quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

REPORTAGEM: CHARADA NO CAFUNDÓ - VEJA - COM GABARITO

 Reportagem: Charada no Cafundó

        Há cinquenta anos, o menino Otávio Caetano ouviu sua mãe dizer que um “canduro ongambe” ia passar perto do lugarejo onde moravam, na zona rural paulista. A reação da criança foi imediata: correu para se esconder debaixo da cama. Sua atitude seria outra, certamente, se pudesse imaginar que “um carro de fogo”, conforme as palavras da mãe, nada mais era que um inofensivo caminhão. Hoje, com 60 anos e morando no mesmo local, Caetano continua falando aquela língua que aprendeu de seus ancestrais. Define-se, por exemplo, como um “tata vimbundo”, ou seja, um homem preto. E consegue se fazer entender pela maioria dos membros de sua comunidade de quarenta pessoas, habitantes de casebres de pau-a-pique, vizinhos do seu, quando constrói frases como “copopio bato cameria vavuru” – de acordo com sua própria tradução, “eu sei conversar em africano”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJrS6zGz6ePG2szfllFF-vlVhu3KI5hS1cA_PX5M4XPS3liGtdAVI4NCW1pOWqTnuZcmPZrVLz_FEuQgLP_Ba-0OQEIYzfJH4LujtJMWZCjMGS8LgmNGp9P6PK5bsOrJ2rsWlmMZnBq_UrSJGhleObjs05ctu_Yg7d3Jla-XPGouuKfI2x7qFnTVKpjHk/s320/CAFUNDO.jpg


        Esse linguajar pode ser ouvido a apenas 140 quilômetros de São Paulo e a 14 município de Salto de Pirapora. Até um mês atrás, o fato não despertara maior atenção = nem mesmo entre os 7000 habitantes de Pirapora, que nada enxergavam de peculiar naquela comunidade rural de fala ininteligível, batizada de Cafundó por ficar fora da zona urbana, em local de acesso um tanto difícil. No mês passado, entretanto, um novo funcionário da Prefeitura de Pirapora publicou um artigo sobre o assunto no diário sorocabano Cruzeiro do Sul. Nas últimas semanas, atraídos por este relato, antropólogos e linguistas começaram de repente a animar a vida de Cafundó. Do ponto de vista científico, realmente, Cafundó pode ser encarado como um fenômeno de rara importância.

        Os cafundoenses garantem que sua língua se originou na África e lhes foi transmitida por seus ascendentes escravos – explicação a que também se inclinam os pesquisadores que os visitaram. “Para se ter uma ideia do valor desse achado”, opina o linguista Maurízio Gnerre, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), “basta lembrar que a última vez que algo semelhante aconteceu foi há setenta anos, quando se descobriu em Minas Gerais uma comunidade em condições parecidas". Com dois outros cientistas da Unicamp – o linguista Carlos Vogt e o antropólogo Peter Fry –, Gnerre deu início a uma pesquisa da fala de Cafundó. Pelo que já pode constatar, ela deriva da língua dos povos bantos, falada, por exemplo, no Congo e em Angola.

        Algumas palavras portuguesas, como não podia deixar de ser, se misturaram aqui e ali à língua. Em todo caso, o linguajar vocábulos ou frases esparsas. "O léxico deles é tão rico”, garante Gnerre, “que, se um habitante de Cafundó fosse colocado hoje numa região africana onde só se fale a língua nativa dos bantos, não tenho a menor dúvida de que ele se faria entender”. Nesse encontro hipotético, o brasileiro poderia se sair com frases como “tata iovacu  anjara vatema varuru massango cu xipoque”, isto é, “estou com vontade de comer arroz com feijão”. Ou então: “ovava cuendá vavuru” – “vai chover”.

        Nem todos de Cafundó dominam tais construções. As crianças compreendem, mas falam com alguma dificuldade. Há, inclusive, os que não entendem coisa alguma, como o pernambucano Virgílio Pedro da Silva, 41 anos, branco, que há meses ocupa, com a mulher e dez filhos, dois cômodos do casebre de Otávio Caetano, na condição de agregado. Uma espécie de líder em Cafundó, Caetano parece apreciar o fato de dispor de uma segunda língua, ao lado do português e inacessível a estranhos. “É o nosso latim”, explica sorridente. E aponta com orgulho para o sobrinho Benedito Norberto, de 43 anos, que já trabalhou num armazém de São Paulo como carregador de sacos. “Ele tem pouca instrução mas fala bem”, diz Caetano, para em seguida verter a frase: “mucanda, nani copopia vavuru”.

        De todo modo, o meio de comunicação dominante termina sendo o português, não apenas pelos contatos obrigatórios com a população de Salto de Pirapora, mas também pela penetração do rádio e da televisão – os aparelhos de rádio, presentes na maioria dos casebres até hoje sem água encanada e luz elétrica; e os programas de televisão assistidos nos bares da cidade. Por essa via, interesses de todo tipo acabam penetrando na vida dos cafundoenses. “Corinthians vavuru no palulé”, comenta, por exemplo, diante do repórter Paulo Azevedo, o jovem torcedor José Orlando, 13 e para quem seu time “é muito bom de bola”. Maria Aparecida, 27 anos, admite ter preferências de outra ordem: “Tarcísio Meira do vissuá vavuru, do casmere vavuru, do flora cafombe, cachitende nani”. Ela explica que seu ídolo “tem olhos bonitos, boca bonita, dentes brancos e não tem mau hálito”. A má dentição, aliás, é um problema generalizado entre os habitantes de Cafundó.

