sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

ROMANCE: OS SERTÕES, 3ª PARTE, CAP. VI - A LUTA - (FRAGMENTO) - EUCLIDES DA CUNHA - COM GABARITO

 Romance: Os Sertões, 3ª parte, cap. VI – A luta – Fragmento  

                  Euclides da Cunha

        [...]

        Debandada; Fuga

        E foi uma debandada.

        Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes…

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXFZtplZImoBqDP7TDMfFy8pDBrd-Uhz_Pvfh7ZXmHau36weUKCtjKZY6jCnpgm5sHFd8vj-XgdBwCbldw-ca60Hv0lU3ZN9qMuvXUb3vxtkbhtlfaSaE0PQLud2XDH_RtdP1Q30c-fyDKgx_uARwCGcGUBoYcWfw_avWUBPPXJZcnV__dXZScwzSpA98/s320/SERT%C3%95ES.jpg


        Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico — tristíssimo pormenor! — o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de repulsa contra os inimigos, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se.

        Salomão da Rocha

        Apenas a artilharia, na extrema retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as margens traiçoeiras; e prosseguindo depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível…

        A dissolução da tropa parara no aço daqueles canhões cuja guarnição diminuta se destacava maravilhosamente impávida, galvanizada pela força moral de um valente.

        De sorte que no fim de algum tempo em torno dela se adensaram, mais numerosos, os perseguidores.

        O resto da expedição podia escapar-se a salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de Salomão da Rocha, como de encontro a uma represa, embatia, e parava, adunava-se, avolumando, e recuava, e partia-se a onda rugidora dos jagunços.

        Naquela corrimaça sinistra em que a ferocidade e a cobardia revoluteavam confundidos sob o mesmo aspecto revoltante, abriu-se de improviso um episódio épico.

        Contidos a princípio em distância, os sertanejos constringiam a pouco e pouco o círculo do ataque, em roda das duas divisões, que os afrontavam, seguindo a passo tardo, ou, de súbito, alinhando-se em batalha e arrebentando em descargas, fulminando-os…

        As granadas explodindo entre os restolhos secos do matagal incendiavam-nos; ouviam-se lá dentro, de envolta com o crepitar de queimadas sem labaredas, extintas nos brilhos da manhã claríssima, brados de cólera e de dor; e tontos de fumo, saltando dos esconderijos em chamas, rompentes à ourela da caatinga junto à estrada, os sertanejos em chusma, gritando, correndo, disparando os trabucos e as pistolas — assombrados ante aquela resistência inexplicável, vacilantes no assaltar a zargunchadas e à faca o pequeno grupo de valentes indomáveis.

        Estes, entretanto, mal podiam prosseguir. Reduziam-se. Um a um tombavam os soldados da guarnição estóica. Feridos ou espantados, os muares da tração empacavam; torciam de rumo; impossibilitavam a marcha.

        A bateria afinal parou. Os canhões, emperrados, imobilizaram-se numa volta do caminho…

        O coronel Tamarindo, que volvera à retaguarda, agitando-se destemeroso e infatigável entre os fugitivos, penitenciando-se heroicamente, na hora da catástrofe, da tibieza anterior, ao deparar com aquele quadro estupendo, procurou debalde socorrer os únicos soldados que tinham ido a Canudos. Neste pressuposto ordenou toques repetidos de “meia volta, alto!”. As notas das cornetas, convulsivas, emitidas pelos corneteiros sem fôlego, vibraram inutilmente. Ou melhor — aceleraram a fuga. Naquela desordem só havia uma determinação possível: “debandar!”

        Debalde alguns oficiais, indignados, engatilhavam revólveres ao peito dos foragidos. Não havia contê-los. Passavam; corriam; corriam doidamente; corriam dos oficiais; corriam dos jagunços; e ao verem aqueles, que eram de preferência alvejados pelos últimos, caírem malferidos, não se comoviam. O capitão Vilarim batera-se valentemente quase só, e ao baquear, morto, não encontrou entre os que comandava um braço que o sustivesse. Os próprios feridos e enfermos estropiados lá se iam, cambeteando, arrastando-se penosamente, imprecando os companheiros mais ágeis…

        As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis…

        Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera…

        Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis.

        Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada — agora deserta — como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico.

        Os jagunços lançaram-se então sobre ela.

        Era o desfecho. O capitão Salomão tinha apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em cima os golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara.

        Consumara-se a catástrofe…

        Logo adiante, na ocasião em que transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado do cavalo por uma bala. O engenheiro militar Alfredo do Nascimento alcançou-o ainda com vida. Caído sobre a ribanceira, o velho comandante murmurou ao companheiro que o procurara a sua última ordem:

        — Procure o Cunha Matos…

        Esta ordem dificilmente podia ser cumprida.

        [...]

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 22. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1952, p. 309-311.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 486-488.

Entendendo o romance:

01 – Qual é o principal evento narrado no fragmento?

      O fragmento descreve a debandada e fuga das tropas do governo durante a expedição contra Canudos, após um ataque surpresa dos sertanejos.

02 – Como é retratada a fuga dos soldados?

      A fuga é retratada como caótica e desesperada. Os soldados abandonam equipamentos, feridos e até mesmo o corpo do comandante, correndo sem direção e tomados pelo pânico.

03 – Qual é o papel da artilharia nesse cenário de caos?

      A artilharia, liderada por Salomão da Rocha, representa um ponto de resistência em meio à debandada. A guarnição da artilharia, demonstrando bravura, consegue conter o avanço dos sertanejos, protegendo a retirada do restante da expedição.

04 – O que acontece com o coronel Tamarindo no final do fragmento?

      O coronel Tamarindo, que tenta desesperadamente organizar a resistência e conter a fuga, é morto a tiros enquanto atravessa o córrego do Angico.

05 – Quem é Salomão da Rocha e qual é o seu destino?

      Salomão da Rocha é o capitão que lidera a artilharia. Ele e seus homens resistem bravamente, mas acabam sendo cercados e mortos pelos sertanejos.

06 – Qual é a ordem final do coronel Tamarindo?

      Mesmo ferido e à beira da morte, o coronel Tamarindo ordena que procurem Cunha Matos, possivelmente para transmitir alguma mensagem ou informação importante.

07 – Que impressão o fragmento transmite sobre a expedição contra Canudos?

      O fragmento transmite a impressão de que a expedição é um fracasso, marcada pela desorganização, pelo medo e pela falta de liderança. A bravura de alguns poucos não é suficiente para evitar a catástrofe.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário