CRÔNICA: Osarta
Lygia Bojunga Nunes
A escola pra onde levaram o Pavão se
chamava Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito
na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta
de trás pra frente.
A Osarta tinha três cursos: o Curso
Papo, o Curso Linha e o Curso Filtro.
O Curso Papo era isso mesmo: papo.
Batiam papo que só vendo. O Pavão até que gostou; naquele tempo o pensamento
dele era normal, ele gostava de conversar, de ficar sabendo o que é que os
outros achavam, de achar também uma porção de coisas. Só que tinha um problema:
ele não podia achar nada; tinha que ficar quieto escutando o pessoal falar. Se
abria o bico ia de castigo; se pedia pra ir lá fora ia de castigo; se cochilava
(o pessoal falava tanto que dava sono), acordavam ele correndo pra ele ir pro castigo.
O Pavão então resolveu toda a hora
abrir o bico, ir lá fora, cochilar - só pra ficar de castigo e não ouvir mais o
pessoal falar. Não adiantou nada, deram pra falar na hora do castigo também. E
ainda por cima falavam dobrado.
O Pavão era um bicho calmo, tranquilo.
Mas com aquele papo todo dia, o dia todo a todo instante, deu pra ir ficando
apavorado. Se assustava à-toa, qualquer barulhinho e já pulava pra um lado, o coração
pra outro. Pegou tique nervoso: suspirava tremidinho, a toda hora sacudia a
última pena do lado esquerdo, cada três quartos de hora sacudia a penúltima do
lado direito.
O Curso Papo era pra isso mesmo: pro
aluno ficar com medo de tudo. O pessoal da Osarta sabia que quanto mais
apavorado o aluno ia ficando, mais o pensamento dele ia atrasando. E então eles
martelavam o dia inteiro no ouvido do Pavão:
– Não sai aqui do Curso. Você saindo,
você escorrega, você cai, cuidado, hem?
Cuidado.
Olha, olha, você tá escorregando, tá caindo, não disse?! Você vai ficar a vida toda
pertinho dos teus donos, viu? Não fica nunca sozinho. Ficar sozinho é perigoso:
você pensa que tá sozinho mas não está: tem fantasma em volta. Olha o
bicho-papão.
Cuidado com a noite. A noite é preta, cuidado.
Cuidado com a noite. A noite é preta, cuidado.
Inventavam coisas horríveis pra contar
da noite. E diziam que se o Pavão não fizesse tudo que os donos dele queriam,
ele ia ter brotoeja, dores de barriga horrorosas, era até capaz de morrer
assado numa fogueira bem grande.
O Pavão cada vez se apavorava mais. Lá
pro meio do curso ele pegou um jeito esquisito de andar: experimentava cada
passo que dava, pra ver se não escorregava, se não caía, se não tinha brotoeja,
se não acabava na fogueira. E na hora de falar também
achava que a fala ia cair, escorregar, trancava o bico, o melhor era nem falar. E então as notas dele começaram a melhorar.
achava que a fala ia cair, escorregar, trancava o bico, o melhor era nem falar. E então as notas dele começaram a melhorar.
No princípio do curso o Pavão só tirava
zero, um, dois no máximo. Mas com o medo aumentando, as notas foram melhorando:
três, quatro, cinco; e teve um dia que o Pavão teve tanto medo de tanta coisa
que acabou ganhando até um sete. (Nota dez era só pra quando o aluno ficava com
medo de pensar. Aí o curso estava completo, davam diploma e tudo.) No dia que o
Pavão ganhou nota sete, de noite ele sonhou. Um sonho muito bem sonhado, todo
em tom amarelo, azul e verde alface. Sonhou que o
pessoal do Curso Papo falava, falava, falava e ele não escutava mais nada: tinha ficado surdo. Acordou e pensou: tai, o jeito é esse. Foi pra aula. Estavam encerando o corredor da escola. Pegou um punhado de cera e, com um jeito bem disfarçado, tapou o ouvido. Daí pra frente o Pavão ficava muito sério olhando o pessoal do Curso falando, falando, e ele - que bom! - sem poder escutar.
pessoal do Curso Papo falava, falava, falava e ele não escutava mais nada: tinha ficado surdo. Acordou e pensou: tai, o jeito é esse. Foi pra aula. Estavam encerando o corredor da escola. Pegou um punhado de cera e, com um jeito bem disfarçado, tapou o ouvido. Daí pra frente o Pavão ficava muito sério olhando o pessoal do Curso falando, falando, e ele - que bom! - sem poder escutar.
Fizeram tudo. Falaram tanto que ficaram
roucos. Um deles chegou até a perder a voz. Mas não adiantava: o medo do Pavão
não aumentava; não se espalhava; tinha empacado na nota sete e pronto.
Resolveram então levar o Pavão pro Curso Linha.
E
o Pavão foi. Com um medo danado de cair. Examinando a perna a toda hora, pra
ver se uma coceirinha que ele estava sentindo já era a tal brotoeja.
Suspirando
tremidinho. Sacudindo a última pena e a penúltima também. Mas fora disso –
normal.
NUNES, Lygia Bojunga.
A casa da madrinha.
Rio de Janeiro: Agir,
1985. p.24-26.
Entendendo o texto:
01 – Segundo a narração, o
que caracteriza um pensamento atrasado?
Segundo o texto,
pensamento atrasado é essencialmente marcado pela dependência e pelo medo.
02 – Como os “donos”
garantem a submissão dos alunos?
Os donos
disseminavam a crença nos mais diferentes tipos e níveis de perigo da vida
longe deles.
03 – Você conhece escolas
parecidas com a Osarta? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: O texto de Lygia traz uma metáfora de uma forma de
“educar”: educar para o conformismo, para o pensamento igual, sem crítica nem
originalidade, para o comportamento domesticado.
04 – Você percebe no texto
um registro formal ou informal? Apresente exemplos que provem sua resposta.
A linguagem do
texto é marcadamente coloquial, tanto na escolha do vocabulário como na
sintaxe. A autora usa expressões como “o pessoal”, “medo danado”, “empacar”,
“não dar na vista”. Usa “ter” no lugar de “haver” (“tinha um problema”), começa
frase com pronome átono (“se assustou”), usa formas reduzidas “pra”, “pro”,
suprime preposição: o dia (em) que...
05 – Há professores que
pedem aos alunos que “corrijam” textos de Lygia Bojunga, como este, marcados
pelo coloquialismo. Como você analisa esta atividade de correção?
A opinião é
pessoal. Sugestão de resposta:
Primeira: o coloquial pode aparecer na
escrita, conforme o grau de formalidade da situação.
Segunda: no caso desse texto, o próprio
narrador busca uma aproximação com o leitor e, assim, o tom coloquial e a
informalidade são adequados.
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