História: Tranquila
tarde de inverno entre pai, filha e chocolates
Ruy Guerra
Lisboa – Estava um frio de cão e
terminava a tarde de sábado com um romance policial. A minha filha brincava
sozinha com as pedras de um jogo de gamão, última mania da casa. Debaixo de um
imenso edredom azul, minha mulher ganhava coragem pra enfrentar a preparação do
jantar.
-- Papai, é verdade que a gente só deve
dizer a verdade?
Dandara tem 10 anos e é um monstrinho
de olhos azuis.
Menti.
-- É.
-- Então por que é que no outro dia você
falou para o Joaquim Pedro que ele fez bem em não ter dito a verdade?
Tinham dado ao pai de Joaquim Pedro
alguns meses de vida e ele preferira não lhe contar. Viera desabafar comigo e
não me dera conta que a minha filha, que parecia absorta numa revistinha do
“Cascão”, escutara a conversa.
-- Era um caso muito especial.
-- Quer dizer então que em casos muito
especiais a gente pode mentir?
-- Pode.
-- Como é que a gente sabe que o caso é
muito especial?
Desconversei, perguntei o que íamos
comer, Leo perguntou se estávamos de acordo com umas costeletas de borrego e
seguiu para a cozinha.
A minha filha voltou à carga.
-- Quando, papai?
-- Quando o quê?
-- Quando é que a gente sabe que é um
caso muito especial?
-- Você vai entender quando crescer.
-- Mas agora, como é que eu faço para
saber quando devo mentir?
Me senti desconfortável enquanto
respondia.
-- Na tua idade não se deve nunca
mentir.
-- Quer dizer que só adulto é que deve
mentir?
Senti que caminhava por uma senda
escorregadia.
-- É, mas nem sempre.
-- Como é que a gente sabe quando um
adulto está mentindo pra gente?
-- Não sabe.
-- Então agora você pode estar mentindo
pra mim.
-- Eu não estou mentindo. Não tenho
motivo nenhum pra isso.
-- Se tivesse mentindo, contava?
-- Claro que não. Senão a mentira não
servia pra nada.
-- Se eu falar com o pai do Joaquim
Pedro eu não devo mentir porque sou criança?
-- Você não conhece o pai do Joaquim
Pedro.
-- Mas se conhecesse devia mentir, né?
Senti-me encurralado.
-- É.
-- Então criança também pode mentir.
Achei que era tempo de acabar com a
conversa.
-- Você não tem nada para fazer?
Ela aproveitou a deixa.
-- Posso jogar no computador?
-- Pode.
Ela foi.
Suspirei, aliviado.
Meia hora depois voltou.
-- Papai...
-- O que é?
-- Sabe aquela caixa de chocolates que
a tia Lalá me deu no Natal?
-- O que é que tem?
-- Posso comer?
-- Só um. Daqui a pouco vamos jantar.
-- Tá.
Consegui mais meia hora de sossego.
-- Papai.
-- O que é agora?
-- Eu comi todos.
-- Você comeu todos os chocolates?
-- Foi.
-- Mass eu não disse pra comer só um?
-- Pensei que você estava mentindo.
-- Eu expliquei que só se mente em ocasiões
muito especiais.
-- Vai me castigar por eu dizer a
verdade?
-- Vou castigar porque me desobedeceu.
Estuda a tabuada de multiplicar dos 7, dos 8 e dos 9.
-- Agora?
-- Agora.
-- Depois vai passar comigo?
-- Vou.
Ela desapareceu de novo.
-- Já estudei.
-- Muito bem. Pode ir brincar.
-- De quê?
-- Do que quiser.
-- Papai, eu menti. Eu não comi os
chocolates.
-- Então por que é que falou que comeu?
-- Pra ver o que você fazia.
-- Agora já sabe.
Ela continuou me encarando.
-- Papai, com quantos anos posso
começar a mentir sem ser castigada?
-- Outro dia a gente conversa sobre
isso.
-- Que dia?
-- Não sei, outro dia.
-- É mentira.
-- Isso é maneira de falar com o seu
pai?
-- Você é que disse que adulto mente.
Procurei ser didático.
-- Escuta bem: às vezes se mente, mas
só às vezes, e por questões muito, muito sérias.
-- E comer chocolates não é uma questão
muito séria?
-- Não é tão séria assim.
-- Então se eu comesse os chocolates
não devia me castigar.
-- E por que é que você disse que comeu?
Os olhinhos azuis brilharam.
-- Porque comi.
Procurei me controlar.
-- Chega, vamos tirar esta história a
limpo. Vai buscar a caixa.
-- Mas eu comi, papai.
-- Vai buscar a caixa, já disse.
A caixa estava intacta.
-- Senta aqui.
Ela sentou, atenta.
-- Escuta, por que é que você anda
dizendo que comeu, se não comeu?
-- Quando você era pequeno, nunca
mentiu?
-- Não sei, não me lembro.
-- Mas pode ter mentido, não pode?
-- Vamos acabar com esta conversa.
Contou que comeu os chocolates, foi castigada, ponto final.
-- Mas eu não comi.
-- Mas mentiu.
-- Tá.
Dandara, as perninhas no ar, seguia no
tabuleiro as estratégias do manual de gamão aberto sobre o tapete.
-- Papai, já sei abrir com 6.1, 3.1 e
4.2.
-- Ótimo.
Joguei o policial para o lado e liguei
a televisão.
-- Quer que eu mostre?
-- Depois, agora deixa escutar as
notícias.
A
minha filha sumiu da sala.
Entrou no ar um programa de calouros.
-- Dandara, está começando o programa
que você gosta.
-- Surgiu, correndo.
-- Onde é que você estava?
-- Comendo os chocolates.
Os olhinhos azuis cintilavam.
-- Comi todos.
Fui salvo pelo gongo. Da cozinha, Leo
chamou para o jantar.
Levantei-me.
-- Anda, vamos pra mesa.
Chegaram as costeletas.
-- Comam logo antes que esfrie.
Dandara fica olhando o prato fumegante.
-- Tou sem fome.
Leo tem um gesto de desalento.
-- Mas eu preparei as costeletas sem
alho, do jeito que você gosta!
Resolvi intervir.
-- Deixa, se não quiser comer que não
coma. Danda, vai buscar o vinho, vai.
Leo aproveita a ausência.
-- Por que é que ela não quer comer?
-- Esquece.
A minha filha volta com a garrafa.
-- Posso servir?
-- Pode.
Os copos cheios.
-- Papai, posso ir ver televisão?
-- Não. Você fica aqui conosco durante
o jantar.
-- Tá.
O monstrinho fixa a minha mulher, a
vozinha mansa.
-- Leo, quando tiver tempo, me explica
quando é que se deve mentir?
Eu, que sempre quis ter sete filhas,
naquele momento teria dado a alma para não ter nenhuma.
Pelo menos esta.
Juro que não estou mentindo.
Ruy Guerra. O Estado de São Paulo.
Entendendo a história:
01 – Quando dizemos que o
frio é de cão?
Quando é muito
frio.
02 – O que é edredom?
Cobertor
acolchoado.
03 – Monstrinho de olhos azuis é xingamento? Explique.
É uma forma
carinhosa, como se percebe pelo diminutivo e pelo texto.
04 – Qual o significado de desconversar?
Mudar de assunto.
05 – Borrego é um animal de menos de um ano. Sua mãe é a ovelha. Como se
denomina o pai?
Carneiro.
06 – O que é voltar à carga?
Voltar ao
assunto.
07 – Explique o que é senda escorregadia em geral e o que é,
no texto, caminhava por uma senda
escorregadia.
Em geral: caminho estreito escorregadio.
08 – Diga qual o sentido de Senti-me encurralado.
No texto: ele
estava ficando com dificuldade de responder.
09 – O que é ser didático?
É ser eficiente
no ensino.
10 – Qual o significado de estratégia?
Arte de escolher
os melhores meios para vencer. Sentiu-se sem saída, sem resposta.
11 – Esclareça o significado
de policial em Joguei o policial para o lado e liguei a televisão.
É o romance policial.
12 – O que é gesto de desalento?
Gesto de
desânimo.
13 – A expressão teria dado a alma significa o quê?
Teria dado tudo,
faria até o impossível para.
14 – Exponha sua opinião
sobre dizer sempre a verdade.
Resposta pessoal
do aluno.
15 – Qual a sua opinião
sobre a menina Dandara?
Resposta pessoal do aluno.
16 – Como você pode saber se
alguém está mentindo-lhe?
Resposta pessoal
do aluno.
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