Conto: Bom de Ouvido
Ana Maria Machado
Volta e meia a gente encontra alguém
que foi alfabetizado, mas não sabe ler. Quer dizer, até domina a técnica de
juntar as sílabas e é capaz de distinguir no vidro dianteiro o itinerário de um
ônibus. Mas passa longe de livro, revista, material impresso em geral. Gente
que diz que não curte ler.
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Esquisito mesmo. Sei lá, nesses casos,
sempre acho que é como se a pessoa estivesse dizendo que não curte namorar.
Talvez nunca tenha tido a chance de descobrir como é gostoso. Nem nunca tenha
parado para pensar que, se teve alguma experiência desastrosa em um namoro (ou
em uma leitura), isso não quer dizer que todas vão ser assim. É só trocar de
namorado ou namorada. Ou de livro. De repente, pode descobrir delícias que nem
imaginava, gostosuras fantásticas, prazeres incríveis. Ninguém devia ser
obrigado a namorar quem não quer. Ou ler o que não tem vontade. E todo mundo
devia ter a oportunidade de experimentar um bocado nessa área, até descobrir
qual é a sua.
Durante 18 anos, eu tive uma livraria
infantil. De vez em quando, chegavam uns pais ou avós com a mesma queixa:
"O Joãozinho não gosta de ler, o que é que eu faço?" Como eu acho que
o ser humano é curioso por natureza e qualquer pessoa alfabetizada fica doida
pra saber o segredo que tem dentro de um livro (desde que ninguém esteja
tentando lhe impingir essa leitura feito remédio amargo pela goela abaixo), não
acredito mesmo nessa história de criança não gostar de ler. Então, o que eu
dizia naqueles casos não variava muito.
A primeira coisa era algo como
"pára de encher o saco do Joãozinho com essa história de que ele tem que
ler". Geralmente, em termos mais delicados: "Por que você não
experimenta aliviar a pressão em cima dele, e passar uns seis meses sem dar
conselhos de leitura?"
O
passo seguinte era uma sugestão: "Experimente deixar um livro como este ao
alcance do Joãozinho, num lugar onde ele possa ler escondido, sem parecer que
está fazendo a sua vontade. No banheiro, por exemplo." E o que eu chamava
de um livro como este, já na minha mão estendida em oferta, podia ser um
exemplar de O Menino Maluquinho, do Ziraldo, ou do Marcelo, Marmelo, Martelo,
da Ruth Rocha, ou de O Gênio do Crime, do João Carlos Marinho. Havia vários
outros títulos que também serviam. Mas o fato é que, em 18 anos de experiência,
NUNCA, nem uma única vez, apareceu depois um pai reclamando que aquela sugestão
não tinha dado certo. Pelo contrário, incontáveis vezes o encontro seguinte já
incluía um Joãozinho entusiasmado, comentando o livro lido e disposto a fazer
novas descobertas. Para adolescentes e jovens, a coisa é um pouco mais
complicada. Não porque não haja livro bom assim como os que citei. Pelo
contrário, tem de montão. Eu seria capaz de encher páginas e páginas só dando
sugestões e comentando cada uma delas. A quantidade chega até a atrapalhar a
escolha, não é esse o problema. Mas aí já entram em cena muitas outras
variáveis.
O fôlego de leitura do sujeito, por
exemplo. Igualzinho ao que acontece nos esportes. Como quem sabe que não vai aguentar
jogar noventa minutos, e então nem bate uma bolinha, dizendo que acha futebol
um jogo idiota. Há quem desanime só de ver o número de páginas do livro, ou o
tamanho da letra, ou o fato de não ter ilustração. Nesse caso, o cara acha que
vai ficar de língua de fora e pagar o maior mico. Não percebe que não está
competindo com ninguém.
Também não tem ninguém na arquibancada
olhando sua performance. Dá para levar o tempo que quiser para chegar ao fim do
livro. Ler uma página por dia, por exemplo, se não quiser ir mais depressa. Num
livro como este aqui, dá pra fazer isso – as histórias são curtinhas.
