Conto: Julgamentos
No ano de 399 antes da era cristã, se
deram o julgamento e a morte de Sócrates. Ele foi acusado de malfeitor por
excesso de curiosidade: vivia a indagar dos subterrâneos e dos céus.
No julgamento, acusaram-no de se dizer
mais sábio do que todos, e pior, de afirmar que ninguém mais seria sábio.
Sócrates se defendeu, informando que não era bem assim. Ao contrário: toda a
sua sabedoria estava em saber o quanto nada sabia. “Só sei que nada sei”. Ou
seja: o quanto as verdades de então eram provisórias; o quanto lhe faltava, e
aos homens, descobrir e entender; o quanto tudo o que ele, ou qualquer outro,
afirmasse seria passível de dúvida e de desconfiança.
Sócrates se porta, frente à possibilidade
da morte, como homem muito seguro de si mesmo, persuadido de que n raciocínio
claro constitui o requisito mais importante para uma vida reta. Recusa-se a
seguir o costume da cidade, de apresentar ao tribunal filhos chorosos, a fim de
abrandar o coração dos juízes; tais cenas, segundo ele, tornavam tanto o
acusado como a própria cidade ridículos. Compete-lhe convencer os juízes e não
lhes pedir um favor.
Ao ser declarado culpado, lhe era
concedido, de acordo com as leis atenienses, solicitar uma pena menor que a da
morte. Os juízes escolheriam, então, entre a pena de morte sugerida pela
acusação e o castigo sugerido pela defesa. Sócrates, propositalmente, propôs
uma multa baixíssima. O tribunal ficou indignado e o condenou mesmo à morte. Sem
dúvida ele previra tal resultado. É claro que não desejava evitar a pena de
morte mediante concessões que pudessem dar a impressão de um reconhecimento de
culpa.
Não pareceu temer a morte. Porque ou a
morte é um sono sem sonhos – o que seria francamente bom – ou a alma emigra
para outro mundo. E “que não daria um homem para conversar com Orfeo e Museo,
Hesíodo e Homero? Ora, se isso é certo, deixai que eu morra muitas mortes”. No
outro mundo, poderia conversar com outros que sofreram morte injusta e, além de
tudo, continuaria a sua busca de conhecimento. “No outro mundo, não condena um
homem à morte por fazer perguntas”.
Eis a razão das hostilidades contra
Sócrates, contra um filósofo: ele passou a vida fazendo perguntas incômodas.
Perguntas que traziam em seu bojo sérias críticas a pessoas, instituições e
redações. Perguntas que espelhavam sua desconfiança da pretensa sabedoria dos
maiorais e dos religiosos. Por isso ele foi morto – envenenado com cicuta.
Certamente pareceu mais fácil aos atenienses silenciá-lo por meio do veneno do
que enfrentar e sanar os males que ele tão bem apontava, através das suas
perguntas incômodas.
Nesse momento, se o leitor acha que tem
nada a ver o julgamento de Sócrates com esta teoria ética da redação, eu vou
achar que o senhor, ou a senhora, estava lá, entre os acusadores. Porque quase
tudo o que escrevemos, mal ou bem disfarçado, é juízo de valor e julgamento. Se
nossos julgamentos são apressados, atingindo mais a pessoas do que a fatos,
enxergando mais os efeitos do que as causas, apontando sintomas esclarecedores
como se fosse a própria doença, então poderemos continuar condenando homens à
morte por fazerem perguntas; por pensarem; por duvidarem; por questionarem.
Isaac Newton foi um dos maiores gênios
científicos que já viveu. Por volta de 1700, ao fim da vida, invocava a mesma
alegria e modéstia de Sócrates, frente à grandiosidade e complexidade da
natureza.
“Não
sei como pareço para o mundo, mas para mim, sinto-me somente como um menino
brincando na praia divertindo-me, achando aqui e ali um seixo mais liso ou uma
concha mais bonita do que o comum, enquanto o grande oceano da verdade
permanece totalmente desconhecido diante de mim. (Em 12, p. 70-71).”
No século XX, Bertrand Russell também
recupera a máxima socrática: “Só sei que nada sei”. Ao falar de Einstein e da
teoria da relatividade, em 1925, quando a bomba atômica se tornava uma
possibilidade concreta, ele dizia:
“A
conclusão final é que sabemos extremamente pouco, embora seja surpreendente que
conheçamos tanto, e ainda mais surpreendente que tão pouco conhecimento nos
consiga proporcionar tamanho poder. (8. p. 188).”
Ou seja, já sabemos tanto que podemos
ou destruir o planeta vinte vezes ou acabar de vez com a miséria – pela
fertilização dos desertos, pelo controle da natalidade, pela democratização da
educação, pela socialização racional e amorosa das riquezas. Mas esse tanto é
tão pouco, quando vemos o quanto estamos mais próximos da destruição do planeta
do que do fim da miséria.
Esse drama, o da nossa espécie nesta
época, capaz de produzir o seu suicídio coletivo ou a sua felicidade coletiva,
tragicamente mais perto do suicídio do que da felicidade, estará presente e
latente em todo e qualquer pensamento, em toda e qualquer expressão de
pensamentos. Escrever como os últimos presidentes americanos em seus discursos,
megalomaniacamente julgando tudo e todos sob a sua ótica distorcida, nem
antropocêntrica, mas “ianquecêntrica”, condenando tudo e todos à mira das
ogivas nucleares. Ou escrever como Mahatma Gandhi, pacifista disposto a
construir a paz passo a passo, pessoa a pessoa, fato por fato, escreveu em 1946
(pouco depois de Hiroshima).
Amigos americanos sugeriram que a bomba
atômica vai promover ahimsa (não-violência) como nada mais seria capaz de
conseguir. Vai mesmo, se o seu poder destrutivo causar tanto horror que
desviará o mundo da violência, pelo menos por algum tempo. É como um homem que
se empanturra de guloseimas ao ponto de ficar nauseando e depois se afasta, só
para voltar mais tarde, com uma voracidade redobrada, depois que passa o enjoo.
Exatamente da mesma maneira o mundo retornará à violência, com renovado
empenho, depois que esmaecer o efeito do horror. (...) Até onde posso perceber,
a bomba atômica arrefeceu o melhor sentimento que sustentou a humanidade por
séculos. Havia as chamadas leis de guerra que a tornavam tolerável. Agora,
conhecemos a verdade nus e crua. A guerra não conhece qualquer lei, exceto a do
poder. A bomba atômica trouxe uma vitória vazia para os exércitos aliados, a
destruição da alma do Japão. Ainda é muito cedo para saber o que aconteceu à
alma da nação destruidora. (35. p. 97-99).
Redação
Inquieta. Belo Horizonte: Formato, 2000. p.212-215.
Entendendo o conto:
01 – Existem várias formas
de iniciar um texto ou um parágrafo. O autor Gustavo Bernardo começou seu texto
com uma alusão histórica, baseada em fatos reais.
a)
Que personalidade história foi a escolhida?
Sócrates.
b)
O autor explora que fato ligado à vida dessa
pessoa?
Seu julgamento, especialmente a atitude dele diante das acusações
que lhe eram feitas.
c)
Que frase, dita por essa personalidade
histórica, resume seu pensamento a propósito do conhecimento sobre as coisas?
“Só sei que nada sei”.
d)
O que você entende pela frase apontada na
resposta da letra “c” (anterior)?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A frase sugere que o filósofo
reconhece seu não-saber diante das coisas do mundo, sendo essa a sua única
certeza.
02 – Depois de contar, em linhas
gerais, os motivos que levaram o filósofo grego a julgamento, o autor passa a
narrar a atitude de Sócrates diante dos juízes. Entre as alternativas a seguir,
transcreva para o caderno aquela que melhor traduz a postura de Sócrates em seu
julgamento:
a)
Sócrates mostrou-se seguro de si mesmo, mas
não diante dos juízes, motivo que o levou a ser condenado.
b)
O filósofo seguiu a tradição e levou seus
filhos ao tribunal para que impressionassem os juízes diante da eventual morte
do pai.
c)
Sócrates conseguiu convencer os juízes de sua
inocência, utilizando um raciocínio claro e expondo sua vida reta.
d)
Como o acusado não se julgava
culpado, ele apresentou aos juízes uma solução inaceitável.
e)
Entre morrer e pagar uma multa altíssima,
Sócrates preferiu morrer.
03 – Partindo do princípio
de que a morte é um sono sem sonhos ou que alma emigra para outro mundo, que
vantagens Sócrates enxergou em morrer?
