domingo, 16 de fevereiro de 2025

ROMANCE: SOLFIERI - CAP. II - (FRAGMENTO) - ÁLVARES DE AZEVEDO - COM GABARITO

 Romance: Solfieri cap. II – Fragmento

                  Álvares de Azevedo

        Sabei-o. Roma e a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio a convulsão do amor, o beijo lascivo a embriaguez da crença!

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWD5z9kCpm3FTDKM_-RsSzLHYyOUDLfZzLBJ4IGcXnyaDH6DSqs49fOzeDjy3sdKIkBZ2VboieGKvRRlkly2PH_VpHe4APmwf632pzQ3iggBg4xHS-qkb20vFwJOVZKp2BlY21PnTzvyhYk5NJlF3N6xmMbTwIeu4jBfPQPA_JUquqFl65OptRs1DBNss/s320/1867-solfieri-e-o-casarao-sombrio-1080.jpg


        Era em Roma. [...]. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida a lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

        Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

        Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém: saiu. Eu segui-a.

        [...]

        Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.

        Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

        Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão; as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.

        O frio da noite, aquele sono dormido a chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...

        Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão...

        Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Barbara. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia volutuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...

        Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma ideia perdida... Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo. [...]. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe a noiva. [...]. O gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, a febre de meus lábios, a convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os olhos empanados [...]. Não era já a morte; era um desmaio. [...]

        [...] Nunca ouvistes falar da catalepsia? E um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que se sentem os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!

        A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo, abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormia de ébrio, esquecido de fechar a porta...

        [...]

        Caminhei. Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo: e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...

        [...] Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

        A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.

        Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.

        Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Peguei-lha e paguei o segredo...

        — Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?

        — E quem era essa mulher, Solfieri?

        — Quem era? seu nome?

        — Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?

        Solfieri encheu uma taça e Bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

        — Solfieri, não é um conto isso tudo?

        — Pelo inferno que não! Por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que era a bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Ei-la!

        Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

        — Vede-a? Murcha e seca como o crânio dela!

Noite na taverna, São Paulo: Martins, 1965, p. 39.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 227-228.

Entendendo o romance:

01 – Qual é o cenário inicial do fragmento e o que ele revela sobre a atmosfera da narrativa?

      O cenário inicial é Roma, descrita como uma cidade de "fanatismo e perdição", onde a religião e a libertinagem se misturam. Essa descrição estabelece uma atmosfera de mistério, pecado e erotismo, que permeia toda a narrativa.

02 – Quem é o narrador do fragmento e qual é sua relação com os acontecimentos narrados?

      O narrador é Solfieri, um personagem que relata suas próprias experiências em Roma. Ele se apresenta como um homem atormentado por fantasmas do passado, buscando redenção ou expiação através de sua narrativa.

03 – Qual é a primeira visão que Solfieri tem da mulher misteriosa e o que essa visão evoca?

      Solfieri avista uma mulher pálida e solitária em uma janela, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Essa visão evoca mistério, melancolia e sofrimento, despertando a curiosidade do narrador.

04 – O que acontece quando Solfieri segue a mulher misteriosa pelas ruas de Roma?

      Solfieri segue a mulher até um cemitério, onde ela se ajoelha e parece soluçar. Ele tem um sono misterioso e, ao acordar, encontra sinais de que a mulher esteve ali, mas ela desapareceu.

05 – Qual é o efeito que o encontro com a mulher misteriosa tem sobre Solfieri?

      O encontro com a mulher misteriosa deixa Solfieri perturbado e febril. Ele é atormentado por lembranças e delírios, nos quais a imagem da mulher se mistura com um canto melancólico.

06 – O que Solfieri faz um ano após seu encontro com a mulher misteriosa?

      Um ano depois, Solfieri retorna a Roma e se entrega a uma vida de libertinagem, buscando em vão saciar o vazio que sente. Ele se envolve com a condessa Barbara, mas nem mesmo os prazeres carnais conseguem apagar a imagem da mulher misteriosa de sua memória.

07 – O que acontece quando Solfieri encontra um cadáver em uma igreja?

      Após uma noite de orgia, Solfieri encontra o cadáver de uma jovem em uma igreja. Ele tem a impressão de reconhecer a mulher misteriosa do cemitério e, em um momento de delírio, remove o corpo do caixão e o leva para seu quarto.

08 – Qual é a reação de Solfieri ao perceber que a mulher não está morta, mas sim em estado de catalepsia?

      Ao perceber que a mulher está viva, Solfieri a leva para seu quarto e cuida dela até que ela se recupere. Ele demonstra um misto de obsessão, amor e arrependimento, revelando a complexidade de seus sentimentos.

09 – O que acontece com a mulher após ser levada para o quarto de Solfieri?

      A mulher tem um período de delírio e febre, durante o qual Solfieri cuida dela. No entanto, ela não resiste e acaba morrendo. Solfieri, então, manda fazer uma estátua de cera da mulher e a coloca em um túmulo que ele mesmo cava em seu quarto.

10 – Qual é a revelação final de Solfieri sobre a mulher misteriosa?

      No final da narrativa, Solfieri revela que a mulher misteriosa era uma virgem que dormia e que ele a amava obsessivamente. Ele guarda a grinalda de flores da mulher como um amuleto, simbolizando seu amor e sua culpa.

 

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