Artigo de opinião: A falta que uma praça faz
PETER BURKE – ESPECIAL PARA A FOLHA
Acabei de voltar de uma visita a Roma,
impressionado (como sempre) não só com as igrejas e palácios magníficos, mas
também com as praças públicas. Algumas delas são esplêndidas e famosas, como a
Piazza San Pietro, a Piazza Navona e a Piazza del Popolo; outras, menos
conhecidas, são igualmente encantadoras, como a Piazza Pasquino, a Piazza
Farnese ou a Piazza Santa Maria in Trastevere. Entretanto todas elas dão a
impressão de terem sido desenhadas – e sabemos que boa dose de planejamento
meticuloso precedeu sua construção ou reconstrução (como no caso da Piazza San
Marco, na Veneza do século XVI). As praças barrocas em especial – notadamente a
Piazza San Pietro de Bernini- testemunham uma concepção dramática: entrada em
cena, peripécia e clímax, para não falar do "cenário" urbano de
estátuas e obeliscos.
Praças assim desempenhavam várias
funções. Eram ponto de encontro, espaço para estátuas e espetáculos, rota de
procissões, lugar onde assistir a execuções, ouvir sermões, canções e
discursos, admirar os edifícios da cidade. Eram parte importante do que
Habermas chama de "esfera pública", uma esfera que já existia nas
cidades-repúblicas da Itália renascentista. Em Florença, a Piazza della
Signoria era vital para o funcionamento do sistema político, enquanto a Piazza
Santa Croce era palco de partidas rituais de futebol durante o Carnaval. Em
Veneza, a Piazza San Marco era igualmente central por ocasião do Carnaval:
funcionava como um teatro ao ar livre, onde as multidões podiam assistir a
acrobatas, comediantes e "execuções" de touros e porcos. Em Roma, a
Piazza San Pietro funcionava como verdadeiro container de multidões, lugar de
conclave para os fiéis que aguardavam a benção papal a cada Páscoa. Em
italiano, expressões como "mettere una cosa in piazza" (pôr algo em
discussão), "fare ou sfidare la piazza" (desafiar a opinião pública)
dão prova, ainda hoje, da importância de tais espaços para a vida social
cotidiana.
Uma cadeira num café da Piazza del
Popolo ou da Piazza Navona é um lugar ideal para se especular sobre a história,
a geografia e a sociologia das praças públicas. Por que a praça tem lugar tão
importante na vida social e arquitetônica da Itália e, em geral, da Europa
mediterrânea? Por que tem menos importância alhures?
A questão pode soar estranha, ainda
mais na boca de um inglês; também Londres é cheia de praças: Trafalgar Square,
Leicester Square, Russell Square, Berkeley Square e assim por diante. Mas a
"Square" londrina é um espaço completamente diverso da
"piazza" italiana. Exceção feita a Trafalgar Square, projetada no
século 19 para servir de moldura à Coluna de Nelson, as praças londrinas são
ilhas verdes cercadas de residências particulares. O gramado é muitas vezes
cercado de grades, de modo a torná-lo privilégio dos moradores locais, que
detêm as chaves dos portões.
A praça londrina não é uma instituição
pública, como é o caso na Itália. Não é um lugar em que se pode passear, tomar
café, encontrar amigos ou apresentar-se ao público ("fare bella
figura" e coisas assim). A chuva e o vento tornam tudo isso virtualmente
impossível – com alguma ajuda do amor inglês à privacidade, tão diferente da
concepção italiana da vida como teatro. V.S. Naipaul, autor indiano de
Trinidad, escreve vívida e nostalgicamente a respeito:
"É uma questão de clima. Num país
quente, a vida é levada fora de casa. Janelas e portas ficam abertas. Você sabe
o que o seu vizinho anda fazendo, e vice-versa. O visitante não encontra
dificuldade em conhecer o país; ele está sempre a encontrar as pessoas fora de
situações profissionais ou oficiais. Na Inglaterra, tudo acontece atrás de
portas fechadas". Quer expliquemos a diferença em termos de clima ou de
cultura, o contraste entre a Inglaterra e a Itália é por si só evidente.
Seja como for, há períodos e regiões do
mundo em que as praças são raridade. As cidades da Europa medieval, até mesmo
no mundo mediterrâneo, não conheciam algo de equivalente à ágora ateniense ou
ao fórum romano. Havia mercados ao ar livre, de formato irregular e com pouco
espaço livre – mesmo quando em frente da catedral. Só com o Renascimento (no
caso da Itália) ou com o século XVII (no caso de Paris e Londres) surgem esses
oásis em meio ao deserto urbano.
Antes do século XIX, as cidades do
mundo islâmico em geral não tinham praças, ainda que pudessem usufruir de um
"majdan", um grande espaço livre à beira da cidade. As grandes
cidades da China e do Japão antigos também não tinham praças públicas. A
célebre T'ien-An-Men de Pequim é uma criação recente: o espaço em frente ao
Portão da Paz Celestial foi aberto para a passagem de desfiles, antes de ser
tomado por estudantes que se manifestavam contra o governo.
