segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

TEXTO: RELATO DE UM NÁUFRAGO; EU ERA UM MORTO - (FRAGMENTO) - GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ - COM GABARITO

 Texto: Relato de um náufrago; EU ERA UM MORTO – Fragmento 

            Gabriel García Márquez

        Não me lembro do amanhecer do sexto dia. Tenho uma ideia nebulosa de que, durante toda a manhã, fiquei prostrado no fundo da balsa, entre a vida e a morte. Nesses momentos, pensava em minha família e a via tal como me contaram agora que esteve durante os dias do meu desaparecimento. Não fiquei surpreso com a notícia de que tinham me prestado homenagens fúnebres. Naquela sexta manhã de solidão no mar, pensei que tudo isso estava acontecendo. Sabia que haviam comunicado à minha família o meu desaparecimento. Como os aviões não voltaram, sabia que tinham desistido da busca e que me haviam declarado morto.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiFYIfIL0D1HhkT2m6nKwDpirBHSeVuGUdYa_9cV_o49XqOlu3qmOBNB-0FIjnYMQ76LgEGYC8Q0o5z3TXYYOjboT2TrqCuICVuFbnxBLPvmDPerRTbyfWcaqHsy3jjiSI6jTqUwYryXvn_b_mYtUHQ9cOIBXIXKouO-KBcRqhpa4SyGVcrlDqJiSZ-aqQ/s320/RELATO.jpg


        Nada disso era errado, até certo ponto. Em todos os momentos, tratei de me defender. Encontrei sempre um meio de me defender. Encontrei sempre um meio de sobreviver, um ponto de apoio, por insignificante que fosse, para continuar esperando. No sexto dia, porém, já que não esperava mais nada. Eu era um morto na balsa. 

        Á tarde, pensando que logo seriam cinco horas e os tubarões voltariam, fiz um desesperado esforço para me levantar e me amarrar à borda. Em Cartagena, há dois anos, vi na praia os restos de um homem destroçado por tubarão. Não queria morrer assim. Não queria ser repartido em pedaços entre um montão de animais insaciáveis.

        Eram quase cinco horas. Pontuais, os tubarões estavam ali, rodando a balsa. Levantei-me penosamente para desatar os cabos do estrado. A tarde era fresca. O mar, tranquilo. Senti-me ligeiramente fortalecido. Subitamente, vi outra vez as sete gaivotas do dia anterior e essa visão infundiu em mim renovados desejos de viver.

        Nesse instante teria comido qualquer coisa. A fome me incomodava. Mas o pior era a garganta e a dor nas mandíbulas, endurecidas pela falta de exercício. Precisava mastigar qualquer coisa. Tentei arrancar tiras de borrachas dos sapatos, mas não tinha com que cortá-las. Foi então que lembrei dos cartões da loja de Mobile.

        Estavam num dos bolsos da calça, quase completamente desfeitos pela umidade. Rasguei-os, levei-os à boca e comecei a mastigar. Foi um milagre: a garganta se aliviou um pouco e a boca se encheu de saliva. Lentamente continuei mastigando, como se aquilo fosse chiclete. [...] Pensava continuar mastigando os cartões indefinidamente para aliviar a dor das mandíbulas e até achei que seria desperdício jogá-los no mar. Senti descer até o estômago a minúscula papa de papelão moído e desde esse instante tive a sensação de que me salvaria, de que não seria destroçado pelos tubarões. [...]

        Afinal, amanheceu o meu sétimo dia no mar. Não sei por que estava certo de que esse não seria o último. O mar estava tranquilo e nublado, e quando o sol saiu, mais ou menos às oito da manhã, eu me sentia reconfortado pelo bom sono da noite. Contra o céu cinza e baixo passaram sobre a balsa as sete gaivotas. 

        Dois dias antes eu sentira uma grande alegria vendo as sete gaivotas. Mas quando as vi pela terceira vez, depois de tê-las visto durante dois dias consecutivos, senti o terror renascer. “são sete gaivotas perdidas”, pensei, com desespero. Todo marinheiro sabe que, às vezes, um bando de gaivotas se perde no mar e voa sem direção, durante vários dias, até encontrar e seguir um barco que lhes indique a direção do porto. Talvez aquelas gaivotas que vira durante três dias fossem as mesmas todos os dias, perdidas no mar. Isso significa que eu me distanciava cada vez mais da terra.

Gabriel Garcia Márquez, Relato de um náufrago. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1970. p. 70-3.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 99-100.

Entendendo o texto:

01 – Qual é o estado do narrador no início do fragmento?

      O narrador se encontra em um estado de prostração, entre a vida e a morte, no sexto dia de seu naufrágio. Ele se sente como um morto na balsa, sem esperanças de sobrevivência.

02 – O que leva o narrador a ter um esforço desesperado para se levantar e se amarrar à borda da balsa?

      O narrador se lembra de ter visto, em Cartagena, os restos de um homem destroçado por um tubarão. Ele teme que o mesmo possa acontecer com ele, já que os tubarões costumam voltar ao entardecer.

03 – Qual é a importância da visão das sete gaivotas para o narrador?

      A visão das sete gaivotas traz ao narrador renovados desejos de viver. Ele se sente fortalecido e encontra nelas um sinal de esperança em meio ao desespero.

04 – O que o narrador faz para aliviar a fome e a dor nas mandíbulas?

      O narrador, em um momento de desespero e necessidade, lembra-se dos cartões da loja Mobile que estão em seu bolso. Ele os rasga, os leva à boca e começa a mastigar, como se fossem chicletes.

05 – Qual é a reação do narrador ao amanhecer do sétimo dia no mar?

      O narrador acorda no sétimo dia com a certeza de que não será o último. Ele se sente reconfortado pelo sono da noite e observa as gaivotas, que o fazem sentir esperançoso.

06 – Por que o narrador sente terror ao ver as gaivotas pela terceira vez?

      O narrador percebe que as gaivotas podem estar perdidas no mar, o que significa que ele pode estar se distanciando da terra e de qualquer chance de resgate. Essa constatação o enche de terror.

07 – Qual é a principal mensagem transmitida no fragmento?

      O fragmento transmite a luta do ser humano pela sobrevivência em condições extremas, a importância da esperança e da fé, e a força da natureza, que pode ser tanto ameaçadora quanto fonte de salvação.

 

 

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