terça-feira, 28 de agosto de 2018

CRÔNICA: OSARTA - LYGIA BOJUNGA NUNES - COM GABARITO

CRÔNICA: Osarta
                Lygia Bojunga Nunes
  

     A escola pra onde levaram o Pavão se chamava Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta de trás pra frente.
     A Osarta tinha três cursos: o Curso Papo, o Curso Linha e o Curso Filtro.
    O Curso Papo era isso mesmo: papo. Batiam papo que só vendo. O Pavão até que gostou; naquele tempo o pensamento dele era normal, ele gostava de conversar, de ficar sabendo o que é que os outros achavam, de achar também uma porção de coisas. Só que tinha um problema: ele não podia achar nada; tinha que ficar quieto escutando o pessoal falar. Se abria o bico ia de castigo; se pedia pra ir lá fora ia de castigo; se cochilava (o pessoal falava tanto que dava sono), acordavam ele correndo pra ele ir pro castigo.
        O Pavão então resolveu toda a hora abrir o bico, ir lá fora, cochilar - só pra ficar de castigo e não ouvir mais o pessoal falar. Não adiantou nada, deram pra falar na hora do castigo também. E ainda por cima falavam dobrado.
        O Pavão era um bicho calmo, tranquilo. Mas com aquele papo todo dia, o dia todo a todo instante, deu pra ir ficando apavorado. Se assustava à-toa, qualquer barulhinho e já pulava pra um lado, o coração pra outro. Pegou tique nervoso: suspirava tremidinho, a toda hora sacudia a última pena do lado esquerdo, cada três quartos de hora sacudia a penúltima do lado direito.
        O Curso Papo era pra isso mesmo: pro aluno ficar com medo de tudo. O pessoal da Osarta sabia que quanto mais apavorado o aluno ia ficando, mais o pensamento dele ia atrasando. E então eles martelavam o dia inteiro no ouvido do Pavão:
        – Não sai aqui do Curso. Você saindo, você escorrega, você cai, cuidado, hem?
        Cuidado. Olha, olha, você tá escorregando, tá caindo, não disse?! Você vai ficar a vida toda pertinho dos teus donos, viu? Não fica nunca sozinho. Ficar sozinho é perigoso: você pensa que tá sozinho mas não está: tem fantasma em volta. Olha o bicho-papão.
Cuidado com a noite. A noite é preta, cuidado.
        Inventavam coisas horríveis pra contar da noite. E diziam que se o Pavão não fizesse tudo que os donos dele queriam, ele ia ter brotoeja, dores de barriga horrorosas, era até capaz de morrer assado numa fogueira bem grande.
        O Pavão cada vez se apavorava mais. Lá pro meio do curso ele pegou um jeito esquisito de andar: experimentava cada passo que dava, pra ver se não escorregava, se não caía, se não tinha brotoeja, se não acabava na fogueira. E na hora de falar também
achava que a fala ia cair, escorregar, trancava o bico, o melhor era nem falar. E então as notas dele começaram a melhorar.
        No princípio do curso o Pavão só tirava zero, um, dois no máximo. Mas com o medo aumentando, as notas foram melhorando: três, quatro, cinco; e teve um dia que o Pavão teve tanto medo de tanta coisa que acabou ganhando até um sete. (Nota dez era só pra quando o aluno ficava com medo de pensar. Aí o curso estava completo, davam diploma e tudo.) No dia que o Pavão ganhou nota sete, de noite ele sonhou. Um sonho muito bem sonhado, todo em tom amarelo, azul e verde alface. Sonhou que o
pessoal do Curso Papo falava, falava, falava e ele não escutava mais nada: tinha ficado surdo. Acordou e pensou: tai, o jeito é esse. Foi pra aula. Estavam encerando o corredor da escola. Pegou um punhado de cera e, com um jeito bem disfarçado, tapou o ouvido. Daí pra frente o Pavão ficava muito sério olhando o pessoal do Curso falando, falando, e ele - que bom! - sem poder escutar.
        Fizeram tudo. Falaram tanto que ficaram roucos. Um deles chegou até a perder a voz. Mas não adiantava: o medo do Pavão não aumentava; não se espalhava; tinha empacado na nota sete e pronto. Resolveram então levar o Pavão pro Curso Linha.
        E o Pavão foi. Com um medo danado de cair. Examinando a perna a toda hora, pra ver se uma coceirinha que ele estava sentindo já era a tal brotoeja.
        Suspirando tremidinho. Sacudindo a última pena e a penúltima também. Mas fora disso – normal.
NUNES, Lygia Bojunga. A casa da madrinha.
Rio de Janeiro: Agir, 1985. p.24-26.
Entendendo o texto:
01 – Segundo a narração, o que caracteriza um pensamento atrasado?
      Segundo o texto, pensamento atrasado é essencialmente marcado pela dependência e pelo medo.

02 – Como os “donos” garantem a submissão dos alunos?
      Os donos disseminavam a crença nos mais diferentes tipos e níveis de perigo da vida longe deles.

03 – Você conhece escolas parecidas com a Osarta? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O texto de Lygia traz uma metáfora de uma forma de “educar”: educar para o conformismo, para o pensamento igual, sem crítica nem originalidade, para o comportamento domesticado.

04 – Você percebe no texto um registro formal ou informal? Apresente exemplos que provem sua resposta.
      A linguagem do texto é marcadamente coloquial, tanto na escolha do vocabulário como na sintaxe. A autora usa expressões como “o pessoal”, “medo danado”, “empacar”, “não dar na vista”. Usa “ter” no lugar de “haver” (“tinha um problema”), começa frase com pronome átono (“se assustou”), usa formas reduzidas “pra”, “pro”, suprime preposição: o dia (em) que...

05 – Há professores que pedem aos alunos que “corrijam” textos de Lygia Bojunga, como este, marcados pelo coloquialismo. Como você analisa esta atividade de correção?
      A opinião é pessoal. Sugestão de resposta:
      Primeira: o coloquial pode aparecer na escrita, conforme o grau de formalidade da situação.
      Segunda: no caso desse texto, o próprio narrador busca uma aproximação com o leitor e, assim, o tom coloquial e a informalidade são adequados.





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