Texto: Relato de um náufrago; EU ERA UM MORTO – Fragmento
Gabriel García Márquez
Não me lembro do amanhecer do sexto
dia. Tenho uma ideia nebulosa de que, durante toda a manhã, fiquei prostrado no
fundo da balsa, entre a vida e a morte. Nesses momentos, pensava em minha
família e a via tal como me contaram agora que esteve durante os dias do meu
desaparecimento. Não fiquei surpreso com a notícia de que tinham me prestado
homenagens fúnebres. Naquela sexta manhã de solidão no mar, pensei que tudo
isso estava acontecendo. Sabia que haviam comunicado à minha família o meu
desaparecimento. Como os aviões não voltaram, sabia que tinham desistido da
busca e que me haviam declarado morto.
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Nada disso era errado, até certo ponto.
Em todos os momentos, tratei de me defender. Encontrei sempre um meio de me
defender. Encontrei sempre um meio de sobreviver, um ponto de apoio, por
insignificante que fosse, para continuar esperando. No sexto dia, porém, já que
não esperava mais nada. Eu era um morto na balsa.
Á tarde, pensando que logo seriam cinco
horas e os tubarões voltariam, fiz um desesperado esforço para me levantar e me
amarrar à borda. Em Cartagena, há dois anos, vi na praia os restos de um homem
destroçado por tubarão. Não queria morrer assim. Não queria ser repartido em
pedaços entre um montão de animais insaciáveis.
Eram quase cinco horas. Pontuais, os
tubarões estavam ali, rodando a balsa. Levantei-me penosamente para desatar os
cabos do estrado. A tarde era fresca. O mar, tranquilo. Senti-me ligeiramente
fortalecido. Subitamente, vi outra vez as sete gaivotas do dia anterior e essa
visão infundiu em mim renovados desejos de viver.
Nesse instante teria comido qualquer
coisa. A fome me incomodava. Mas o pior era a garganta e a dor nas mandíbulas,
endurecidas pela falta de exercício. Precisava mastigar qualquer coisa. Tentei
arrancar tiras de borrachas dos sapatos, mas não tinha com que cortá-las. Foi
então que lembrei dos cartões da loja de Mobile.
Estavam
num dos bolsos da calça, quase completamente desfeitos pela umidade.
Rasguei-os, levei-os à boca e comecei a mastigar. Foi um milagre: a garganta se
aliviou um pouco e a boca se encheu de saliva. Lentamente continuei mastigando,
como se aquilo fosse chiclete. [...] Pensava continuar mastigando os
cartões indefinidamente para aliviar a dor das mandíbulas e até achei que seria
desperdício jogá-los no mar. Senti descer até o estômago a minúscula papa de
papelão moído e desde esse instante tive a sensação de que me salvaria, de que
não seria destroçado pelos tubarões. [...]
Afinal, amanheceu o meu sétimo dia no
mar. Não sei por que estava certo de que esse não seria o último. O mar estava
tranquilo e nublado, e quando o sol saiu, mais ou menos às oito da manhã, eu me
sentia reconfortado pelo bom sono da noite. Contra o céu cinza e baixo passaram
sobre a balsa as sete gaivotas.
Dois dias antes eu sentira uma grande
alegria vendo as sete gaivotas. Mas quando as vi pela terceira vez, depois de
tê-las visto durante dois dias consecutivos, senti o terror renascer. “são sete
gaivotas perdidas”, pensei, com desespero. Todo marinheiro sabe que, às vezes,
um bando de gaivotas se perde no mar e voa sem direção, durante vários dias,
até encontrar e seguir um barco que lhes indique a direção do porto. Talvez
aquelas gaivotas que vira durante três dias fossem as mesmas todos os dias,
perdidas no mar. Isso significa que eu me distanciava cada vez mais da terra.
Gabriel Garcia Márquez, Relato de um náufrago. 3. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1970. p. 70-3.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p.
99-100.
Entendendo o texto:
01 – Qual é o estado do
narrador no início do fragmento?
O narrador se
encontra em um estado de prostração, entre a vida e a morte, no sexto dia de
seu naufrágio. Ele se sente como um morto na balsa, sem esperanças de
sobrevivência.
02 – O que leva o narrador a
ter um esforço desesperado para se levantar e se amarrar à borda da balsa?
O narrador se
lembra de ter visto, em Cartagena, os restos de um homem destroçado por um
tubarão. Ele teme que o mesmo possa acontecer com ele, já que os tubarões costumam
voltar ao entardecer.
03 – Qual é a importância da
visão das sete gaivotas para o narrador?
A visão das sete
gaivotas traz ao narrador renovados desejos de viver. Ele se sente fortalecido
e encontra nelas um sinal de esperança em meio ao desespero.
04 – O que o narrador faz para
aliviar a fome e a dor nas mandíbulas?
O narrador, em um
momento de desespero e necessidade, lembra-se dos cartões da loja Mobile que
estão em seu bolso. Ele os rasga, os leva à boca e começa a mastigar, como se
fossem chicletes.
05 – Qual é a reação do
narrador ao amanhecer do sétimo dia no mar?
O narrador acorda
no sétimo dia com a certeza de que não será o último. Ele se sente reconfortado
pelo sono da noite e observa as gaivotas, que o fazem sentir esperançoso.
06 – Por que o narrador sente
terror ao ver as gaivotas pela terceira vez?
O narrador
percebe que as gaivotas podem estar perdidas no mar, o que significa que ele
pode estar se distanciando da terra e de qualquer chance de resgate. Essa constatação
o enche de terror.
07 – Qual é a principal
mensagem transmitida no fragmento?
O fragmento
transmite a luta do ser humano pela sobrevivência em condições extremas, a
importância da esperança e da fé, e a força da natureza, que pode ser tanto
ameaçadora quanto fonte de salvação.
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