domingo, 9 de fevereiro de 2025

CONTO: AS MÃOS DOS PRETOS - LUÍS BERNARDO HONWANA - COM GABARITO

 Conto: As mãos dos Pretos

            Luís Bernardo Honwana

        Já não sei a que propósito é que isto é vinha, mas o senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas reforçadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.

        Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltei a falar nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles andavam com elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.

        Eu consegui um piadão tal a essa coisa das mãos dos pretos sendo mais claras que agora é ver-me não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não devem ficar senão limpas.

        O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as Coca-Colas das cantinas já foram vendidas, disse que o que me tinha contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele me garantiu que era. Depois de lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicQNcrOehbsfpTE4_xn8YOd2pWgg84_PTEvISnzNtGXniKkiU-0kGR203jFHVju7CouhwRD_CZzQdCWr-5YhyGqz_fO_YRtnK63xXYe6tyV2_7zxRuW5_vFAPnmHCv4SutfXW89ipAS1v8QRPpOa5PAMVTCmhabtS4kPAE3nqxk4bz_cvg9IBP1KdkawE/s1600/SANTO.jpg

        -- Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabe como? Pegaram em barro, enfiaram em moldes usados ​​de cozer o barro das criaturas, levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não havia lugar nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os dezenas escurinhos como carvões. E você agora quer saber porque é que as mãos deles ficam brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!...

        Depois de contar isto, o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.

        Nesse mesmo dia, o Senhor Frias me chamou, depois do Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banhai num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e essa hora a água do lago estava muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.

        Mas eu li num livro, que por acaso sabia disso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco da Virgínia e de mais não sei onde. Já se vê que Dona Estefânia não chegou quando eu disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotaram à força de tão lavadas.

        Bem, eu não sei o que vou pensar disso tudo, mas a verdade é que, ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!

        A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão das mãos dos pretos serem mais claras do que o resto do corpo. No outro dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tive respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e esmo até chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela disse foi mais sou menos isto:

        -- Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver… Depois você se arrependeu de ter feito porque os outros homens se riam deles e levaram-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pôde fazer ficar todos brancos, porque os que já se tinham habituados a ver os pretos reclamavam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabe porque é que foi? Claro que não sabe e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas que se fazem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos.

        Depois de dizer isso tudo, a minha mãe me beijou nas mãos.

        Quando fui para o quintal, para jogar à bola, eu a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.

MEDINA, Cremilda de A. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopeia – Secretaria de Estado da Cultura, 1987, p. 113-115.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 560-561.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a questão central que o narrador busca responder ao longo do conto?

      O narrador busca entender por que as mãos dos pretos são mais claras que o resto do corpo. Ele procura por explicações em diversas fontes, como o professor, o padre, Dona Dores, o Senhor Antunes, o Senhor Frias e sua mãe.

02 – Quais são as diferentes explicações que o narrador encontra para a diferença de cor das mãos dos pretos?

      O narrador encontra diversas explicações, cada uma refletindo diferentes perspectivas e preconceitos:

      Professor: As mãos são mais claras porque os antepassados dos negros andavam com as mãos no chão, protegidas do sol.

      Padre: Os negros são inferiores, mas suas mãos são claras porque eles estão sempre rezando.

      Dona Dores: As mãos são claras para não sujarem a comida dos patrões.

      Senhor Antunes: Deus criou os negros de barro e os pendurou nas chaminés para assar, e suas mãos ficaram brancas por terem se agarrado ali.

      Senhor Frias: Os negros só molharam as mãos e os pés em um lago celestial antes de virem para o mundo.

      Dona Estefânia: As mãos desbotaram de tanto lavar roupa.

03 – Qual é a explicação que o narrador encontra em um livro?

      O narrador lê em um livro que as mãos dos pretos são mais claras porque eles vivem curvados, colhendo algodão.

04 – Qual é a explicação da mãe do narrador para a diferença de cor das mãos dos pretos?

      A mãe do narrador explica que Deus criou os pretos, mas se arrependeu ao ver que os outros homens zombavam deles. Como não podia torná-los brancos, fez com que suas mãos fossem iguais às dos outros homens para mostrar que todos são iguais e que o que os homens fazem é obra de mãos humanas.

05 – Qual é a reação do narrador à explicação de sua mãe?

      O narrador fica confuso e emocionado com a explicação da mãe, a ponto de vê-la chorar. Ele percebe a profundidade da questão e a importância da igualdade entre todos os seres humanos.

06 – Qual é o tom geral do conto?

      O conto tem um tom de humor e ironia, mas também de crítica social. O narrador relata as diferentes explicações que ouve com um certo distanciamento, deixando o leitor perceber a falta de lógica e o preconceito presente em muitas delas.

07 – Qual é a mensagem principal do conto?

      A mensagem principal do conto é a de que a diferença de cor da pele não deve ser motivo de discriminação ou preconceito. Todos os seres humanos são iguais, e suas ações são o que realmente os define. O conto também critica a forma como a sociedade lida com a questão da raça, expondo o racismo e a falta de empatia presentes em diversas situações.

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