domingo, 9 de junho de 2019

CONTO: JULGAMENTOS - GUSTAVO BERNARDO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Julgamentos
       

  Gustavo Bernardo

        No ano de 399 antes da era cristã, se deram o julgamento e a morte de Sócrates. Ele foi acusado de malfeitor por excesso de curiosidade: vivia a indagar dos subterrâneos e dos céus.
        No julgamento, acusaram-no de se dizer mais sábio do que todos, e pior, de afirmar que ninguém mais seria sábio. Sócrates se defendeu, informando que não era bem assim. Ao contrário: toda a sua sabedoria estava em saber o quanto nada sabia. “Só sei que nada sei”. Ou seja: o quanto as verdades de então eram provisórias; o quanto lhe faltava, e aos homens, descobrir e entender; o quanto tudo o que ele, ou qualquer outro, afirmasse seria passível de dúvida e de desconfiança.
        Sócrates se porta, frente à possibilidade da morte, como homem muito seguro de si mesmo, persuadido de que n raciocínio claro constitui o requisito mais importante para uma vida reta. Recusa-se a seguir o costume da cidade, de apresentar ao tribunal filhos chorosos, a fim de abrandar o coração dos juízes; tais cenas, segundo ele, tornavam tanto o acusado como a própria cidade ridículos. Compete-lhe convencer os juízes e não lhes pedir um favor.
        Ao ser declarado culpado, lhe era concedido, de acordo com as leis atenienses, solicitar uma pena menor que a da morte. Os juízes escolheriam, então, entre a pena de morte sugerida pela acusação e o castigo sugerido pela defesa. Sócrates, propositalmente, propôs uma multa baixíssima. O tribunal ficou indignado e o condenou mesmo à morte. Sem dúvida ele previra tal resultado. É claro que não desejava evitar a pena de morte mediante concessões que pudessem dar a impressão de um reconhecimento de culpa.
        Não pareceu temer a morte. Porque ou a morte é um sono sem sonhos – o que seria francamente bom – ou a alma emigra para outro mundo. E “que não daria um homem para conversar com Orfeo e Museo, Hesíodo e Homero? Ora, se isso é certo, deixai que eu morra muitas mortes”. No outro mundo, poderia conversar com outros que sofreram morte injusta e, além de tudo, continuaria a sua busca de conhecimento. “No outro mundo, não condena um homem à morte por fazer perguntas”.
        Eis a razão das hostilidades contra Sócrates, contra um filósofo: ele passou a vida fazendo perguntas incômodas. Perguntas que traziam em seu bojo sérias críticas a pessoas, instituições e redações. Perguntas que espelhavam sua desconfiança da pretensa sabedoria dos maiorais e dos religiosos. Por isso ele foi morto – envenenado com cicuta. Certamente pareceu mais fácil aos atenienses silenciá-lo por meio do veneno do que enfrentar e sanar os males que ele tão bem apontava, através das suas perguntas incômodas.
      Nesse momento, se o leitor acha que tem nada a ver o julgamento de Sócrates com esta teoria ética da redação, eu vou achar que o senhor, ou a senhora, estava lá, entre os acusadores. Porque quase tudo o que escrevemos, mal ou bem disfarçado, é juízo de valor e julgamento. Se nossos julgamentos são apressados, atingindo mais a pessoas do que a fatos, enxergando mais os efeitos do que as causas, apontando sintomas esclarecedores como se fosse a própria doença, então poderemos continuar condenando homens à morte por fazerem perguntas; por pensarem; por duvidarem; por questionarem.
        Isaac Newton foi um dos maiores gênios científicos que já viveu. Por volta de 1700, ao fim da vida, invocava a mesma alegria e modéstia de Sócrates, frente à grandiosidade e complexidade da natureza.  
        “Não sei como pareço para o mundo, mas para mim, sinto-me somente como um menino brincando na praia divertindo-me, achando aqui e ali um seixo mais liso ou uma concha mais bonita do que o comum, enquanto o grande oceano da verdade permanece totalmente desconhecido diante de mim. (Em 12, p. 70-71).”
        No século XX, Bertrand Russell também recupera a máxima socrática: “Só sei que nada sei”. Ao falar de Einstein e da teoria da relatividade, em 1925, quando a bomba atômica se tornava uma possibilidade concreta, ele dizia:
        “A conclusão final é que sabemos extremamente pouco, embora seja surpreendente que conheçamos tanto, e ainda mais surpreendente que tão pouco conhecimento nos consiga proporcionar tamanho poder. (8. p. 188).”
        Ou seja, já sabemos tanto que podemos ou destruir o planeta vinte vezes ou acabar de vez com a miséria – pela fertilização dos desertos, pelo controle da natalidade, pela democratização da educação, pela socialização racional e amorosa das riquezas. Mas esse tanto é tão pouco, quando vemos o quanto estamos mais próximos da destruição do planeta do que do fim da miséria.
        Esse drama, o da nossa espécie nesta época, capaz de produzir o seu suicídio coletivo ou a sua felicidade coletiva, tragicamente mais perto do suicídio do que da felicidade, estará presente e latente em todo e qualquer pensamento, em toda e qualquer expressão de pensamentos. Escrever como os últimos presidentes americanos em seus discursos, megalomaniacamente julgando tudo e todos sob a sua ótica distorcida, nem antropocêntrica, mas “ianquecêntrica”, condenando tudo e todos à mira das ogivas nucleares. Ou escrever como Mahatma Gandhi, pacifista disposto a construir a paz passo a passo, pessoa a pessoa, fato por fato, escreveu em 1946 (pouco depois de Hiroshima).
        Amigos americanos sugeriram que a bomba atômica vai promover ahimsa (não-violência) como nada mais seria capaz de conseguir. Vai mesmo, se o seu poder destrutivo causar tanto horror que desviará o mundo da violência, pelo menos por algum tempo. É como um homem que se empanturra de guloseimas ao ponto de ficar nauseando e depois se afasta, só para voltar mais tarde, com uma voracidade redobrada, depois que passa o enjoo. Exatamente da mesma maneira o mundo retornará à violência, com renovado empenho, depois que esmaecer o efeito do horror. (...) Até onde posso perceber, a bomba atômica arrefeceu o melhor sentimento que sustentou a humanidade por séculos. Havia as chamadas leis de guerra que a tornavam tolerável. Agora, conhecemos a verdade nus e crua. A guerra não conhece qualquer lei, exceto a do poder. A bomba atômica trouxe uma vitória vazia para os exércitos aliados, a destruição da alma do Japão. Ainda é muito cedo para saber o que aconteceu à alma da nação destruidora. (35. p. 97-99).

