Reportagem: Charada no Cafundó
Há cinquenta anos, o menino Otávio
Caetano ouviu sua mãe dizer que um “canduro ongambe” ia passar perto do
lugarejo onde moravam, na zona rural paulista. A reação da criança foi
imediata: correu para se esconder debaixo da cama. Sua atitude seria outra,
certamente, se pudesse imaginar que “um carro de fogo”, conforme as palavras da
mãe, nada mais era que um inofensivo caminhão. Hoje, com 60 anos e morando no
mesmo local, Caetano continua falando aquela língua que aprendeu de seus
ancestrais. Define-se, por exemplo, como um “tata vimbundo”, ou seja, um homem
preto. E consegue se fazer entender pela maioria dos membros de sua comunidade
de quarenta pessoas, habitantes de casebres de pau-a-pique, vizinhos do seu,
quando constrói frases como “copopio bato cameria vavuru” – de acordo com sua
própria tradução, “eu sei conversar em africano”.
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Esse linguajar pode ser ouvido a apenas
140 quilômetros de São Paulo e a 14 município de Salto de Pirapora. Até um mês
atrás, o fato não despertara maior atenção = nem mesmo entre os 7000 habitantes
de Pirapora, que nada enxergavam de peculiar naquela comunidade rural de fala
ininteligível, batizada de Cafundó por ficar fora da zona urbana, em local de
acesso um tanto difícil. No mês passado, entretanto, um novo funcionário da
Prefeitura de Pirapora publicou um artigo sobre o assunto no diário sorocabano
Cruzeiro do Sul. Nas últimas semanas, atraídos por este relato, antropólogos e
linguistas começaram de repente a animar a vida de Cafundó. Do ponto de vista
científico, realmente, Cafundó pode ser encarado como um fenômeno de rara
importância.
Os cafundoenses garantem que sua língua
se originou na África e lhes foi transmitida por seus ascendentes escravos –
explicação a que também se inclinam os pesquisadores que os visitaram. “Para se
ter uma ideia do valor desse achado”, opina o linguista Maurízio Gnerre, da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), “basta lembrar que a última vez
que algo semelhante aconteceu foi há setenta anos, quando se descobriu em Minas
Gerais uma comunidade em condições parecidas". Com dois outros cientistas
da Unicamp – o linguista Carlos Vogt e o antropólogo Peter Fry –, Gnerre deu
início a uma pesquisa da fala de Cafundó. Pelo que já pode constatar, ela
deriva da língua dos povos bantos, falada, por exemplo, no Congo e em Angola.
Algumas palavras portuguesas, como não
podia deixar de ser, se misturaram aqui e ali à língua. Em todo caso, o
linguajar vocábulos ou frases esparsas. "O léxico deles é tão rico”,
garante Gnerre, “que, se um habitante de Cafundó fosse colocado hoje numa
região africana onde só se fale a língua nativa dos bantos, não tenho a menor
dúvida de que ele se faria entender”. Nesse encontro hipotético, o brasileiro
poderia se sair com frases como “tata iovacu
anjara vatema varuru massango cu xipoque”, isto é, “estou com vontade de
comer arroz com feijão”. Ou então: “ovava cuendá vavuru” – “vai chover”.
Nem todos de Cafundó dominam tais
construções. As crianças compreendem, mas falam com alguma dificuldade. Há,
inclusive, os que não entendem coisa alguma, como o pernambucano Virgílio Pedro
da Silva, 41 anos, branco, que há meses ocupa, com a mulher e dez filhos, dois
cômodos do casebre de Otávio Caetano, na condição de agregado. Uma espécie de
líder em Cafundó, Caetano parece apreciar o fato de dispor de uma segunda
língua, ao lado do português e inacessível a estranhos. “É o nosso latim”,
explica sorridente. E aponta com orgulho para o sobrinho Benedito Norberto, de
43 anos, que já trabalhou num armazém de São Paulo como carregador de sacos.
“Ele tem pouca instrução mas fala bem”, diz Caetano, para em seguida verter a
frase: “mucanda, nani copopia vavuru”.
De todo modo, o meio de comunicação
dominante termina sendo o português, não apenas pelos contatos obrigatórios com
a população de Salto de Pirapora, mas também pela penetração do rádio e da
televisão – os aparelhos de rádio, presentes na maioria dos casebres até hoje
sem água encanada e luz elétrica; e os programas de televisão assistidos nos
bares da cidade. Por essa via, interesses de todo tipo acabam penetrando na
vida dos cafundoenses. “Corinthians vavuru no palulé”, comenta, por exemplo,
diante do repórter Paulo Azevedo, o jovem torcedor José Orlando, 13 e para quem
seu time “é muito bom de bola”. Maria Aparecida, 27 anos, admite ter
preferências de outra ordem: “Tarcísio Meira do vissuá vavuru, do casmere
vavuru, do flora cafombe, cachitende nani”. Ela explica que seu ídolo “tem
olhos bonitos, boca bonita, dentes brancos e não tem mau hálito”. A má
dentição, aliás, é um problema generalizado entre os habitantes de Cafundó.
