suando nos fraques e a
maquiagem das meninas derretendo no calor, eu disse para mim: “Chiii... eu não
vou me adaptar”.
Outra ocasião em que a “coisa
esquisita” me bateu fundo foi esta: todas as meninas da turma usavam cabelão.
Naquele tempo a moda era cabelo bem liso e comprido, de preferência loiro. O meu
era castanho e crespo toda a vida. Então a gente puxava o cabelo da esquerda
para a direita, punha bastante grampo, enrolava na cabeça toda e essa tortura
chamava-se touca. E dormia-se de touca, e na manhã seguinte soltava-se o cabelo
e ele estava duro e liso feito palha. Tinha umas loucas que alisavam o cabelo
com ferro de passar roupa para ir mais rápido, mas a esse ponto eu nunca
cheguei.
Pois bem. Uma manhã eu tinha
desentoucado a touca, estava bela e formosa na aula de geografia, quando o japonês
que sentava atrás de mim colou chiclete na minha nuca e eu tive que cortar o
cabelo bem curtinho. O que chorei na cama você nem queira saber. Todos passaram
a me chamar de Joãozinho. Eu fingia que não ligava porque senão a turma ia
pegar mais ainda no meu pé, mas por dentro me sentia horrorosa.
Um dia fui visitar minha prima Lena.
Ela era mais velha do que eu, com um cabelão liso, e me disse uma coisa que me
deixou de queixo caído:
— Antecipando a moda, hein?
— Não é moda — eu disse fazendo bico. —
Foi o Yoshida. Eu acho medonho.
— Imagina! ... — ela comentou. — Cabelo
curtinho e crespo vai ser a próxima onda no verão, você não sabia?
E me mostrou na revista a foto de uma
moça que usava o cabelo muito mais curto do que o meu e era linda. Em cima da
foto estava escrita uma frase que eu não entendi nada, mas que tinha uma
força...: A BELA ATRIZ DO ACOSSADO AMA O LÍDER DOS PANTERAS NEGRAS.
E a moça sentada numa moto abraçava um
negrão bonito com cara brava e jaqueta de couro. O rosto dela era parecido com
a Vênus de biscuit da cristaleira da vovó, mas só pelo olhar a gente logo via
que ela também devia ser daquelas que não se encaixavam na turma.
Aí, por uns instantes, a coisa
esquisita que volta e meia eu sentia não me pareceu tão esquisita assim ...
Então era isso... A beleza do avesso podia ser muito mais bela sem precisar
dormir de touca nem usar madeixas duras de Rapunzel. Como vocês podem ver,
cabelo também era uma questão de cabeça...
Junto
com esse lance da Bela do Acossado foram me acontecendo outros. Dei para sonhar
com uma lua que tentava atravessar o tronco oco de uma árvore. Aí vinha uma
chuva e todos os objetos do meu quarto ficavam com cheiro de terra.
Naquele mês de julho acordei feliz da
vida. Era início das férias, eu podia passear pelo bairro o dia inteiro e fazia
um céu azul de papel crepom. Andando pelo quarteirão, tudo estava em seu devido
lugar: as árvores, as casas, o sapateiro na sapataria, dona Dirce no armazém,
seu Jorge no balcão.
Aos poucos, veio vindo uma brisa suave
que foi aumentando, aumentando... fazendo os ipês forrarem as ruas de pétalas
amarelas. Durante dois dias o ar ficou impregnado com perfume de jasmim. Seu
Ângelo olhou vagarosamente o céu, as árvores e comentou: “Gozado, você está
sentindo esse cheiro? Jasmim não dá no inverno...”.
Na manhã seguinte, Magro chegou.
Junto com ele vieram Pedro, Mário,
Vicente, Zeca e Carlos. Alugaram a casa grande da esquina da Fidalga, pintaram
cada parede de uma cor, desenharam um arco-íris na porta, pregaram uma placa na
entrada: REPÚBLICA DOS ARGONAUTAS.
Nunca mais a Vila Madalena nem eu
seríamos as mesmas.
A república dos
argonautas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 15-20.
Entendendo o conto:
01 – No 1° parágrafo do
texto, a narradora começa contando das ruas do bairro em que morava. Depois de
enumerar os nomes das ruas, ela faz uma comparação entre o presente e o
passado.
a)
Transcreva para o caderno o período que
contém essa comparação.
“Nós andávamos no bairro à vontade; não era como hoje, que os pais
ficam com medo quando a gente sai sozinho.”
b) O
que essa comparação sugere sobre os dias de hoje?
Que hoje em dia há menos segurança nas ruas do que em 1970, naquele
bairro de São Paulo.
c)
A partir de seu cotidiano, você concorda com
essa observação da narradora? Justifique sua opinião.
Resposta pessoal do aluno.
02 – Depois de ler com
atenção os parágrafos de 2 a 7, transcreva para o caderno a única conclusão a
que não se pode chegar com segurança:
a)
A seu modo, a narradora nutria um certo
carinho pelos lugares e pessoas de seu bairro.
b)
Apesar de já ter 13 anos, a própria narradora
admitia que gostava de muitas coisas de criança.
c)
Como ela já era considerada “mocinha”, tentava
se controlar para não fazer coisas típicas de crianças.
d)
Ainda que tivesse 13 anos e fosse
considerada “mocinha”, nessa idade a própria narradora se reconhece como muito
infantil e imatura.
e)
A narradora revela-se alguém com
sensibilidade para perceber o mundo ao seu redor, comportando-se algumas vezes
como criança.