                  Redação Inquieta. Belo Horizonte: Formato, 2000. p.212-215.

Entendendo o conto:

01 – Existem várias formas de iniciar um texto ou um parágrafo. O autor Gustavo Bernardo começou seu texto com uma alusão histórica, baseada em fatos reais.
a)   Que personalidade história foi a escolhida?
Sócrates.

b)   O autor explora que fato ligado à vida dessa pessoa?
Seu julgamento, especialmente a atitude dele diante das acusações que lhe eram feitas.

c)   Que frase, dita por essa personalidade histórica, resume seu pensamento a propósito do conhecimento sobre as coisas?
“Só sei que nada sei”.

d)   O que você entende pela frase apontada na resposta da letra “c” (anterior)?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A frase sugere que o filósofo reconhece seu não-saber diante das coisas do mundo, sendo essa a sua única certeza.

02 – Depois de contar, em linhas gerais, os motivos que levaram o filósofo grego a julgamento, o autor passa a narrar a atitude de Sócrates diante dos juízes. Entre as alternativas a seguir, transcreva para o caderno aquela que melhor traduz a postura de Sócrates em seu julgamento:
a)   Sócrates mostrou-se seguro de si mesmo, mas não diante dos juízes, motivo que o levou a ser condenado.
b)   O filósofo seguiu a tradição e levou seus filhos ao tribunal para que impressionassem os juízes diante da eventual morte do pai.
c)   Sócrates conseguiu convencer os juízes de sua inocência, utilizando um raciocínio claro e expondo sua vida reta.
d)   Como o acusado não se julgava culpado, ele apresentou aos juízes uma solução inaceitável.
e)   Entre morrer e pagar uma multa altíssima, Sócrates preferiu morrer.

