Poesia completa: Prefácio Interessantíssimo – Fragmento
Mário de Andrade
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante,
inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem
conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão o prazer
em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para que me rejeita
trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.

[...]
Aliás muito difícil nesta prosa
saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
E desculpem-me por estar tão atrasado
dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se
libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria
hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não
compreende bem.
Não sou futurista (de Marinetti). Disse
e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. [...]
Um pouco de teoria?
Acredito que o lirismo, nascido no
subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são
versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação
determinada.
A inspiração é fugaz, violenta.
Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá
Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para
avisa-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se
fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de
sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos.
[...]
Belo da arte: arbitrário, convencional,
transitório – questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural –
tem a eternidade que a natureza tiver. [...]
Sei construir teorias engenhosas. Quer
ver? A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez
mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitava, para
enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia.
A poética, com rara exceção até meados
do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o
mesmo que a melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas,
contendo pensamento inteligível.
Ora,
si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
[...] fizemos que se sigam palavras sem
ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de não seguirem
intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para nossa sensação,
formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico melhor:
Harmonia: combinação de sons
simultâneos.
Exemplo:
"Arroubos... Lutas... Setas...
Cantigas... Povoar!..."
Estas palavras não se ligam. [...].
Cada uma é fase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico.
[...] Assim: em vez de melodia (frase
gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, – o verso harmônico. Mas, si em
vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de
superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto:
polifonia poética. Assim, em "Paulicéia Desvairada" usam-se o verso
melódico:
"São Paulo é um palco de bailado
russos"; o verso harmônico:
"A cainçalha... A Bolsa... As
jogatinas..." e a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais
versos consecutivos):
"A engrenagem trepida... Abruma
neva..."
Que tal? [...]
Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso
ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma
ortografia.
[...]
E está acabada a escola poética
"Desvairismo".
Próximo livro fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola
= imbecilidade de muitos para vaidade dum só.
[...]
Poesias completas. Ed. crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte:
Itatiaia. São Paulo, EDUSP, 1987.
Fonte: Português –
Novas Palavras – Ensino Médio – Emília Amaral; Mauro Ferreira; Ricardo Leite;
Severino Antônio – Vol. Único – FTD – São Paulo – 2ª edição. 2003. p. 252-253.
Entendendo a poesia:
01 – Qual é a principal
característica do prefácio segundo o autor?
O autor considera
o prefácio "interessante, inútil". Interessante por conter dados e
reflexões sobre sua poética, mas inútil pois ele acredita que quem o aceita não
precisa de explicações e quem o rejeita não o aceitará mesmo com explicações.
02 – Qual a dificuldade que o
autor aponta na prosa do prefácio?
Mário de Andrade
aponta a dificuldade em distinguir onde termina a "blague"
(brincadeira) e onde começa a seriedade em sua escrita. Ele afirma que nem ele
mesmo sabe.
03 – Como o autor se define em
relação aos movimentos artísticos contemporâneos?
O autor se
confessa "passadista", admitindo que não consegue se libertar
completamente das teorias artísticas que aprendeu no passado. Ele expressa
dificuldade em compreender totalmente as orientações modernas e se distancia do
Futurismo de Marinetti, apesar de reconhecer alguns pontos de contato.
04 – Qual a teoria poética
defendida pelo autor?
O autor acredita que o lirismo nasce no
subconsciente e, após ser trabalhado pelo pensamento, cria frases que são
versos completos. Ele defende que a arte não deve interferir no processo
criativo inicial, mas sim trabalhar o poema posteriormente, eliminando
repetições, sentimentalismos e detalhes desnecessários.
05 – Qual a distinção feita
entre o belo da arte e o belo da natureza?
O autor
diferencia o belo da arte como arbitrário, convencional e transitório (questão
de moda), enquanto o belo da natureza é imutável, objetivo e natural, possuindo
a eternidade que a própria natureza tem.
06 – Que comparação o autor
faz entre a poética e a música?
O autor compara o
desenvolvimento da música com o da poética. Enquanto a música evoluiu para a
harmonia, a poética, segundo ele, permaneceu essencialmente melódica até meados
do século XIX, com raras exceções.
07 – O que o autor chama de
"verso melódico" e "verso harmônico"?
O verso melódico
é comparado à melodia musical, um arabesco horizontal de sons (palavras)
consecutivas com pensamento inteligível. O verso harmônico, por sua vez, é a
combinação de palavras sem ligação imediata, que se sobrepõem umas às outras,
formando harmonias em vez de melodias.
08 – O que é a "polifonia
poética" para o autor?
A polifonia
poética é a sobreposição não apenas de palavras (como no verso harmônico), mas
de frases inteiras (melodias), criando uma sensação de simultaneidade e
complexidade.
09 – Qual a justificativa do
autor para usar "ortografia portuguesa"?
O autor justifica o uso da ortografia
portuguesa por considerar que ela não altera o resultado final de sua escrita,
proporcionando-lhe uma ortografia estabelecida.
10 – O que o autor declara
sobre a escola poética "Desvairismo"?
O autor declara
que o "Desvairismo" está acabado e que pretende fundar outra escola
poética em seu próximo livro. Ele expressa sua aversão a discípulos, afirmando
que em arte, escola é a imbecilidade de muitos para a vaidade de um só.
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