Romance: Os Sertões, 3ª parte, cap. VI – A luta – Fragmento
Euclides da Cunha
[...]
Debandada;
Fuga
E foi uma debandada.
Oitocentos homens desapareciam em fuga,
abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos:
jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões,
para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos,
em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam,
correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes…
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Entre os fardos atirados à beira do
caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico — tristíssimo pormenor! — o
cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de
repulsa contra os inimigos, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos
desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma
caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se.
Salomão da Rocha
Apenas a artilharia, na extrema
retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma
revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as margens
traiçoeiras; e prosseguindo depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível…
A dissolução da tropa parara no aço
daqueles canhões cuja guarnição diminuta se destacava maravilhosamente
impávida, galvanizada pela força moral de um valente.
De sorte que no fim de algum tempo em torno
dela se adensaram, mais numerosos, os perseguidores.
O resto da expedição podia escapar-se a
salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de Salomão da
Rocha, como de encontro a uma represa, embatia, e parava, adunava-se, avolumando,
e recuava, e partia-se a onda rugidora dos jagunços.
Naquela corrimaça sinistra em que a
ferocidade e a cobardia revoluteavam confundidos sob o mesmo aspecto
revoltante, abriu-se de improviso um episódio épico.
Contidos a princípio em distância, os
sertanejos constringiam a pouco e pouco o círculo do ataque, em roda das duas
divisões, que os afrontavam, seguindo a passo tardo, ou, de súbito,
alinhando-se em batalha e arrebentando em descargas, fulminando-os…
As granadas explodindo entre os
restolhos secos do matagal incendiavam-nos; ouviam-se lá dentro, de envolta com
o crepitar de queimadas sem labaredas, extintas nos brilhos da manhã
claríssima, brados de cólera e de dor; e tontos de fumo, saltando dos
esconderijos em chamas, rompentes à ourela da caatinga junto à estrada, os
sertanejos em chusma, gritando, correndo, disparando os trabucos e as pistolas
— assombrados ante aquela resistência inexplicável, vacilantes no assaltar a
zargunchadas e à faca o pequeno grupo de valentes indomáveis.
Estes, entretanto, mal podiam
prosseguir. Reduziam-se. Um a um tombavam os soldados da guarnição estóica.
Feridos ou espantados, os muares da tração empacavam; torciam de rumo;
impossibilitavam a marcha.
A bateria afinal parou. Os canhões,
emperrados, imobilizaram-se numa volta do caminho…
O coronel Tamarindo, que volvera à
retaguarda, agitando-se destemeroso e infatigável entre os fugitivos,
penitenciando-se heroicamente, na hora da catástrofe, da tibieza anterior, ao
deparar com aquele quadro estupendo, procurou debalde socorrer os únicos
soldados que tinham ido a Canudos. Neste pressuposto ordenou toques repetidos
de “meia volta, alto!”. As notas das cornetas, convulsivas, emitidas pelos
corneteiros sem fôlego, vibraram inutilmente. Ou melhor — aceleraram a fuga.
Naquela desordem só havia uma determinação possível: “debandar!”
Debalde alguns oficiais, indignados,
engatilhavam revólveres ao peito dos foragidos. Não havia contê-los. Passavam;
corriam; corriam doidamente; corriam dos oficiais; corriam dos jagunços; e ao
verem aqueles, que eram de preferência alvejados pelos últimos, caírem
malferidos, não se comoviam. O capitão Vilarim batera-se valentemente quase só,
e ao baquear, morto, não encontrou entre os que comandava um braço que o
sustivesse. Os próprios feridos e enfermos estropiados lá se iam, cambeteando,
arrastando-se penosamente, imprecando os companheiros mais ágeis…
As notas das cornetas vibravam em cima
desse tumulto, imperceptíveis, inúteis…
Por fim cessaram. Não tinham a quem
chamar. A infantaria desaparecera…
Pela beira da estrada, viam-se apenas
peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres,
jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis.
Inteiramente só, sem uma única
ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope,
pela estrada — agora deserta — como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a
vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de
chegar ao Angico.
Os jagunços lançaram-se então sobre
ela.
Era o desfecho. O capitão Salomão tinha
apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em cima os
golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não
abandonara.
Consumara-se a catástrofe…
Logo adiante, na ocasião em que
transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado do
cavalo por uma bala. O engenheiro militar Alfredo do Nascimento alcançou-o
ainda com vida. Caído sobre a ribanceira, o velho comandante murmurou ao
companheiro que o procurara a sua última ordem:
— Procure o Cunha Matos…
Esta ordem dificilmente podia ser
cumprida.
[...]
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 22. ed. São Paulo: Livraria Francisco
Alves, 1952, p. 309-311.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 486-488.
Entendendo o romance:
01
– Qual é o principal evento narrado no fragmento?
O fragmento
descreve a debandada e fuga das tropas do governo durante a expedição contra
Canudos, após um ataque surpresa dos sertanejos.
02
– Como é retratada a fuga dos soldados?
A fuga é
retratada como caótica e desesperada. Os soldados abandonam equipamentos,
feridos e até mesmo o corpo do comandante, correndo sem direção e tomados pelo
pânico.
03
– Qual é o papel da artilharia nesse cenário de caos?
A artilharia,
liderada por Salomão da Rocha, representa um ponto de resistência em meio à
debandada. A guarnição da artilharia, demonstrando bravura, consegue conter o
avanço dos sertanejos, protegendo a retirada do restante da expedição.
04
– O que acontece com o coronel Tamarindo no final do fragmento?
O coronel
Tamarindo, que tenta desesperadamente organizar a resistência e conter a fuga,
é morto a tiros enquanto atravessa o córrego do Angico.
05
– Quem é Salomão da Rocha e qual é o seu destino?
Salomão da Rocha
é o capitão que lidera a artilharia. Ele e seus homens resistem bravamente, mas
acabam sendo cercados e mortos pelos sertanejos.
06
– Qual é a ordem final do coronel Tamarindo?
Mesmo ferido e à
beira da morte, o coronel Tamarindo ordena que procurem Cunha Matos,
possivelmente para transmitir alguma mensagem ou informação importante.
07
– Que impressão o fragmento transmite sobre a expedição contra Canudos?
O fragmento
transmite a impressão de que a expedição é um fracasso, marcada pela
desorganização, pelo medo e pela falta de liderança. A bravura de alguns poucos
não é suficiente para evitar a catástrofe.
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