        Mas, afinal, como essa comunidade se estabeleceu nos 28 alqueires nos quais se espalham hoje suas casas, distantes algumas centenas de metros umas das outras? Histórias contadas pelos moradores de Cafundó falam de uma doação de terras a escravos alforriados por um velho senhor benevolente, algumas vezes lembrado como “sinhô Leme” e outras como “sinhô Almeida”. Essa  versão não convence plenamente a professora Suely Reis de Queirós, do Departamento de História da Universidade de São Paulo. De acordo com Suely, não era nada comum um senhor dar terra a escravos.

        Um quilombo, talvez? Também improvável, na opinião da historiadora. “Aqui em São Paulo a repressão aos quilombos era tão violenta que eles nunca conseguiam se instalar por muito tempo num lugar”. E como se terá mantido a língua em meio à inevitável influencia dos vizinhos? Afinal, não se tem notícia de nenhuma outra comunidade de língua africana no Brasil de hoje. Decifrar satisfatoriamente a gênese de Cafundó apresenta-se assim como tarefa complexa – o que, naturalmente, só serve para aumentar o interesse dos pesquisadores.

Veja, 26/4/78, p. 71.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 214-216.

Entendendo a reportagem:

01 – Qual é a língua falada na comunidade de Cafundó e qual a sua origem?

      Em Cafundó, fala-se uma língua de origem africana, provavelmente derivada dos povos bantos, com algumas palavras em português misturadas. Os moradores acreditam que a língua foi transmitida a eles por seus ancestrais escravos.

02 – Onde fica localizada a comunidade de Cafundó e qual a sua peculiaridade?

      Cafundó está localizada a apenas 140 quilômetros de São Paulo e a 14 quilômetros do município de Salto de Pirapora. A peculiaridade da comunidade é a sua língua, ininteligível para quem não a conhece, o que a torna um fenômeno de rara importância para pesquisadores.

03 – O que despertou o interesse de antropólogos e linguistas por Cafundó?

      O interesse de antropólogos e linguistas por Cafundó foi despertado por um artigo publicado no diário sorocabano Cruzeiro do Sul por um novo funcionário da Prefeitura de Pirapora. O artigo revelou a existência da comunidade e sua língua peculiar.

04 – Qual a importância de Cafundó do ponto de vista científico?

      Do ponto de vista científico, Cafundó é um fenômeno de rara importância. A descoberta de uma comunidade com uma língua de origem africana, falada por seus descendentes de escravos, é um evento raro que pode fornecer informações valiosas sobre a história da linguagem e da cultura afro-brasileira.

05 – O que dizem os pesquisadores sobre a língua de Cafundó?

      Os pesquisadores que visitaram Cafundó, como o linguista Maurizio Gnerre, da Unicamp, confirmam que a língua falada na comunidade deriva da língua dos povos bantos, falada em países como Congo e Angola. Gnerre afirma que o léxico da língua é tão rico que um habitante de Cafundó seria capaz de se fazer entender em uma região africana onde se fale a língua nativa dos bantos.

06 – Como a língua de Cafundó é utilizada na comunidade?

      A língua de Cafundó é utilizada principalmente pelos membros mais velhos da comunidade. As crianças compreendem a língua, mas têm dificuldade em falá-la. Alguns moradores, como o pernambucano Virgílio Pedro da Silva, não entendem a língua. Apesar disso, o líder da comunidade, Otávio Caetano, valoriza a língua como um "latim" próprio, inacessível a estranhos.

07 – Qual o meio de comunicação dominante em Cafundó?

      O meio de comunicação dominante em Cafundó é o português, devido aos contatos com a população de Salto de Pirapora e à penetração do rádio e da televisão na comunidade.

08 – Como a comunidade de Cafundó se estabeleceu no local onde vive hoje?

      As histórias contadas pelos moradores de Cafundó falam de uma doação de terras a escravos alforriados por um senhor benevolente. No entanto, essa versão não convence plenamente a professora Suely Reis de Queirós, do Departamento de História da Universidade de São Paulo, que questiona a probabilidade de um senhor dar terras a escravos.

09 – Qual a hipótese levantada por Suely Reis de Queirós para explicar a origem de Cafundó?

      Suely Reis de Queirós levanta a hipótese de que Cafundó possa ter sido um quilombo, mas também considera essa hipótese improvável, devido à violenta repressão aos quilombos em São Paulo.

10 – Qual o principal desafio dos pesquisadores em relação a Cafundó?

      O principal desafio dos pesquisadores é decifrar satisfatoriamente a gênese de Cafundó, ou seja, entender como a comunidade se formou, como a língua africana foi preservada ao longo do tempo e como a comunidade resistiu à influência dos vizinhos.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário