Romance: Inocência – Fragmento
Visconde de Taunay
Estava Cirino fazendo o inventário da
sua roupa e já começava a anoitecer, quando Pereira novamente a ele se chegou.
-- Doutor, disse o mineiro, pode agora
mecê entrar para ver a pequena. Está com o pulso que nem um fio, mas não tem
febre de qualidade nenhuma.
-- Assim é bem melhor, respondeu
Cirino.
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E, arranjando precipitadamente o que
havia tirado da canastra, fechou-a e pôs-se de pé.
Antes de sair da sala, deteve Pereira o
hóspede com ar de quem precisava tocar em assunto de gravidade e ao mesmo tempo
de difícil explicação.
Afinal começou meio hesitante:
-- Sr. Cirino, eu cá sou homem muito
bom de gênio, muito amigo de todos, muito acomodado e que tenho o coração perto
da boca, como vosmecê deve ter visto...
-- Por certo, concordou o outro.
-- Pois bem, mas... tenho um grande
defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da minha casa
e... deve postar-se como...
-- Oh, Sr. Pereira! Atalhou Cirino com
animação, mas sem grande estranheza, pois conhecia o zelo com que os homens do
sertão guardam da vista dos profanos os seus aposentos domésticos, posso
gabar-me de ter sido recebido no seio de muita família honesta e sei proceder
como devo.
Expandiu-se um tanto o rosto do
mineiro.
-- Vejo, disse ele com algum
acanhamento, que o doutor não é nenhum pé-rapado, mas nunca é bom facilitar...
E já que não há outro remédio, vou dizer-lhe todos os meus segredos... não
metem vergonha a ninguém, com o favor de Deus; mas negócios da minha casa não
gosto de bater língua... Minha filha Nocência fez 18 anos pelo Natal, e é
rapariga que pela feição parece moça de cidade, muito ariscazinha de modos, mas
bonita e boa deveras... Coitada, foi criada sem mãe, e aqui nestes fundões.
[...]
-- Ora muito bem, continuou Pereira
caindo aos poucos na habitual garrulice, quando vi a menina tomar corpo, tratei
logo de casá-la.
-- Ah! É casada? Perguntou Cirino.
-- Isto é, é e não é. A coisa está
apalavrada. Por aqui costuma labutar no costeio do gado para são Paulo um homem
de mão-cheia, que talvez o Sr. Conheça... o Manecão Doca...
[...]
-- Esta obrigação de casar as mulheres
é o diabo!... Se não tomam estado, ficam jururus e fanadinhas...; se casam
podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias!... Ih,
meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... São redomas de vidro que
tudo pode quebrar... Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de
meus pais... O Manecão que se aguente, quando a tiver por sua... Com gente de
saia não há que fiar... Cruz! Botam famílias inteira a perder, enquanto o demo
esfrega um olho.
Esta opinião injuriosa sobre as
mulheres é, em geral, corrente nos sertões e traz como consequência imediata e
prática, além da rigorosa clausura em que são mantidas, não só o casamento
convencionado entre parentes muito chegados para filhos de menor idade, mas
sobretudo os numerosos crimes cometidos, mal se suspeita possibilidade de
qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho.
[...]
-- Sr. Pereira, replicou Cirino com calma,
já lhe disse e torno a dizer que, como médico, estou há muito tempo acostumado
a lidar com famílias e a respeitá-las. É este meu dever, e até hoje, graças a
Deus, a minha fama é boa... Quanto às mulheres, não tenho as suas opiniões, nem
as acho razoáveis nem de justiça. Entretanto, é inútil discutirmos porque sei
que falou-me com toda franqueza, e também com franqueza quero responder. No meu
parecer, as mulheres são tão boas como nós, se não melhores: não há, pois,
motivo para tanto desconfiar delas e ter os homens em tão boa conta... Enfim,
essas suas ideias podem quadrar-lhe à vontade, e é costume meu antigo a ninguém
contrariar, para viver bem com todos e deles merecer o tratamento que julgo ter
direito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deus para todos nós, e ninguém
queira arvorar-se em palmatória do mundo.
Tal profissão de fé, expedida em tom
dogmático e superior, pareceu impressionar agradavelmente a Pereira, que fora
aplaudido com expressivo movimento de cabeça a sensatez dos conceitos e a
fluência da frase.
[...]
6. ed. São Paulo: Ática, 1984. p. 29-32.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p.
218-219.
Entendendo o romance:
01 – Qual é o contexto da cena
apresentada no fragmento?
O fragmento
descreve o encontro entre Cirino, um médico, e Pereira, um homem do sertão.
Pereira pede que Cirino examine sua filha, Inocência, que está doente. A
conversa revela costumes e valores da sociedade sertaneja do século XIX, como a
desconfiança em relação a estranhos e a visão tradicional sobre o papel das
mulheres.
02 – Qual é a principal
preocupação de Pereira ao receber Cirino em sua casa?
Pereira demonstra grande preocupação com a privacidade de sua
família, especialmente de sua filha Inocência. Ele expressa desconfiança em
relação a Cirino, apesar de reconhecer sua profissão e boa fama, e teme que a
presença do médico possa comprometer a honra da família.
03 – O que o diálogo entre
Cirino e Pereira revela sobre a visão da sociedade sertaneja sobre as mulheres?
O diálogo revela
que a sociedade sertaneja da época tinha uma visão tradicional e, por vezes,
preconceituosa sobre as mulheres. Pereira expressa a opinião de que as mulheres
são "redomas de vidro" que podem "quebrar" a qualquer
momento, causando problemas e "pondo famílias inteiras a perder".
Essa visão reflete a desconfiança e o controle excessivo sobre as mulheres, que
eram mantidas em clausura e tinham seus casamentos arranjados pelos pais.
04 – Qual é a opinião de
Cirino sobre a visão de Pereira em relação às mulheres?
Cirino discorda
da visão de Pereira sobre as mulheres, defendendo que elas são "tão boas
como nós, se não melhores". Ele argumenta que não há motivo para tanta
desconfiança e que as mulheres merecem ser tratadas com respeito e igualdade.
05 – Como Cirino se comporta
diante da desconfiança de Pereira?
Cirino se mostra
calmo e paciente diante da desconfiança de Pereira. Ele procura tranquilizá-lo,
afirmando que tem experiência em lidar com famílias e que sempre respeitou a
privacidade de seus pacientes. Ao mesmo tempo, Cirino não deixa de expressar
sua opinião sobre a visão de Pereira em relação às mulheres, defendendo seus
próprios valores com educação e respeito.
06 – Qual é o significado da
expressão "mulheres numa casa, é coisa de meter medo"?
Essa expressão
reflete o medo e a desconfiança que muitos homens sertanejos sentiam em relação
às mulheres. Acreditava-se que as mulheres eram frágeis, volúveis e capazes de
causar grandes problemas para a família. Essa visão contribuiu para a criação
de um ambiente de controle e opressão sobre as mulheres, que eram mantidas em
clausura e tinham seus direitos limitados.
07 – O que o fragmento revela
sobre os costumes e valores da sociedade sertaneja do século XIX?
O fragmento
revela que a sociedade sertaneja do século XIX era marcada por costumes e
valores tradicionais, como a desconfiança em relação a estranhos, o controle
excessivo sobre as mulheres e a importância da honra familiar. As mulheres eram
vistas como seres frágeis e dependentes, que precisavam ser protegidas e
controladas pelos homens da família. O casamento era arranjado pelos pais e as
mulheres tinham pouca autonomia para tomar decisões sobre suas próprias vidas.
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