domingo, 16 de fevereiro de 2025

ROMANCE: INOCÊNCIA - (FRAGMENTO) - VISCONDE DE TAUNAY - COM GABARITO

 Romance: Inocência – Fragmento

                 Visconde de Taunay

        Estava Cirino fazendo o inventário da sua roupa e já começava a anoitecer, quando Pereira novamente a ele se chegou.

        -- Doutor, disse o mineiro, pode agora mecê entrar para ver a pequena. Está com o pulso que nem um fio, mas não tem febre de qualidade nenhuma.

        -- Assim é bem melhor, respondeu Cirino.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_xysLzdNFlMUN9E9azv5H03MrIwg-JM8a-wddmFpXmGp3K3vCdJdNreNOyyvp6aq3iWz4dUwFW8jeSJlJ2fPrDPmV7fCL58lt0aL4ZVH7RcWMnBZs-wQBbgXoo9C9Ju-PY4CYnITav3hjB9Qib53ADkA94sOYt3qUH5DW2TrX3l19e15V_oihnZyTni4/s320/Inocencia-Visconde-de-Taunay-3a-Ed..jpg


        E, arranjando precipitadamente o que havia tirado da canastra, fechou-a e pôs-se de pé.

        Antes de sair da sala, deteve Pereira o hóspede com ar de quem precisava tocar em assunto de gravidade e ao mesmo tempo de difícil explicação.

        Afinal começou meio hesitante:

        -- Sr. Cirino, eu cá sou homem muito bom de gênio, muito amigo de todos, muito acomodado e que tenho o coração perto da boca, como vosmecê deve ter visto...

        -- Por certo, concordou o outro.

        -- Pois bem, mas... tenho um grande defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da minha casa e... deve postar-se como...

        -- Oh, Sr. Pereira! Atalhou Cirino com animação, mas sem grande estranheza, pois conhecia o zelo com que os homens do sertão guardam da vista dos profanos os seus aposentos domésticos, posso gabar-me de ter sido recebido no seio de muita família honesta e sei proceder como devo.

        Expandiu-se um tanto o rosto do mineiro.

        -- Vejo, disse ele com algum acanhamento, que o doutor não é nenhum pé-rapado, mas nunca é bom facilitar... E já que não há outro remédio, vou dizer-lhe todos os meus segredos... não metem vergonha a ninguém, com o favor de Deus; mas negócios da minha casa não gosto de bater língua... Minha filha Nocência fez 18 anos pelo Natal, e é rapariga que pela feição parece moça de cidade, muito ariscazinha de modos, mas bonita e boa deveras... Coitada, foi criada sem mãe, e aqui nestes fundões.

        [...]

        -- Ora muito bem, continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quando vi a menina tomar corpo, tratei logo de casá-la.

        -- Ah! É casada? Perguntou Cirino.

        -- Isto é, é e não é. A coisa está apalavrada. Por aqui costuma labutar no costeio do gado para são Paulo um homem de mão-cheia, que talvez o Sr. Conheça... o Manecão Doca...

        [...]

        -- Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!... Se não tomam estado, ficam jururus e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias!... Ih, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... O Manecão que se aguente, quando a tiver por sua... Com gente de saia não há que fiar... Cruz! Botam famílias inteira a perder, enquanto o demo esfrega um olho.

        Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é, em geral, corrente nos sertões e traz como consequência imediata e prática, além da rigorosa clausura em que são mantidas, não só o casamento convencionado entre parentes muito chegados para filhos de menor idade, mas sobretudo os numerosos crimes cometidos, mal se suspeita possibilidade de qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho.

        [...]

        -- Sr. Pereira, replicou Cirino com calma, já lhe disse e torno a dizer que, como médico, estou há muito tempo acostumado a lidar com famílias e a respeitá-las. É este meu dever, e até hoje, graças a Deus, a minha fama é boa... Quanto às mulheres, não tenho as suas opiniões, nem as acho razoáveis nem de justiça. Entretanto, é inútil discutirmos porque sei que falou-me com toda franqueza, e também com franqueza quero responder. No meu parecer, as mulheres são tão boas como nós, se não melhores: não há, pois, motivo para tanto desconfiar delas e ter os homens em tão boa conta... Enfim, essas suas ideias podem quadrar-lhe à vontade, e é costume meu antigo a ninguém contrariar, para viver bem com todos e deles merecer o tratamento que julgo ter direito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deus para todos nós, e ninguém queira arvorar-se em palmatória do mundo.

        Tal profissão de fé, expedida em tom dogmático e superior, pareceu impressionar agradavelmente a Pereira, que fora aplaudido com expressivo movimento de cabeça a sensatez dos conceitos e a fluência da frase.

        [...]

6. ed. São Paulo: Ática, 1984. p. 29-32.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 218-219.

Entendendo o romance:

01 – Qual é o contexto da cena apresentada no fragmento?

      O fragmento descreve o encontro entre Cirino, um médico, e Pereira, um homem do sertão. Pereira pede que Cirino examine sua filha, Inocência, que está doente. A conversa revela costumes e valores da sociedade sertaneja do século XIX, como a desconfiança em relação a estranhos e a visão tradicional sobre o papel das mulheres.

02 – Qual é a principal preocupação de Pereira ao receber Cirino em sua casa?

      Pereira demonstra grande preocupação com a privacidade de sua família, especialmente de sua filha Inocência. Ele expressa desconfiança em relação a Cirino, apesar de reconhecer sua profissão e boa fama, e teme que a presença do médico possa comprometer a honra da família.

03 – O que o diálogo entre Cirino e Pereira revela sobre a visão da sociedade sertaneja sobre as mulheres?

      O diálogo revela que a sociedade sertaneja da época tinha uma visão tradicional e, por vezes, preconceituosa sobre as mulheres. Pereira expressa a opinião de que as mulheres são "redomas de vidro" que podem "quebrar" a qualquer momento, causando problemas e "pondo famílias inteiras a perder". Essa visão reflete a desconfiança e o controle excessivo sobre as mulheres, que eram mantidas em clausura e tinham seus casamentos arranjados pelos pais.

04 – Qual é a opinião de Cirino sobre a visão de Pereira em relação às mulheres?

      Cirino discorda da visão de Pereira sobre as mulheres, defendendo que elas são "tão boas como nós, se não melhores". Ele argumenta que não há motivo para tanta desconfiança e que as mulheres merecem ser tratadas com respeito e igualdade.

05 – Como Cirino se comporta diante da desconfiança de Pereira?

      Cirino se mostra calmo e paciente diante da desconfiança de Pereira. Ele procura tranquilizá-lo, afirmando que tem experiência em lidar com famílias e que sempre respeitou a privacidade de seus pacientes. Ao mesmo tempo, Cirino não deixa de expressar sua opinião sobre a visão de Pereira em relação às mulheres, defendendo seus próprios valores com educação e respeito.

06 – Qual é o significado da expressão "mulheres numa casa, é coisa de meter medo"?

      Essa expressão reflete o medo e a desconfiança que muitos homens sertanejos sentiam em relação às mulheres. Acreditava-se que as mulheres eram frágeis, volúveis e capazes de causar grandes problemas para a família. Essa visão contribuiu para a criação de um ambiente de controle e opressão sobre as mulheres, que eram mantidas em clausura e tinham seus direitos limitados.

07 – O que o fragmento revela sobre os costumes e valores da sociedade sertaneja do século XIX?

      O fragmento revela que a sociedade sertaneja do século XIX era marcada por costumes e valores tradicionais, como a desconfiança em relação a estranhos, o controle excessivo sobre as mulheres e a importância da honra familiar. As mulheres eram vistas como seres frágeis e dependentes, que precisavam ser protegidas e controladas pelos homens da família. O casamento era arranjado pelos pais e as mulheres tinham pouca autonomia para tomar decisões sobre suas próprias vidas.

 

 

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