03 – Ao comentar sobre dona
Mábile, no 4° parágrafo, a narradora ressalta que achava estranho uma
costureira tão pobre ter filho estudando em Paris.
a)
Que hipóteses você faria diante da pergunta proposta
no final do parágrafo?
Resposta pessoal do aluno.
b)
Pensando que a história contada pela
narradora se passa por volta de 1970, converse com os colegas e com o professor
sobre a hipótese mais aceitável entre as levantadas por vocês.
Resposta pessoal do aluno. Por ser um rapaz “cheio de ideias”, como
afirma dona Mábile; provavelmente ele não pode permanecer no Brasil e teve se
exilar.
04 – Depois de escrever os
vizinhos de bairro – os velhinhos que jogavam dominó, os casais portugueses,
dona Natália e seu Antenor, Maria Amélia, seu Ângelo –, a narradora faz uma
observação curiosa sobre essas pessoas.
a)
Que observação é essa?
“Eu não sabia bem por quê, mas aquelas pessoas eram parecidas com as
ruas da Vila: todas muito simpáticas mas estreitinhas, para cada desejo um
paralelepípedo.
b)
O que você entende que a narradora quis dizer
com a observação?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Eram como as ruas do bairro:
estreitas e limitadas. Pode-se pensar também que a narradora vê pontos de
aproximação entre os desejos daquelas pessoas e os paralelepípedos.
05 – Mesmo diante da turma,
a narradora passa a sensação de que se sentia deslocada como um peixe fora
d’água. Dê dois exemplos que comprovem isso.
Ela diz que não
vai se adaptar às convenções (baile de debutantes) e questiona as exigências da
moda (touca no cabelo).
06 – De certa forma, o fato
de cortar o cabelo bem curto foi algo significativo na vida da narradora.
a)
Por que usar cabelo curto naquela época e
naquele lugar representava uma ruptura em relação aos costumes?
Porque, em geral, as moças usavam cabelos longos e alisados por
toucas.
b)
Pode-se dizer que a narradora quis, de fato,
cortar o cabelo? Explique.
Cortar o cabelo não foi uma opção, mas uma saída forçada pelo
chiclete colado por Yoshida.
c)
A partir de que informações a narradora passa
a achar o fato de usar cabelo curto algo menos medonho?
A partir do momento em que sua prima Lena lhe diz que cabelo curto
seria moda no verão seguinte e lhe mostra a foto da atriz de Acossado (Jean
Seberg), que usava tal corte.
07 – Ao relembrar algumas
passagens de sua adolescência, a narradora deixa claro que sentia uma “coisa
esquisita” diante de certas atitudes das pessoas. Quando percebe que “a beleza
do avesso podia ser muito mais bela sem precisar dormir de touca nem usar
madeixas duras de Rapunzel”, a narradora parece ter feito uma descoberta
importante. Que relação você enxerga entre essa descoberta e a frase “Como
vocês podem ver, cabelo também era uma questão de cabeça...”?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Usar cabelo curto ou não depende da “cabeça”, da vontade de
cada um, apesar dos modismos ou do que os outros iriam pensar.
08 – Além dessa mudança de
visual, a narradora dá a entender que muitas outras mudanças ocorreriam em sua
vida e na Vila Madalena.
a)
Apesar de tudo transcorrer normalmente
naquele início de mês de julho na Vila Madalena, a narradora se vale de algumas
pistas para anunciar as mudanças que iriam ocorrer. Quais são essas pistas?
Releia os últimos seis parágrafos.
Um sonho, uma brisa suave, um cheiro de jasmim em pleno inverno, a
chegada dos rapazes da República dos Argonautas.
b)
Quais dos órgãos dos sentidos a narradora
escolheu para ilustrar o clima de magia que se instalou na Vila Madalena a
partir daquelas férias? Justifique com passagens do texto.
Visão: “Fazendo os ipês forrarem as ruas de pétalas amarelas”; “Pintaram
cada parede de uma cor”; “Desenharam um arco-íris na porta”.
Olfato: “Durante dois dias o ar ficou impregnado de perfume de jasmim”;
“Gozado, você está sentindo esse cheiro?”.
c)
O que essas imagens impregnadas pelos
sentidos sugerem sobre a Vila Madalena a partir desse momento?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Que a Vila teria ganho mais
cor, mais vida.
09 – Apenas no fim do texto
é possível entender melhor o título “A República dos Argonauas”.
a)
Antes de ler o texto, você refletiu sobre o
título. Depois de conhecer a história narrada, a ideia que você tinha dessa
república mudou ou permaneceu a mesma? Explique.
Resposta pessoal do aluno.
b)
Entre os seis rapazes citados, qual deles
teria tido uma relação mais próxima com a narradora? Justifique sua resposta
com passagens do texto.
Magro, que parece ser alguém importante na vida da narradora. “Só
mais tarde, com Magro, é que percebi que minha intuição tinha razão de ser. Na
manhã seguinte, Magro chegou”.
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