Poderia encontrar
grandes nomes da cultura grega (Orfeo, Museo, Hesíodo, Homero); poderia
conversar com outros que, como ele, sofreram morte injusta; continuaria sua
busca de conhecimento.
04 – De acordo com o texto,
Sócrates teria sido hostilizado porque fazia perguntas incômodas. Você se
lembra de outras pessoas ou personagens que, assim como Sócrates, incomodavam
com seus questionamentos e por isso foram punidas? Exemplifique.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Podemos lembrar das vítimas da Inquisição, da Coroa
Portuguesa ou da ditadura militar.
05 – No 7° parágrafo, o
autor dirige-se diretamente ao leitor do texto. Nesse momento, ele dá um recado
importante para todos aqueles que leem ou produzem textos.
a)
Que recado é esse?
“Quase tudo o que escrevemos, bem ou mal disfarçado, é juízo de
valor e julgamento”.
b)
Você concorda com a afirmação apontada na
(anterior) resposta de “a”? Justifique seu ponto de vista.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Mesmo um texto dito neutro,
como o jornalístico, contém juízos de valor e julgamentos.
06 – Depois de explorar a
alusão feita a Sócrates, Gustavo Bernardo cita Isaac Newton e Bertrand Russell,
utilizando um outro recurso argumentativo: o testemunho autorizado.
a)
Newton cria uma imagem metafórica para
mostrar como se sente frente à natureza. Relacione as palavras de Newton àquilo
que elas sugerem:
I –
“Concha mais bonita”.
II –
“Menino brincando na praia”.
III
– “Grande oceano da verdade”.
IV –
“Seixo mais liso”.
Conhecimento
= III.
Uma
descoberta = I e
IV.
O
próprio cientista que lida com o conhecimento = II.
b)
Em que medida os pensamentos de Newton e de
Sócrates se assemelham?
Ambos, apesar do vasto conhecimento, afirmam que sabem muito pouco.
c)
Relendo o que disse Russell, pode-se dizer que
seu pensamento difere daquele do cientista e do filósofo? Justifique sua
resposta.
Não. Russell, assim como Newton e Sócrates, pensa que “sabemos
extremamente pouco, embora seja surpreendente que conheçamos tanto (...)”.
07 – No 10° parágrafo,
aparece a seguinte opinião:
“(...)
já sabemos tanto que podemos ou destruir o planeta vinte vezes ou acabar de vez
com a miséria (...)”.
a)
De quem é essa opinião?
De Gustavo Bernardo, autor do texto.
b)
Das duas opções que o autor dessa opinião
apresenta em seu raciocínio, qual delas está prevalecendo, segundo ele?
O autor acha que estamos mais próximos de destruir o planeta.
c)
Dos argumentados apresentados a seguir,
transcreva para o caderno o que justifica melhor a ideia expressa na resposta
de “b”. Para isso, releia o 13° parágrafo.
I – Há pessoas influentes que agem de forma megalomaníaca, vendo o
mundo exclusivamente sob seu próprio ponto de vista.
II –
Há defensores da paz que se opõem à miséria e agem contra ela.
III
– Há pessoas que só pensam em si.
d)
Dê um exemplo baseado na história da
humanidade, diferente dos apresentados pelo autor, que comprove a sua resposta
anterior.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pode ser citado como: o
nazismo, as guerras mundiais, as ditaduras, a intolerância religiosa...
08 – No final do texto, nos
dois últimos parágrafos, o autor apresenta duas posturas em relação ao poder de
destruição do homem.
a)
Segundo ele, essas duas posturas foram
adotadas por quem?
Pelos últimos presidentes americanos e por Mahatma Gandhi.
b)
Essas duas posturas se equivalem ou se opõem?
Explique.
Há uma relação de oposição entre elas: de um lado, os últimos
presidentes americanos, que ameaçam o mundo com o poder destrutivo de suas
ogivas nucleares; de outro lado, Gandhi, pacifista indiano que não enxergava a
bomba atômica como um elemento a favor da paz.
c)
Na citação de Gandhi, a imagem do homem que
se empanturra de guloseimas pode ser comparada a qual dessas posturas?
À daqueles que, depois de exageraram na violência, precisam de um
intervalo para retomá-la mais tarde, com maior avidez.
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