Para outros candidatos a leitor, não é
uma questão de fôlego, mas de medo de não ter musculatura para ler. De só dar
chute chocho e a bola não ir longe. De não aguentar a força do que está
escrito, não entender umas palavras, não perceber o que o autor quer dizer e
ficar se achando um burro. Se nunca usar, o músculo pode acabar tão atrofiado
que o cara não consegue nem mastigar, fica feito um bebê, só come papinha, sopa
e sorvete. Incapaz de traçar um churrasco – para não falar em ir ao
supermercado trazer a carne, ou plantar a própria horta. Dá um trabalho...
Quando vejo essa atitude, sempre me lembro daquela frase: “Acha que educação
custa caro?”
Experimente só a ignorância... Mas, de
qualquer modo, dá também para ser solidário com quem ainda não teve chance de
desenvolver sua musculatura leitora. Tudo bem, vamos devagar. Lendo textos
curtos, fáceis, divertidos, variados, numa linguagem clara e parecida com a que
a gente fala todo dia (e toda noite, não há limites).
É só folhear este livro. Pode ser que
alguma história atraia sua atenção e mostre que, mesmo que uma ou outra palavra
lhe escape, ninguém está falando complicado.
Outra questão difícil na escolha de uma
leitura de jovens e adolescentes, em minha opinião, é que eles já são
praticamente adultos. Ainda mais hoje em dia, e no nosso país. Não têm que
ficar lendo histórias de uma turminha de garotos que só se trata por
apelidinhos idiotas e inventa uma máquina do tempo ou apura um crime, ou
enfrenta o terror de múmias e mortos-vivos a serviço de um cientista maluco, ou
vive aventuras nos Mares do Sul, no Vale dos Dinossauros, na Galáxia Superior
ou no Reino do Escambau. É até uma falta de respeito com a inteligência e a
capacidade dos jovens. Eles podem rir, brincar, gostar de ter amigos e de se
divertir, mas também gostam muito de pensar e de criticar um bocado das
heranças malucas que esse chamado mundo dos adultos está deixando para eles. E
muitos dos livros que esses adultos (que muitas vezes não leem) querem que eles
leiam ficam batendo nessa tecla da “bobajada divertida”.
Coisas que até tinham algum sentido em
gerações anteriores, mas hoje apanham de goleada de qualquer videogame – porque
são um tipo de diversão que não precisa de palavras.
E quando os livros que os adultos
querem que os jovens leiam não são esses, pior ainda: lá vem aqueles autores do
século XIX... e já estamos no XXI! Podem ser ótimos, importantes e tudo o mais
- ninguém está negando isso. Mas não são o tipo de leitura ideal para aquele
primeiro namoro/leitura cheio de delícias e gostosuras, quando o leitor ainda
nem tem vinte anos.
E tem mais. Nessa idade, todo mundo
gosta de procurar sua tribo. Há quem goste de pagode, quem se amarre em música
sertaneja, quem só queira saber de rock. A turma que madruga e batalha para
conciliar estudo e trabalho, o pessoal que discute política e faz manifestação,
a moçada que não está nem aí. Se eles não se vestem igual, não frequentam os
mesmos lugares, não se deslocam nos mesmos transportes, não curtem o mesmo tipo
de música, não falam a mesma gíria, como é que de repente a gente vai encontrar
um livro assim como O Menino Maluquinho para jovens, capaz de atingir a todos,
tão diferentes?
A sorte é que o Brasil é incrível e
produz essas coisas. A nossa cultura tem sido capaz de revelar de vez em quando
uns artistas que são assim, porta-vozes de todos. Tipo Chico Buarque na música.
Ou um filme como Central do Brasil, no cinema. E muitos outros.
Mais do que isso: tem sido uma
permanente preocupação da arte brasileira, desde o modernismo de 1922, procurar
ao mesmo tempo inventar uma linguagem nova e se expressar de uma maneira
reconhecida por todos como nossa, brasileira. No caso da literatura, todo
escritor que surgiu desde essa época teve que em algum momento decidir que tipo
de língua ia usar para ajudar a criar a linguagem escrita brasileira. Um
português que não seja artificial, enquadrado e certinho como impingiam os
gramáticos lusitanos, mas que também não se transforme no vale-tudo dos
locutores esportivos, tão pretensioso, ignorante e cheio de erros, tão
consagrador das manias pessoais que pode acabar levando a uma situação em que
daí a algum tempo ninguém mais se entende. Enfim, os escritores brasileiros do
século XX tiveram que enfrentar o desafio de estabelecer o português do Brasil,
fiel ao espírito do idioma que herdamos, mas atento ao que se diz de verdade
pelo país afora, em casa ou na rua. Um português correto, mas brasileiro. Para
ser um bom escritor, foi sendo necessário ter bom ouvido, ser meio músico. E, além
disso, captar nossas pausas para rir. Coisa superimportante para todos nós.