03 – Partindo do princípio de que a morte é um sono sem sonhos ou que alma emigra para outro mundo, que vantagens Sócrates enxergou em morrer?
      Poderia encontrar grandes nomes da cultura grega (Orfeo, Museo, Hesíodo, Homero); poderia conversar com outros que, como ele, sofreram morte injusta; continuaria sua busca de conhecimento.

04 – De acordo com o texto, Sócrates teria sido hostilizado porque fazia perguntas incômodas. Você se lembra de outras pessoas ou personagens que, assim como Sócrates, incomodavam com seus questionamentos e por isso foram punidas? Exemplifique.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Podemos lembrar das vítimas da Inquisição, da Coroa Portuguesa ou da ditadura militar.

05 – No 7° parágrafo, o autor dirige-se diretamente ao leitor do texto. Nesse momento, ele dá um recado importante para todos aqueles que leem ou produzem textos.
a)   Que recado é esse?
“Quase tudo o que escrevemos, bem ou mal disfarçado, é juízo de valor e julgamento”.

b)   Você concorda com a afirmação apontada na (anterior) resposta de “a”? Justifique seu ponto de vista.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Mesmo um texto dito neutro, como o jornalístico, contém juízos de valor e julgamentos.

06 – Depois de explorar a alusão feita a Sócrates, Gustavo Bernardo cita Isaac Newton e Bertrand Russell, utilizando um outro recurso argumentativo: o testemunho autorizado.
a)   Newton cria uma imagem metafórica para mostrar como se sente frente à natureza. Relacione as palavras de Newton àquilo que elas sugerem:
I – “Concha mais bonita”.
II – “Menino brincando na praia”.
III – “Grande oceano da verdade”.
IV – “Seixo mais liso”.
Conhecimento = III.
Uma descoberta = I e IV.
O próprio cientista que lida com o conhecimento = II.

b)   Em que medida os pensamentos de Newton e de Sócrates se assemelham?
Ambos, apesar do vasto conhecimento, afirmam que sabem muito pouco.

c)   Relendo o que disse Russell, pode-se dizer que seu pensamento difere daquele do cientista e do filósofo? Justifique sua resposta.
Não. Russell, assim como Newton e Sócrates, pensa que “sabemos extremamente pouco, embora seja surpreendente que conheçamos tanto (...)”.

07 – No 10° parágrafo, aparece a seguinte opinião:
        “(...) já sabemos tanto que podemos ou destruir o planeta vinte vezes ou acabar de vez com a miséria (...)”.

a)   De quem é essa opinião?
De Gustavo Bernardo, autor do texto.

b)   Das duas opções que o autor dessa opinião apresenta em seu raciocínio, qual delas está prevalecendo, segundo ele?
O autor acha que estamos mais próximos de destruir o planeta.

c)   Dos argumentados apresentados a seguir, transcreva para o caderno o que justifica melhor a ideia expressa na resposta de “b”. Para isso, releia o 13° parágrafo.
I – Há pessoas influentes que agem de forma megalomaníaca, vendo o mundo exclusivamente sob seu próprio ponto de vista.
II – Há defensores da paz que se opõem à miséria e agem contra ela.
III – Há pessoas que só pensam em si.

d)   Dê um exemplo baseado na história da humanidade, diferente dos apresentados pelo autor, que comprove a sua resposta anterior.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pode ser citado como: o nazismo, as guerras mundiais, as ditaduras, a intolerância religiosa...

08 – No final do texto, nos dois últimos parágrafos, o autor apresenta duas posturas em relação ao poder de destruição do homem.
a)   Segundo ele, essas duas posturas foram adotadas por quem?
Pelos últimos presidentes americanos e por Mahatma Gandhi.

b)   Essas duas posturas se equivalem ou se opõem? Explique.
Há uma relação de oposição entre elas: de um lado, os últimos presidentes americanos, que ameaçam o mundo com o poder destrutivo de suas ogivas nucleares; de outro lado, Gandhi, pacifista indiano que não enxergava a bomba atômica como um elemento a favor da paz.

c)   Na citação de Gandhi, a imagem do homem que se empanturra de guloseimas pode ser comparada a qual dessas posturas?
À daqueles que, depois de exageraram na violência, precisam de um intervalo para retomá-la mais tarde, com maior avidez.


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