sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

CONTO: DOIS IRMÃOS - (FRAGMENTO) - MILTON HATOUM - COM GABARITO

 Conto: Dois irmãos – Fragmento

            Milton Hatoum

        [...]

        Quando Yaqub chegou ao Líbano, o pai foi buscá-lo no Rio de Janeiro. O cais Pharoux estava apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que regressaram da Itália. Bandeiras brasileiras enfeitavam o balcão e a varanda dos apartamentos da Glória, rojões espocavam no céu, e para onde o pai olhava havia sinais de vitória. Ele avistou o filho no portaló do navio que acabara de chegar a Marselha. Não era mais o menino, mas o rapaz que passara cinco dos seus dezoito anos no sul do Líbano. O andar era o mesmo: passos rápidos e firmes que davam ao corpo um senso de equilíbrio e uma rigidez impensável no andar do outro filho, o Caçula.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEguuFBGR-cfIqK-4gtQT6tqp8c8fw7sLgtYTqputG1CaNf6NK8yakVu3zg58nkMGMOPTrqpCo7KWcaMkptRhAXiJoUppTusVCMqswDQQJvXywxFocpf0i-4-5hhyTo1npypRfqStFI6sZP5V3Yu48Dyo36gnq3SvqS1xyOUQ8kT11KwhPFlDyJ73VFe6m0/s320/LIBANO.png


        Yaqub havia esticado alguns palmos. E à medida que se aproximava do cais, o pai comparava o corpo do filho recém-chegado com a imagem que construíra durante os anos da separação. Ele carregava um farnel de lona cinza, surrado, e debaixo do boné verde os olhos graúdos arregalaram com os vivas e a choradeira dos militares da Força Expedicionária Brasileira.

        Halim acenou com as duas mãos, mas o filho demorou a reconhecer aquele homem vestido de branco, um pouco mais baixo do que ele. Por pouco não esquecera o rosto do pai, os olhos do pai e o pai por inteiro. Apreensivo, ele se aproximou do moço, os dois se entreolharam e ele, o filho, perguntou: "Baba?". E depois os quatro beijos no rosto, o abraço demorado, as saudações em árabe. Saíram do cais abraçados, atravessaram a praça Paris e a rua do Catete e foram até a Cinelândia. O filho falou da viagem e o pai lamentou a penúria em Manaus, a penúria e a fome durante os anos da guerra. Na Cinelândia sentaram-se à mesa de um bar, e no meio do burburinho Yaqub abriu o farnel e tirou um embrulho, e o pai viu pães embolorados e uma caixa de figos secos. Só isso trouxe o Líbano? Nenhuma carta? Nenhum presente? Não, não havia mais nada no farnel, nem roupa nem presente, nada! Então Yaqub explicou em árabe que o tio, o irmão do pai, não queria que ele voltasse para o Brasil.

        Calou. Halim baixou a cabeça, pensou em falar do outro filho, hesitou. Disse: "Tua mãe...", e também calou. Viu o rosto crispado de Yaqub, viu o filho levantar-se, aperreado, arriar a calça e mijar de frente para a parede do bar, em plena Cinelândia. Mijou durante uns minutos, o rosto agora aliviado, indiferente às gargalhadas dos que passavam por ali. Halim ainda gritou: "Não, tu não deves fazer isso... ", mas o filho não entendeu ou fingiu não entender o pedido do pai.

        Ele teve que engolir o vexame. Esse e outros, de Yaqub e também do outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera poucos minutos depois. O que mais preocupava Halim era a separação dos gêmeos, "porque nunca se sabe como vão reagir depois...". Ele nunca deixou de pensar no reencontro dos filhos, no convívio após uma longa separação. Desde o dia da partida, Zana não parou de repetir: "Meu filho vai voltar um matuto, um pastor, um ra'í. Vai esquecer o português e não vai pisar na escola porque não tem escola lá na aldeia da tua família".

        Aconteceu um ano antes da Segunda Guerra, quando os gêmeos completaram treze anos de idade. Halim queria mandar os dois para o sul do Líbano. Zana relutou, e conseguiu persuadir o marido a mandar apenas Yaqub. Durante anos, Omar foi tratado como filho único, o único menino.

        No centro do Rio, Halim comprou roupas e um par de sapatos para Yaqub. Na viagem de volta a Manaus, fez um longo sermão sobre educação doméstica: o que não se deve mijar na rua, nem comer como uma anta, nem cuspir no chão, e Yaqub, sim, Baba, a cabeça baixa, vomitando quando o bimotor chacoalhava, os olhos fundos no rosto pálido, a expressão de pânico toda vez que o avião decolava ou aterrissava nas seis escalas entre o Rio de Janeiro e Manaus.

