Romance: MEMORIAL DO CONVENTO Cap. I – Fragmento
José Saramago
D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais.
Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou
impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever
real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces,
se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o
esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos
comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima
retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda
não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a
barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande.
[...]
Por enquanto, ainda el-rei está a
preparar-se para a noite. Despiram-no os camaristas, vestiram-no com o trajo da
função e do estilo, passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como
relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas, e isto se passa na
presença de outros criados e pajens, este que abre o gavetão, aquele que afasta
a cortina, um que levanta a luz, outro que lhe modera o brilho, dois que não se
movem, dois que imitam estes, mais uns tantos que não se sabe o que fazem nem
por que estão. Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei, um
dos fidalgos retifica a prega final, outro ajusta o cabeção bordado, já não
tarda um minuto que D. João v se encaminhe ao quarto da rainha. O cântaro está
à espera da fonte.
Mas vem agora entrando D. Nuno da
Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Entre
passar adiante e dizer o recado há vénias complicadas, floreios de aproximação,
pausas e recuos, que são as fórmulas de acesso à vizinhança do rei, e a tudo
isto teremos de dar por feito e explicado, vista a pressa que traz o bispo e
considerando o tremor inspirado do frade. Retiram-se a uma parte D. João v e o
inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem
falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a
rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe
desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e
então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras,
porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me,
palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um
convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto,
calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrábido.
Perguntou el-rei, É verdade o que acaba
de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra
terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento
for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não
sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para
falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e
terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou
el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha. É
virtuoso este frade, e o bispo respondeu. Não há outro que mais o seja na sua
ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do
empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem
amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um
convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo
de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa
majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se
a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade
dificultosa da rainha.
[...]
SARAMAGO, José.
Memorial do convento. 27. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 11-13.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 544-545.
Entendendo o romance:
01
– Qual é o principal problema que D. João V enfrenta no início do romance?
O rei D. João V
enfrenta o problema de não ter um herdeiro varão, apesar de estar casado com D.
Maria Ana Josefa há mais de dois anos. A rainha ainda não engravidou, e há
rumores na corte de que ela pode ser estéril.
02
– Como a corte e o povo reagem à falta de um herdeiro?
A corte e o povo
murmuram sobre a possibilidade de a rainha ter a "madre seca", e
alguns até insinuam que a culpa pode ser do rei, apesar de haver muitos
bastardos da "real semente" no reino. A rainha é vista como a
suplicante, tanto em novenas organizadas quanto em orações ocasionais.
03
– Qual é a rotina do rei em relação a tentar ter um filho?
D. João V cumpre
seu "dever real e conjugal" duas vezes por semana, a menos que haja
alguma "dificultação canónica ou impedimento fisiológico". Ele se
prepara para as noites com a rainha com a ajuda de seus camaristas, que o
vestem com trajes especiais para a ocasião.
04
– Quem são D. Nuno da Cunha e frei António de S. José?
D. Nuno da Cunha
é o bispo inquisidor, e frei António de S. José é um frade franciscano velho.
Eles têm um papel importante na história, pois trazem uma mensagem ao rei que
pode resolver o problema da falta de um herdeiro.
05
– Qual é a mensagem que frei António de S. José traz ao rei?
Frei António de
S. José diz ao rei que ele terá filhos se prometer levantar um convento na vila
de Mafra. O frade afirma que é apenas a "boca de que a verdade se serve
para falar" e que a fé não tem mais que responder.
06
– Qual é a reação de D. João V à mensagem do frade?
D. João V
pergunta ao bispo se o frade é virtuoso e, ao receber uma resposta afirmativa,
promete construir um convento de franciscanos em Mafra se a rainha lhe der um
filho no prazo de um ano.
07
– Qual é a grande questão que fica no ar após a promessa do rei?
A grande questão
é quem será posto à prova: Deus, a virtude de frei António, a potência do rei
ou a fertilidade da rainha. Ninguém sabe ao certo o que irá acontecer, mas a
promessa do rei cria uma grande expectativa em todo o reino.
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