Tem humorista que acha que é escritor.
Nem sempre dá certo, às vezes fica até meio patético, sem graça e sem garra, dá
pena. Mas talvez ainda seja pior o caso dos escritores metidos a engraçados.
Dão mais pena ainda, constrangem o leitor. Ainda bem que no Brasil esses casos
até que são raros. Temos é uma belíssima tradição de excelentes
humoristas-escritores. Gente que tem um texto límpido, ágil, maravilhosamente
agudo e inteligente. Autores que leem muito, ouvem muita música, veem muita
imagem, se metem no palco, transitam de uma arte para outra. São artistas que
sabem plasmar a linguagem para que ela lhes obedeça, autores que conhecem
profundamente o idioma, que são capazes de relacionar fatos quotidianos com
episódios históricos, carregálos de alusões culturais, revirar sua lógica pelo
avesso. Com isso, mostram seu ridículo, expõem seu absurdo... e arrancam
gargalhadas ou sorrisos à vontade. Nomes como os de Millôr Fernandes, Ivan
Lessa, Stanislaw Ponte Preta, Aldir Blanc. Nessa companhia, Luís Fernando
Verissimo está absolutamente à vontade. É um dos grandes, numa área que, com
toda certeza, e um dos pontos altos e originais da nossa literatura.
A praia do Verissimo é o quotidiano
principalmente na intimidade As conversas entre quatro paredes, as lembranças
solitárias de infâncias e adolescências constantemente passadas a limpo, os
desígnios de Deus (em geral, mascarados sob a forma clássica das velhas
anedotas sobre um grupo de pessoas que morre e se apresenta diante de São
Pedro). Mas o tema não é o mais importante. Sobre qualquer assunto e a qualquer
pretexto, o autor revela suas obsessões, fala das mesmas coisas, preocupa-se
com o social e o ético, despreza solenemente o econômico... e encontra sempre
uma maneira nova de fazer isso, como se nunca o tivesse feito antes. As
situações podem ser quotidianas, mas os ângulos geralmente são insólitos e
inesperados. Ou então, reforçam o já esperado, mas com tão exatas pitadas de
exagero que a caricatura até parece um retrato realista pelo avesso, em que o
lado cômico é revelado em sua verdadeira grandeza e o sentido profundo aparece
com nitidez.
Para conseguir isso, Luís Fernando
Verissimo conta com seu magistral domínio da linguagem e do ritmo da narração.
Tem uma admirável economia no uso das palavras tudo é enxuto, nada sobra. No
país do barroco, é quase minimalista. Seus diálogos dão até a impressão de que
saíram de uma fita gravada. Mas é só a gente lembrar da realidade das
transcrições de conversas gravadas (cada vez mais frequentes nas denúncias de
escândalos pela imprensa), para perceber como essa impressão é falsa. Estamos
exatamente diante daquele processo que Carlos Drummond de Andrade descreveu tão
bem, ao dizer que queria a beleza da simplicidade – mas não a beleza do que nasceu
simples e sim a beleza do que ficou simples. Fruto de atenção impiedosa, muito
trabalho e aguda consciência de como cortar.
Que ninguém se engane. Pode parecer que
Luís Fernando Verissimo é que nem passarinho: abre o bico e sai cantando sem
qualquer esforço, puro dom natural. Mas em arte isso não existe. E estamos
falando de um artista da palavra. Alguém que vê a linguagem como dizia o
crítico Roland Barthes para caracterizar um escritor. Se alguém duvida, vá
direto a uma das crônicas selecionadas, como "Palavreado". Ou
"Defenestração". Mas se não quiser pensar em nada disso, não faz mal.
Relaxe e aproveite. Curta as histórias, as piadas, o jeito de falar. Seja nos
relatos de desencontros que chamamos de Equívocos, nas historinhas com moral
escondida que batizei de Fábulas, nas divagações sobre um tema (Falando Sério),
nas memórias (Outros Tempos), nas brincadeiras com a linguagem ou o estilo.
