CRÔNICA: NOTÍCIA DE JORNAL
Stanislaw Ponte Preta
Quem descobriu, perdida no noticiário
policial de um matutino, a intensa poesia contida no bilhete do suicida? Creio
que foi Manuel Bandeira. Sim, se a memória não falha (e, meu Deus, ela está
começando a falhar), foi o poeta Bandeira. Ele é que tem o dom da poesia mais
forte. Claro, todos nós somos poetas em potencial, amando a poesia no voo de um
pássaro, na comovente curva de um joelho feminino, no pôr-do-sol, na chuva que
cai no mar. Mas nós somos os pequenos poetas, os que sentimos a poesia, sua
mensagem de encantamento, sem capacidade bastante para transmitir ao amigo, à
amada, ao companheiro aquilo que nos encantou.
Então Deus fez o poeta maior, aquele
que tem o dom de transmitir por meio de palavras toda e qualquer poesia, seja
ela plástica, audível, rítmica; sentimento ou dor.
"A poesia é espontânea" –
disse um dia Pedro Cavalinho, o tímido esteta, enquanto descíamos de madrugada
uma rua molhada de orvalho e um galo branco cantou num muro próximo. Um muro
que o limo pintara de verde.
E é mesmo. Tão espontânea, que estava
no bilhete do suicida. Um minuto antes de botar formicida no copo de cerveja e
beber, ele rabiscou, com sua letra incerta, num pedaço de papel: "Morri do
mal de amor. Avisem minha mãe. Ela mora na Ladeira da Alegria, sem
número".
Manuel Bandeira, poeta maior, nem
precisou transformar num poema as palavras do morto. Leu a notícia em meio às
notas policiais do matutino e notou logo o que podem as palavras. O homem humilde,
que fora a vida inteira um espectador da poesia das coisas, no último instante,
sem a menor intenção, se fez poeta também. E deixou sobre a mesa suja de um
botequim, entre um copo de formicida e uma garrafa de cerveja, a sua derradeira
mensagem - a primeira mensagem poética.
Num matutino de ontem, num desses
matutinos que se empenham na publicidade do crime, havia a seguinte notícia:
"João José Gualberto, vulgo 'Sorriso', foi preso na madrugada de ontem, no
Beco da Felicidade, por ter assaltado a Casa Garson, de onde roubara um lote de
discos".
Pobre redator, o autor da nota. Perdido
no meio de telegramas, barulho de máquinas, campainhas de telefones, nem sequer
notou a poesia que passou pela sua desarrumada mesa de trabalho, e que estava
contida no simples noticiário de polícia.
Bem me disse Pedro Cavalinho, o tímido
esteta, naquela madrugada: "A maior inimiga da poesia é a
vulgaridade". Distraído na rotina de um trabalho ingrato, esse repórter de
polícia soube que um homem que atende por um vulgo de "Sorriso"
roubara discos numa loja e fora preso naquele beco sujo que fica entre a
Presidente Vargas e a Praça da República e que se chama Felicidade. Fosse o
repórter menos vulgar e teria escrito:
"O Sorriso roubou a música e
acabou preso no Beco da Felicidade".
PRETA, Stanislaw
Ponte. Tia Zulmira e eu. 1. ed.
Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1979. p. 145-7.
Entendendo o texto:
01 – Releia atentamente os
dois primeiros parágrafos do texto. A seguir, escreva um parágrafo em que se
diferenciem os poetas menores do poeta maior.
Os poetas menores são capazes de sentir a
poesia; o poeta maior é capaz de transmitir verbalmente toda e qualquer carga
poética. Essa diferença básica deve ser cobrada na resposta do aluno.
02 – Relacione as palavras
de Pedro Cavalinho (terceiro parágrafo) com a situação aí descrita.
A cena descrita no parágrafo é espontânea e é poética: deve-se levar o aluno a visualizar o galo branco que canta
num muro pintado de verde pelo limo, numa manhã úmida.
03 – O que existe de
poético, no seu entender, no bilhete do suicida (Quarto parágrafo).
Há intensa carga
poética no drama do suicida: morre por amor, preocupa-se em avisar sua mãe, e
ela mora, amargamente, na Ladeira da Alegria,
numa casa tristemente sem número.
04 – No quinto parágrafo, há
várias expressões de sentido oposto. Aponte-as e comente seu emprego.
“O homem humilde” / “se fez poeta”; “a vida inteira”
/ “no último instante”; “A sua derradeira mensagem” / “a sua primeira mensagem poética”. O emprego
dessas expressões é altamente enfático – amplia a dramaticidade do episódio
narrado.
05 – “A maior inimiga da
poesia é a vulgaridade.” Relacione o conteúdo dessa frase com o comportamento
do redator.
O redator agiu de
forma meramente profissional, enxergando na notícia apenas o conteúdo
policialesco. Agiu com vulgaridade, portanto.
06 – A notícia, como o
redator a produziu, lhe parece inadequada à finalidade a que se propõe?
Comente.
Não. Ela não é
inadequada à finalidade a que se propõe. O redator cumpriu seu dever
profissionalmente.
07 – O modo como Stanislaw
Ponte Preta elaborou a mensagem tem qual finalidade?
Stanislaw visa a uma finalidade bastante
diversa a que visava o redator: trata-se, agora, de despertar prazer estético
pela elaboração da mensagem e de extrair da vida aquilo que ela tem de poético.
08 – Stanislaw utilizou o
mesmo material que o redator para elaborar sua mensagem poética. As mensagens
de um e de outro são, no entanto, muito diferentes. Por quê?
Trata-se de
textos elaborados com finalidades explicitamente diferentes. Deve-se, a partir
desse aspecto, enfatizar veementemente a importância da finalidade na
configuração da mensagem.
09 – O texto “Notícia de
jornal” é coeso? Como se articulam as diversa partes que o formam?
É um texto coeso.
Observar com o aluno como o texto principia com uma indagação sobre a
descoberta da poesia no cotidiano para, num segundo momento, efetuar exatamente
essa mesma descoberta.
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