        Zana os esperava no aeroporto desde o começo da tarde. Ela estacionou o Land Rover verde, foi até a varanda e ficou olhando para o leste. Quando viu o bimotor prateado aproximar-se da cabeceira da pista, desceu correndo, atravessou a sala de desembarque, subornou um funcionário, caminhou altivo até o avião, subiu a escada e irrompeu na cabine. Levava um buquê de helicôneas que deixou cair ao abraçar o filho ainda lívido de pavor, dizendo-lhe, "Meu querido, meus olhos, minha vida", chorando, "Por que tanta demora? O que fizeram contigo?", beijando-lhe o rosto, o pescoço, a cabeça, sob o olhar incrédulo de tripulantes e passageiros, até que Halim disse, "Chega! Agora vamos descer, o Yaqub não parou de provocar, só faltou pôr as tripas para fora". Mas ela não cessou os afagos, e saiu do avião abraçada ao filho, e assim desceu a escada e caminhou até a sala de desembarque, radiante, cheia de si, como se enfim tivesse reconquistado uma parte de sua própria vida: o gêmeo que se ausentara por capricho ou teimosia de Halim. E ela permitiu por alguma razão incompreensível, por alguma razão incompreensível, por alguma coisa que parecia insensatez ou paixão, devoção cega e irrefreável, ou tudo isso junto, e que ela não quis ou nunca soube nomear.

        Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto quanto o outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava um suspiro depois do riso, igualzinho ao outro. A distância não dissipara certos tiques e atitudes comuns, mas a separação fizera Yaqub esquecer certas palavras da língua portuguesa. Ele falava pouco, pronunciando monossílabos ou frases curtas; calava quando podia, e, às vezes, quando não devia.

        Zana logo percebeu. Via o filho sorrir, suspirar e evitar as palavras, como se um silêncio paralisante o envolvesse.

        No caminho do aeroporto para casa, Yaqub reconheceu um pedaço da infância vivida em Manaus, se emocionou com a visão dos barcos coloridos, atracados às margens dos igarapés por onde ele, o irmão e o pai tinham navegado numa canoa coberta de palha. Yaqub olhou para o pai e apenas balbuciou sons embaralhados.

        "O que aconteceu?", perguntou Zana. "Arrancaram a tua língua?"

        "La, não, mama", disse ele, sem tirar os olhos da paisagem da infância, de alguma coisa interrompida antes do tempo, bruscamente.

        [...]

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 13-17.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 502-503.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o tema central do conto?

      A relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, e os impactos da separação e do reencontro em suas vidas e na dinâmica familiar.

02 – Por que Yaqub foi para o Líbano?

      Yaqub foi enviado para o Líbano por seu pai, Halim, para morar com seus parentes. A mãe, Zana, inicialmente não queria mandar os dois filhos, mas Halim insistiu em enviar apenas Yaqub.

03 – O que aconteceu com Yaqub no Líbano?

      Yaqub passou cinco anos no sul do Líbano, onde cresceu e se adaptou à cultura local. Ele retornou ao Brasil transformado, tanto física quanto culturalmente.

04 – Como foi o reencontro de Yaqub com seu pai?

      O reencontro foi emocionante, mas também tenso. Yaqub mal reconheceu o pai e demonstrou comportamentos inesperados, como urinar em público, evidenciando o choque cultural que sofreu.

05 – Qual era a maior preocupação de Halim?

      A maior preocupação de Halim era a reação dos gêmeos ao se reencontrarem após a longa separação, temendo os impactos que isso poderia causar em suas vidas.

06 – Como Zana reagiu ao retorno de Yaqub?

      Zana reagiu com grande emoção e felicidade, demonstrando um amor e preocupação intensos pelo filho. Ela o abraçou e beijou efusivamente, mostrando que sentia muito a falta dele.

07 – Quais eram as semelhanças entre Yaqub e Omar?

      Yaqub e Omar eram muito parecidos fisicamente, com o mesmo rosto, olhos, cabelo e altura. Eles também compartilhavam tiques e atitudes em comum.

08 – O que Yaqub trouxe do Líbano?

      Yaqub trouxe apenas um farnel com pães embolorados e figos secos, além de muitas lembranças e experiências de sua vida no Líbano. Ele não trouxe presentes ou cartas.

09 – Por que Yaqub não falava muito?

      Yaqub evitava falar português por ter se distanciado da língua durante sua estadia no Líbano. Ele parecia ter dificuldades em se expressar e se comunicar em português.

10 – Qual é a importância da infância de Yaqub em Manaus para a história?

      A infância de Yaqub em Manaus é importante para mostrar a ligação dele com a cidade e como a separação e o tempo no Líbano o afetaram profundamente. Ele reconhece lugares da infância, mas tem dificuldade de se expressar, mostrando o impacto da mudança em sua vida.

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