domingo, 16 de fevereiro de 2025

ROMANCE: O CORTIÇO, CAP. III - (FRAGMENTO) - ALUÍSIO AZEVEDO - COM GABARITO

 Romance: O cortiço, cap. III – Fragmento

                 Aluísio Azevedo

        Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

        Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpmMydBYgPTlsIGHCFhIhoDgY0UR_4FLAs6htR9Gxpsg5PnhojdFffpg8DyFootAPVNEicrjRytUOWefhMsD7kJDgrvVFQ_QWCKhPRMB28LCNx8P7Uu5PGA5V51HMn1JkdC9w-Js0aTLVqZU6ZtBgT-HQHGKU0uDSw22trkCfqLuvoa8H67W48Ea4tcmA/s1600/CORTI%C3%87O.jpg


        A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

        Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.

        Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.

        O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

        [...]

9. ed. São Paulo: Ática, 1970. p. 28-29.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 255.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

     - De uma assentada: de uma só vez.

     - Altercar: discutir com ardor.

     - Latrina: recinto da casa com vaso sanitário ou escavação para receber dejetos.

     - Indolência: preguiça.

     - Coradouro: o mesmo que quaradouro; lugar onde se põe a roupa para corar ou quarar.

     - Ensarilhar: emaranhar. Enredar.

     - Rezinga: discussão, rixa.

     - Fartum: mau cheiro.

02 – Qual é o principal foco do fragmento do Capítulo III de "O Cortiço"?

      O foco principal do fragmento é a descrição do despertar do cortiço e da vida de seus moradores. Aluísio Azevedo retrata o cotidiano do local, desde o momento em que os primeiros raios de sol surgem até o início das atividades diárias. O cortiço é apresentado como um organismo vivo, com suas próprias características e ritmos.

03 – Que elementos sensoriais são destacados na descrição do cortiço?

      O autor explora diversos elementos sensoriais para descrever o ambiente do cortiço. São mencionados os cheiros de café, sabão e umidade, os sons de vozes, risos, cantos de animais e o tilintar de xícaras. A descrição também inclui detalhes visuais, como a roupa lavada nos coradouros, as pedras do chão e a nudez dos corpos.

04 – Como Aluísio Azevedo caracteriza os moradores do cortiço?

      Os moradores do cortiço são apresentados como pessoas simples e trabalhadoras, que compartilham um espaço comum e uma rotina coletiva. Há uma diversidade de tipos humanos, desde os mais jovens até os mais velhos, e cada um contribui para a atmosfera vibrante e dinâmica do local.

05 – Qual é a importância da água na descrição do cortiço?

      A água é um elemento central na descrição do cortiço, presente na roupa lavada, nas bicas onde os moradores se lavam e no chão que se inunda. A água simboliza a vida que pulsa no cortiço, a energia e a força da natureza que se manifestam naquele ambiente.

06 – Como o autor descreve o crescimento do "rumor" no cortiço?

      O autor descreve o crescimento do "rumor" no cortiço como um processo gradual e contínuo. No início, são apenas vozes isoladas, risos e cantos de animais. Com o passar do tempo, esses sons se intensificam e se misturam, formando um ruído compacto que envolve todo o cortiço.

07 – Qual é o significado da expressão "gula viçosa de plantas rasteiras" no contexto do fragmento?

      A expressão "gula viçosa de plantas rasteiras" é utilizada para descrever a energia e a vitalidade dos moradores do cortiço. As plantas rasteiras, que se alimentam da "lama preta e nutriente da vida", simbolizam a força e a persistência do povo, que busca sobreviver e prosperar em meio às dificuldades.

08 – Que aspectos da sociedade brasileira são retratados no fragmento de "O Cortiço"?

      O fragmento de "O Cortiço" retrata diversos aspectos da sociedade brasileira do século XIX, como a pobreza, a desigualdade social, a vida em comunidade e a influência da natureza. O cortiço, com sua diversidade de personagens e costumes, representa um microcosmo da sociedade, onde se manifestam as contradições e os desafios da época.

 

 

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