No Novo Mundo, há um contraste óbvio
entre as áreas ocupadas por colonos espanhóis e ingleses. As cidades da América
hispânica convergem para a Plaza de Armas, enquanto o espaço das cidades
norte-americanas organiza-se de modo diferente. Em Nova York, por exemplo,
lugares como Washington Square ou Madison Square são menos importantes para a
vida social do que, por exemplo, a Quinta avenida ou o Central Park.
Como São Paulo se encaixa nesse esquema
geral? Quando visitei a cidade pela primeira vez – e conhecendo as tradições
urbanas da Itália e de Portugal –, surpreendeu-me a virtual ausência de praças
públicas e o descaso com as poucas existentes. Tal como a Quinta avenida, a
avenida Paulista parece incumbir-se de algumas das funções da praça
mediterrânea. Ainda assim, o resultado não é o mesmo – nem para mim, nem (suspeito
eu) para os paulistanos. As mesas de café nas calçadas, que parecem estar se
multiplicando, são uma boa ideia, mas seria melhor ainda poder desfrutar da
comida, da bebida e da conversa a uma distância um pouquinho maior do barulho e
dos gases do trânsito.
Para um estrangeiro foi interessante
ver o grande papel que uma pracinha (irrealmente livre de carros) teve na
recente novela "A Próxima Vítima", na qual simbolizava a vida de uma
comunidade em que todos conhecem todos (ideia certamente tão anacrônica nos
anos 90 quanto o português italianizado de alguns personagens). Fiquei
fascinado ao ler num jornal que a praça fora construída nos estúdios da TV
segundo o modelo de uma praça napolitana. Em outras palavras, parece que não
sou o único a sonhar com uma piazza para São Paulo. Quem fará do sonho
realidade?
BURKE, Peter. A falta que uma praça faz. Folha São Paulo, São Paulo, 27
abr. 1997. Caderno Mais! p. 3.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 372-373.
Entendendo o artigo:
01 – Qual a principal
impressão que Peter Burke teve de Roma?
Peter Burke ficou
impressionado com as igrejas, palácios e, principalmente, com as praças
públicas de Roma. Ele destaca tanto as praças mais famosas quanto as menos
conhecidas, ressaltando a beleza e a importância delas para a vida na cidade.
02 – O que diferencia as
"squares" londrinas das "piazzas" italianas?
A principal
diferença está na função e no acesso. As "squares" londrinas são
espaços verdes privados, cercados por grades e acessíveis apenas aos moradores
locais. Já as "piazzas" italianas são espaços públicos, abertos a
todos, com diversas funções sociais e culturais.
03 – Qual a relação entre o
clima e a importância das praças, segundo o autor?
O autor sugere
que o clima influencia na importância das praças. Em países mais quentes, como
a Itália, a vida social se desenvolve mais ao ar livre, o que valoriza os
espaços públicos como as praças. Em países mais frios, como a Inglaterra, a
vida social tende a se concentrar em espaços fechados.
04 – O que são os
"majdans" e qual a sua relação com as praças?
Os "majdans" são grandes espaços livres encontrados
em cidades do mundo islâmico, que podem ser comparados às praças em alguns
aspectos. No entanto, eles geralmente se localizam à beira da cidade e não
possuem a mesma centralidade e importância social das praças europeias.
05 – Como as cidades da
América hispânica se organizam em relação às praças?
As cidades da
América hispânica são planejadas com a Plaza de Armas como ponto central, onde
se concentram os principais edifícios e atividades da cidade. Essa organização
reflete a influência da cultura espanhola, que valoriza os espaços públicos
como locais de encontro e convívio social.
06 – Qual a impressão de Peter
Burke sobre São Paulo em relação às praças?
Peter Burke se
surpreendeu com a falta de praças públicas em São Paulo e com o descaso com as
poucas existentes. Ele compara a avenida Paulista a uma praça mediterrânea, mas
observa que ela não cumpre as mesmas funções sociais e culturais.
07 – O que o autor destaca
sobre a novela "A Próxima Vítima"?
O autor menciona
a novela "A Próxima Vítima" como um exemplo de como as praças são
importantes para a vida em comunidade, mesmo que de forma idealizada. Ele
destaca que a praça da novela foi construída em estúdio, o que reforça a
carência de espaços públicos adequados em São Paulo.
08 – Por que o autor sonha com
uma "piazza" para São Paulo?
O autor sonha com
uma "piazza" para São Paulo porque ele acredita que a cidade carece
de espaços públicos de qualidade, onde as pessoas possam se encontrar, conviver
e desfrutar do espaço urbano. Ele vê a "piazza" como um lugar que
promove a vida social e cultural da cidade.
09 – O que significa a
expressão "mettere una cosa in piazza" em italiano?
A expressão
"mettere una cosa in piazza" significa "pôr algo em
discussão", o que demonstra a importância das praças como espaços de
debate e opinião pública na cultura italiana.
10 – Quem o autor convida a
realizar o sonho de uma "piazza" para São Paulo?
O autor faz um apelo para que alguém realize o sonho de
construir uma "piazza" para São Paulo, deixando em aberto quem seria
o responsável por transformar esse desejo em realidade.
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