Romance: Solfieri cap. II – Fragmento
Álvares de Azevedo
Sabei-o. Roma e a cidade do fanatismo e
da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida
se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o
sacrilégio a convulsão do amor, o beijo lascivo a embriaguez da crença!
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Era em Roma. [...]. A noite ia bela. Eu
passeava a sós pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios,
as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens.
Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma
branca. A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida a lua. Pelas
faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei a aresta de um palácio.
A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era
só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como
gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios
cantando a nênia das flores murchas da morte.
Depois o canto calou-se. A mulher
apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém:
saiu. Eu segui-a.
[...]
Andamos longo tempo pelo labirinto das
ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se
erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela
passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que
quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não
fora uma ilusão; as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a
uma cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido a
chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela
brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num
canto suavíssimo...
Um
ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da
saciedade me vinha aquela visão...
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara
dormida no leito dela a condessa Barbara. Dei um último olhar àquela forma nua
e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo
ainda nos sonhos como na agonia volutuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era
límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças
tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até a
última gota o vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim estava num
lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um
templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o
de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela,
naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma
defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma ideia perdida... Era o
anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara
abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como
chumbo. [...]. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela
assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe
a noiva. [...]. O gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A
madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, a febre de
meus lábios, a convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se.
Súbito abriu os olhos empanados [...]. Não era já a morte; era um desmaio. [...]
[...] Nunca ouvistes falar da
catalepsia? E um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam
num sepulcro; sonho gelado em que se sentem os membros tolhidos, e as faces
banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao
acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu
sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo, abaixei-me,
olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormia de ébrio,
esquecido de fechar a porta...
[...]
Caminhei. Estava cansado. Custava a
carregar o meu fardo: e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que
ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...
[...] Dois dias e duas noites levou ela
de febre assim... Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi.
Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.
A noite saí; fui ter com um estatuário
que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os
tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo. Tomei-a
então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e
cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu
túmulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as
lajes que a cobriam... Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Peguei-lha e
paguei o segredo...
—
Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu
do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que
dormia?
— E quem era essa mulher, Solfieri?
— Quem era? seu nome?
— Quem se importa com uma palavra
quando sente que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome da
prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele
mister por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e Bebeu-a. Ia
erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço.
— Solfieri, não é um conto isso tudo?
— Pelo inferno que não! Por meu pai que
era conde e bandido, por minha mãe que era a bela Messalina das ruas, pela
perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na
sua cova de terra, eu vo-lo juro! — guardei-lhe como amuleto a capela de
defunta. Ei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço
uma grinalda de flores mirradas.
— Vede-a? Murcha e seca como o crânio
dela!
Noite na taverna, São
Paulo: Martins, 1965, p. 39.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p.
227-228.
Entendendo o romance:
01 – Qual é o cenário inicial
do fragmento e o que ele revela sobre a atmosfera da narrativa?
O cenário inicial
é Roma, descrita como uma cidade de "fanatismo e perdição", onde a
religião e a libertinagem se misturam. Essa descrição estabelece uma atmosfera
de mistério, pecado e erotismo, que permeia toda a narrativa.
02 – Quem é o narrador do
fragmento e qual é sua relação com os acontecimentos narrados?
O narrador é
Solfieri, um personagem que relata suas próprias experiências em Roma. Ele se
apresenta como um homem atormentado por fantasmas do passado, buscando redenção
ou expiação através de sua narrativa.
03 – Qual é a primeira visão
que Solfieri tem da mulher misteriosa e o que essa visão evoca?
Solfieri avista
uma mulher pálida e solitária em uma janela, com lágrimas escorrendo pelo
rosto. Essa visão evoca mistério, melancolia e sofrimento, despertando a
curiosidade do narrador.
04 – O que acontece quando
Solfieri segue a mulher misteriosa pelas ruas de Roma?
Solfieri segue a
mulher até um cemitério, onde ela se ajoelha e parece soluçar. Ele tem um sono
misterioso e, ao acordar, encontra sinais de que a mulher esteve ali, mas ela
desapareceu.
05 – Qual é o efeito que o
encontro com a mulher misteriosa tem sobre Solfieri?
O encontro com a
mulher misteriosa deixa Solfieri perturbado e febril. Ele é atormentado por lembranças
e delírios, nos quais a imagem da mulher se mistura com um canto melancólico.
06 – O que Solfieri faz um ano
após seu encontro com a mulher misteriosa?
Um ano depois,
Solfieri retorna a Roma e se entrega a uma vida de libertinagem, buscando em
vão saciar o vazio que sente. Ele se envolve com a condessa Barbara, mas nem
mesmo os prazeres carnais conseguem apagar a imagem da mulher misteriosa de sua
memória.
07 – O que acontece quando
Solfieri encontra um cadáver em uma igreja?
Após uma noite de
orgia, Solfieri encontra o cadáver de uma jovem em uma igreja. Ele tem a
impressão de reconhecer a mulher misteriosa do cemitério e, em um momento de
delírio, remove o corpo do caixão e o leva para seu quarto.
08 – Qual é a reação de
Solfieri ao perceber que a mulher não está morta, mas sim em estado de
catalepsia?
Ao perceber que a
mulher está viva, Solfieri a leva para seu quarto e cuida dela até que ela se
recupere. Ele demonstra um misto de obsessão, amor e arrependimento, revelando
a complexidade de seus sentimentos.
09 – O que acontece com a
mulher após ser levada para o quarto de Solfieri?
A mulher tem um
período de delírio e febre, durante o qual Solfieri cuida dela. No entanto, ela
não resiste e acaba morrendo. Solfieri, então, manda fazer uma estátua de cera
da mulher e a coloca em um túmulo que ele mesmo cava em seu quarto.
10 – Qual é a revelação final
de Solfieri sobre a mulher misteriosa?
No final da
narrativa, Solfieri revela que a mulher misteriosa era uma virgem que dormia e
que ele a amava obsessivamente. Ele guarda a grinalda de flores da mulher como
um amuleto, simbolizando seu amor e sua culpa.
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