Conto: Perto do coração selvagem – O banho – Fragmento
Clarice Lispector
[...]
O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a
quem deles ela diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça?
Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a nenhum poderei perguntar: diga-me,
como são as coisas? e ouvir: também não sei, como o professor respondera. O
professor ressurgiu à sua frente como no último instante, inclinado para ela,
assustado ou feroz, não o sabia, mas recuando, isso, recuando. A resposta,
sentiu, não importava tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia
existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se chegasse a entender,
certamente diria: são assim, assim e assim. Com quem Joana falaria agora das
coisas que existem com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão
apenas?
Coisas que existem, outras que apenas
estão... Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora
em diante como flores sobre o túmulo. Que viveria, que viveria, outros
pensamentos nasceriam e viveriam e ela própria estava mais viva. A alegria
cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os
dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e
glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo
mudava lentamente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a
lâmpada e resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no seu
interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas tornavam-se cada vez
mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma. A doçura da infância
desaparecia nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o exterior e o
que ela oferecia aos passos dos estranhos era areia incolor e seca. Mas ela
caminhava para frente, sempre para a frente como se anda na praia, o vento
alisando o rosto, levando para trás os cabelos.
Como entregar-lhes: é a segunda
vertigem num só dia? mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque
ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de lhe dizer, como o
professor: vive-se e morre-se. Todos esqueciam, todos só sabiam brincar.
Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha
casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de
xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os
destruiria. Sim, gostavam-se de um modo longínquo e velho. De quando em quando,
ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares inquietos, como para se
assegurarem de que continuavam a existir. Depois retomavam a morna distância
que diminuía por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário. Dormiam
juntos certamente pensou Joana sem prazer na malícia.
A tia estendeu-lhe o prato de pão em
silêncio. O tio não levantava os olhos do prato.
A comida era uma das grandes preocupações
da casa, continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente
sobre a mesa, o homem se alimentava arfando ligeiramente, porque sofria do
coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar
se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações interiores
que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob a cadeira, e, as
sobrancelhas franzidas, comia com uma curiosidade que se renovava a cada
garfada, o rosto rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se abandonavam nas
cadeiras? Por que cuidavam de não chocar os talheres, como se alguém estivesse
morto ou dormindo? Sou eu, adivinhou Joana.
Ao redor da mesa escura, sob a luz
enfraquecida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa
noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das duas bocas mastigando e
o tic-tac leve e nervoso do relógio. Então a mulher erguia os olhos e
imobilizada com o garfo na mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a
vista, vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que inexplicavelmente
vinha misturada a um aperto doloroso na garganta, a uma impossibilidade de
soluçar.
— Armanda não veio? — a voz de Joana
apressou o tic-tac do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na mesa.
Os tios se entreolharam furtivamente.
Joana respirou alto: tinha medo dela, pois?
— O marido de Armanda hoje não está de
plantão, por isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de
repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais depressa. O silêncio
voltou sem dissolver o murmúrio longínquo do mar. Eles não tinham coragem,
então.
— Quando é que eu vou para o internato?
— perguntou Joana.
A terrina de sopa escorregou das mãos
da tia, o caldo escuro e cínico espalhou-se rapidamente pela mesa. O tio
abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.
— Como sabe que..., balbuciou
confuso...
Ela escutara à porta...
A toalha embebida fumegava docemente
como restos de um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo
irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava rapidamente.
[...]
LISPECTOR, Clarice.
Perto do coração selvagem, 15. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p.
73-76.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 494-495.
Entendendo o conto:
01
– Qual é a principal preocupação de Joana no trecho?
Joana está
preocupada com a sua transição da infância para a adolescência e com a sua
crescente dificuldade de se comunicar com os outros, especialmente com seus
tios. Ela sente que ninguém a entende e que suas perguntas existenciais não
encontram respostas.
02
– O que representa a figura do professor para Joana?
O professor
representa um momento de validação para Joana. Ele a encoraja a questionar e a
buscar suas próprias respostas, mesmo que ele mesmo não as tenha. A resposta em
si não é tão importante, mas sim a possibilidade de fazer a pergunta.
03
– Como Joana se sente em relação aos seus tios?
Joana se sente
distante e incompreendida por seus tios. Ela os vê como pessoas que se
contentam com brinquedos superficiais (casa, casamento, trabalho) e que evitam
confrontar as questões mais profundas da vida. Joana sente que eles não têm
coragem de encarar a realidade da vida e da morte.
04
– Qual é o significado da sopa derramada na mesa?
A sopa derramada
simboliza a tensão e o desconforto na relação entre Joana e seus tios. É um
momento de quebra da formalidade e de revelação de sentimentos reprimidos. A
reação dos tios à sopa derramada mostra a fragilidade e a superficialidade de
suas relações.
05
– Por que Joana tem medo de Armanda?
O conto não
explica explicitamente por que Joana tem medo de Armanda. No entanto, podemos
inferir que Armanda representa um mundo adulto que Joana teme e do qual se
sente excluída. A reação dos tios ao medo de Joana revela a fragilidade e a
falta de comunicação na família.
06
– O que significa a pergunta de Joana sobre o internato?
A pergunta de
Joana sobre o internato revela sua intuição de que algo está para mudar em sua
vida. Ela sente que está se distanciando de seus tios e que seu futuro pode
estar em outro lugar. A reação dos tios à pergunta de Joana confirma suas
suspeitas e intensifica a tensão na mesa.
07
– Qual é a importância do silêncio no conto?
O silêncio é um
elemento importante no conto, pois ele representa a falta de comunicação e a
dificuldade de expressão dos sentimentos. O silêncio na mesa de jantar é
opressor e revela a tensão entre os personagens. O tic-tac do relógio e o
barulho da mastigação enfatizam o silêncio e criam uma atmosfera de
desconforto.
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