Sempre uma gostosura. Puro prazer. Um jardim de delícias.
Depois de ler este livro, duvido que
algum jovem ainda seja capaz de dizer, sinceramente, que não curte ler. E, para
não ficar achando que só gosta deste livro, que leia os outros do autor. Aposto
que, em sua maioria, os novos leitores vão se viciar em livro e sair procurando
outros textos, de outros autores. Com vontade de, um dia, chegar a escrever
assim. Quem sabe? O Verissimo nunca pensou que ia ser escritor quando
crescesse. Seu negócio era mesmo um bom solo de saxofone, instrumento em que
ainda arrasa, escondido. Mas com essa história de ser músico, desenvolveu tanto
o ouvido que acabou assim: hoje ele ouve (e conta pra nós) até o que pensamos,
sentimos e sonhamos em silêncio. Em qualquer idade.
Luís Fernando
Veríssimo. Comédias para se ler na escola. PDL – Projeto Democratização da
Leitura. www.portaldetonando.com.br.
Entendendo o conto:
01 – Qual é a principal
questão abordada no conto "Bom de Ouvido"?
A principal
questão abordada no conto é a dificuldade que algumas pessoas têm em se
conectar com a leitura, seja por experiências negativas no passado ou por falta
de incentivo adequado.
02 – Qual é a comparação
utilizada pela autora para ilustrar a relação das pessoas com a leitura?
A autora compara
a relação das pessoas com a leitura com a relação delas com o namoro. Assim
como uma experiência ruim não significa que todos os relacionamentos serão
desastrosos, uma experiência de leitura negativa não significa que todos os
livros serão desinteressantes.
03 – Qual era a profissão da
autora durante 18 anos e como essa experiência contribuiu para sua reflexão
sobre o tema?
Durante 18 anos,
a autora foi dona de uma livraria infantil. Essa experiência a permitiu
observar de perto a relação das crianças e adolescentes com os livros, além de
ouvir as queixas de pais preocupados com a falta de interesse dos filhos pela
leitura.
04 – Qual era o conselho que a
autora dava aos pais de crianças que não gostavam de ler?
O conselho da
autora era para que os pais parassem de pressionar as crianças para ler e, em
vez disso, deixassem livros interessantes ao alcance delas em lugares onde elas
pudessem ler escondido, sem se sentirem obrigadas.
05 – Que tipo de livros a
autora costumava sugerir para crianças que não gostavam de ler?
A autora
costumava sugerir livros como "O Menino Maluquinho" de Ziraldo,
"Marcelo, Marmelo, Martelo" de Ruth Rocha e "O Gênio do
Crime" de João Carlos Marinho.
06 – Qual é a principal
dificuldade enfrentada por adolescentes e jovens na escolha de um livro?
A principal
dificuldade enfrentada por adolescentes e jovens é que eles já são praticamente
adultos e, por isso, não se identificam com histórias infantis. Ao mesmo tempo,
podem ter dificuldades com leituras muito complexas.
07 – O que a autora observa
sobre a produção literária brasileira para jovens e adolescentes?
A autora observa
que muitos livros para jovens e adolescentes caem na "bobajada
divertida" ou são obras do século XIX, o que não atrai os jovens leitores.
08 – Qual é a característica
que a autora destaca nos grandes escritores brasileiros, como Luís Fernando
Verissimo?
A autora destaca
que grandes escritores brasileiros têm um "bom ouvido", ou seja, são
capazes de captar a linguagem falada no dia a dia e transformá-la em uma
linguagem escrita autêntica e envolvente.
09 – Qual é o tema central da
obra de Luís Fernando Verissimo, segundo a autora?
Segundo a autora,
o tema central da obra de Luís Fernando Verissimo é o cotidiano, principalmente
na intimidade, com suas conversas, lembranças e reflexões.
10 – O que a autora espera que
os jovens sintam após ler o livro "Bom de Ouvido"?
A autora espera
que, após ler o livro, os jovens sintam vontade de se conectar com a leitura e
descubram o prazer de ler, não apenas este livro, mas também outros de diferentes
autores.
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