Mas, afinal, como essa comunidade se
estabeleceu nos 28 alqueires nos quais se espalham hoje suas casas, distantes
algumas centenas de metros umas das outras? Histórias contadas pelos moradores
de Cafundó falam de uma doação de terras a escravos alforriados por um velho
senhor benevolente, algumas vezes lembrado como “sinhô Leme” e outras como
“sinhô Almeida”. Essa versão não
convence plenamente a professora Suely Reis de Queirós, do Departamento de
História da Universidade de São Paulo. De acordo com Suely, não era nada comum
um senhor dar terra a escravos.
Um quilombo, talvez? Também improvável,
na opinião da historiadora. “Aqui em São Paulo a repressão aos quilombos era
tão violenta que eles nunca conseguiam se instalar por muito tempo num lugar”.
E como se terá mantido a língua em meio à inevitável influencia dos vizinhos?
Afinal, não se tem notícia de nenhuma outra comunidade de língua africana no
Brasil de hoje. Decifrar satisfatoriamente a gênese de Cafundó apresenta-se
assim como tarefa complexa – o que, naturalmente, só serve para aumentar o
interesse dos pesquisadores.
Veja, 26/4/78, p. 71.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 214-216.
Entendendo a reportagem:
01 – Qual é a língua falada na
comunidade de Cafundó e qual a sua origem?
Em Cafundó,
fala-se uma língua de origem africana, provavelmente derivada dos povos bantos,
com algumas palavras em português misturadas. Os moradores acreditam que a
língua foi transmitida a eles por seus ancestrais escravos.
02 – Onde fica localizada a
comunidade de Cafundó e qual a sua peculiaridade?
Cafundó está
localizada a apenas 140 quilômetros de São Paulo e a 14 quilômetros do
município de Salto de Pirapora. A peculiaridade da comunidade é a sua língua,
ininteligível para quem não a conhece, o que a torna um fenômeno de rara
importância para pesquisadores.
03 – O que despertou o
interesse de antropólogos e linguistas por Cafundó?
O interesse de
antropólogos e linguistas por Cafundó foi despertado por um artigo publicado no
diário sorocabano Cruzeiro do Sul por um novo funcionário da Prefeitura de
Pirapora. O artigo revelou a existência da comunidade e sua língua peculiar.
04 – Qual a importância de
Cafundó do ponto de vista científico?
Do ponto de vista científico, Cafundó é um fenômeno de rara
importância. A descoberta de uma comunidade com uma língua de origem africana,
falada por seus descendentes de escravos, é um evento raro que pode fornecer
informações valiosas sobre a história da linguagem e da cultura
afro-brasileira.
05 – O que dizem os
pesquisadores sobre a língua de Cafundó?
Os pesquisadores
que visitaram Cafundó, como o linguista Maurizio Gnerre, da Unicamp, confirmam
que a língua falada na comunidade deriva da língua dos povos bantos, falada em
países como Congo e Angola. Gnerre afirma que o léxico da língua é tão rico que
um habitante de Cafundó seria capaz de se fazer entender em uma região africana
onde se fale a língua nativa dos bantos.
06 – Como a língua de Cafundó
é utilizada na comunidade?
A língua de
Cafundó é utilizada principalmente pelos membros mais velhos da comunidade. As
crianças compreendem a língua, mas têm dificuldade em falá-la. Alguns
moradores, como o pernambucano Virgílio Pedro da Silva, não entendem a língua.
Apesar disso, o líder da comunidade, Otávio Caetano, valoriza a língua como um
"latim" próprio, inacessível a estranhos.
07 – Qual o meio de
comunicação dominante em Cafundó?
O meio de
comunicação dominante em Cafundó é o português, devido aos contatos com a
população de Salto de Pirapora e à penetração do rádio e da televisão na
comunidade.
08 – Como a comunidade de
Cafundó se estabeleceu no local onde vive hoje?
As histórias contadas pelos moradores de
Cafundó falam de uma doação de terras a escravos alforriados por um senhor
benevolente. No entanto, essa versão não convence plenamente a professora Suely
Reis de Queirós, do Departamento de História da Universidade de São Paulo, que
questiona a probabilidade de um senhor dar terras a escravos.
09 – Qual a hipótese levantada
por Suely Reis de Queirós para explicar a origem de Cafundó?
Suely Reis de Queirós levanta a hipótese
de que Cafundó possa ter sido um quilombo, mas também considera essa hipótese
improvável, devido à violenta repressão aos quilombos em São Paulo.
10 – Qual o principal desafio
dos pesquisadores em relação a Cafundó?
O principal desafio dos pesquisadores é
decifrar satisfatoriamente a gênese de Cafundó, ou seja, entender como a
comunidade se formou, como a língua africana foi preservada ao longo do tempo e
como a comunidade resistiu à influência dos vizinhos.
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