Conto: ZEFA LAVADEIRA – Trecho de A mulher obscura – Fragmento
Jorge Lima
[...]
Uma trouxa de roupa é um mundo animado
de anáguas, de corpinhos, de fronhas, de lençóis e toalhas servis; em resumo:
dos homens e suas preocupações.
E qual é a maior força desse mundo?
Onde o segredo das suas atividades?
— Olha o amor, Zefa, — olha os lençóis
— torna-nos semelhantes aos deuses, faz vibrar em nós o poema dos plasmas que
neles se geraram. Por eles, retrocedendo pelo caminho de certas memórias
obscuras, voltamos às Formas primeiras, às Energias inteligentes.
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E desfazendo aquela trouxa de roupa com
o desembaraço de Jeová, compondo e recompondo um caos, mostra-me peça por peça,
todas aquelas forças mencionadas, lodos genésicos, ou salivas do Espírito que
adejou sobre as águas.
Mas Zefa deu um muxoxo, arrepanhando as
fraldas, arrastando os pés. Zefa não tinha antenas para a torrente declamatória
interior de minha juventude em dias de convalescença.
Pela vereda que vinha do rio, surgiu
cantarolando uma cafuza nova, com o pote à cabeça, o braço direito erguido,
segurando a rodilha.
E senti-a em tudo, — na algazarra dos
ramos, na toada das águas despenhadas, nos vegetais variegados como arraiais,
no tumulto dos seres que sofrem, amam e se perpetuam correndo a vida.
Josefa — lavadeira, porque se julga a
sós, vai despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza.
No remanso em que bate a roupa, há
bambus e ingazeiros pelas margens. Josefa entra o caudal até as coxas morenas,
a camisa arregaçada, o cabeção de crochê impelido pelos seios duros, tostados
de soalheiras.
O braço valente arroja o pano contra a
pedra de bater, e a axila cobre-se e descobre-se, piscando a tentação de
arrochos e rendições cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de roupa é boa
cantaderia. A cantiga é uma corruptela de velhas toadas num tom languoroso,
alimentado de sofreguidões, de desejos incontidos, e de lamentações
incorrespondidas.
Depois de lavar a roupa dos outros,
Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-se corando sobre o capim.
Então Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto de pele
negra com que nasceu. Outras Zefas, outras negras vêm lavar-se no rio. Eu estou
ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a minha infância.
A água, levada nas cuias, começa o ensaboamento; desce em regatos de espuma
pelo dorso, e some-se entre as nádegas rijas. As negras aparam a espuma grossa,
com as mãos em concha, esmagam-na contra os seios pontudos, transportam-na com
agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de
sabão se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas
pernas, para conduzi-la aos sexos em que a África parece dormir o sono temeroso
de Cam.
[...]
Jorge de Lima. © by
Editora Nova Aguilar S.A. Rua Dona Mariana, 250, casa I — Botafogo CEP:
22280-020 – Rio de Janeiro, RJ.
Entendendo o conto:
01 – Qual é a principal
metáfora utilizada no início do conto?
A principal
metáfora é a da trouxa de roupa como um "mundo animado" que representa
as preocupações e a vida dos homens.
02 – O que os lençóis
simbolizam, de acordo com o narrador?
Os lençóis
simbolizam o amor e a ligação com as "Formas primeiras" e
"Energias inteligentes", remetendo a memórias obscuras e à origem da
vida.
03 – Como Zefa reage à
reflexão poética do narrador sobre a roupa?
Zefa reage com um "muxoxo",
demonstrando que não compreende ou não se interessa pela reflexão poética do
narrador. Ela está mais preocupada com o trabalho de lavar roupa.
04 – Quem é a cafuza que surge
cantando pela vereda?
A cafuza que
surge é uma jovem mulher, provavelmente uma trabalhadora rural, que vem do rio
com um pote na cabeça. Sua presença e seu canto contrastam com a reflexão
introspectiva do narrador.
05 – O que o narrador sente ao
ver a cafuza e a natureza ao redor?
O narrador sente
uma conexão profunda com a natureza e com a força da vida. Ele percebe a
presença da cafuza em tudo ao seu redor, desde os ramos das árvores até as
águas do rio.
06 – Como Zefa é descrita
enquanto lava roupa no rio?
Zefa é descrita
como uma "ninfa cafuza" que se despe de suas "belezas
selvagens" para lavar a roupa. Ela entra no rio com a camisa arregaçada e
o corpo exposto, demonstrando sua força e sensualidade.
07 – O que o narrador observa
ao ver outras negras se lavando no rio?
O narrador
observa o ritual de lavagem do corpo das negras, destacando a agilidade com que
elas ensaboam e enxaguam a pele. Ele faz uma conexão com a África, como se
estivesse testemunhando um ritual ancestral de purificação.
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