quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

CRÔNICA: ME ACORDEM QUANDO PASSAR - (FRAGMENTO) - ROBERTO GOMES - COM GABARITO

 Crônica: Me acordem quando passar – Fragmento

              Roberto Gomes

        Passei parte de minha infância brincando nas oficinas de um jornal. O nome era adequado: oficina, não estas redações atuais, com móveis bege, luz néon, ar condicionado e a névoa pálida dos monitores. Os móveis eram escuros, havia lâmpadas dependuradas por um fio no qual se juntavam moscas, e as máquinas de escrever martelavam forte sob as pancadas dos dois dedos que meu pai, na solene sala de redação, reservava para o ato de datilografar. Na sala ao lado, enegrecida por respingos de tinta, os blocos de chumbo descansavam contra as paredes. Era dali que vinham os golpes secos da impressora com seus garfos espalhafatosos. Na terceira sala, ficava a linotipo governada por Nelson de Souza, meu amigo Nelsinho, uma espécie de irmão adotivo que, além de compor o jornal, me levava ao cinema no domingo.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfvNZopfygPSZoW-qFbONF9T2lQgKhzo5DVVPkt-PN2hzLe8Xr2tgYsN16BoW2-fy0C5upkFFjH7vUl6DVTt2TXrQ7lo54SG9OsLWu-GtF8O-WT5AeZpA1YgIwaX8TJZ8SsqCGXMmLatu6_CqPSRTr9oKltqSra_9pEPxX2Lfj9KYJB5gZ8WMGjZ8TMWo/s1600/Fotografia_hist%C3%B3rica_de_Guarulhos_35.jpg


        [...].

        [...] Mas devo agora dizer outra coisa, talvez estranha. Convivo ao mesmo tempo com um tédio enorme diante das notícias. Não raro folheio jornais pensando em outra coisa, como alguém que quer se livrar de algo que o aborrece.

        Olho, por exemplo, estas manchetes cintilantes e tenho a impressão de que já li todas elas. Eram outros os personagens, a quantidade de feridos ou mortos, a urgência apregoada de um prazo no congresso, a data de uma posse – mas tudo muito igual. As explicações são as mesmas: uns dizem agora que falta vontade política, a mesma que não tiveram antes; outros se mostram severos e exigentes, muito objetivos, esquecidos de quando deliravam num mundo em que tudo seria possível, houvesse vontade política. E, claro, todos clamam por honestidade no trato com as coisas públicas. Como sempre.

        Mas não é só. Será que precisamos mesmo saber o que houve com aquele trem no interior da Índia? Com aquele ministro no Japão? E por que o jornalismo tem que ser este alarde a respeito do torto, do sujo, do corrupto, do que não deu certo, da mula de duas cabeças, a busca de números e percentagens quando Manuel Bandeira já provou, faz tempo, que o cálculo das probabilidades é uma pilhéria? Por que se vai ao outro lado do mundo buscar o esquisito, o desastre, a safadeza? Tem logo ali na esquina.

        Será que precisamos ler tantas notícias? Ver tantos jornais na televisão? Folhear tantas revistas? Que maluquice é esta em que estamos metidos? 

        Volto à oficina do jornal que meu pai dirigia. Tenho quase seis anos e vou catando lascas de chumbo, com as quais invento bandidos, índios, mocinhos de cinema. Com eles ocupo o meu dia, que passo ali, entre as máquinas, ouvindo o chacoalhar infindável da linotipo, as pancadas secas da impressora e, vindo da sala de redação, o batucar dos dois dedos de meu pai que perseguem as teclas negras da Remington.

        [...].

        Quando minha mãe vinha me chamar, eu já estava dormindo, deitado sobre alguma folha de jornal, a mesma folha que eu percorria com olhos acesos sem poder decifrar o que diziam. Isto me angustiava e eu dormia pensando: o que há por trás destas letrinhas? Que é tudo isto? O que estamos fazendo aqui?                

Roberto Gomes. Gazeta do Povo – caderno G. Curitiba, 06/07/2003.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 213.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal diferença entre as redações de jornais da infância do autor e as redações atuais, segundo o texto?

      O autor descreve as redações de sua infância como "oficinas", com móveis escuros, lâmpadas penduradas com moscas, máquinas de escrever barulhentas e o cheiro forte de tinta. Em contraste, as redações atuais são apresentadas como ambientes impessoais, com móveis bege, luz néon, ar condicionado e a "névoa pálida dos monitores". A principal diferença reside na atmosfera: as redações antigas eram vibrantes e cheias de vida, enquanto as atuais são mais frias e assépticas.

02 – Qual a sensação do autor em relação às notícias que lê nos jornais?

      O autor expressa um tédio enorme diante das notícias. Ele tem a impressão de que já leu todas as manchetes antes, com personagens e detalhes diferentes, mas com a mesma essência. As explicações para os problemas também se repetem, como a falta de "vontade política" e os clamores por honestidade.

03 – Qual a crítica do autor em relação ao conteúdo dos jornais?

      O autor critica a busca incessante por notícias sensacionalistas e exóticas, como acidentes e escândalos em lugares distantes, questionando a necessidade de saber de tais eventos. Ele sugere que há problemas e notícias relevantes bem mais perto, "logo ali na esquina", e que a insistência em explorar o sofrimento e o bizarro de longe parece desviar o foco dos problemas reais e próximos.

04 – Qual a reflexão proposta pelo autor sobre a quantidade de notícias que consumimos?

      O autor questiona a necessidade de consumir tantas notícias, jornais e revistas, sugerindo que essa busca frenética por informação pode ser uma "maluquice". Ele parece defender que a qualidade da informação é mais importante do que a quantidade, e que a repetição de temas e a busca por sensacionalismo podem nos afastar da compreensão real dos problemas.

05 – Qual a lembrança de infância que o autor traz à tona?

      O autor relembra sua infância na oficina do jornal de seu pai, onde passava o dia entre as máquinas, fascinado pelo processo de produção do jornal e pelas histórias que as letras pareciam esconder. Ele dormia sobre as folhas de jornal, angustiado por não conseguir decifrar o que diziam, mas curioso sobre o mundo que elas representavam.

06 – Qual a sensação que o autor descreve ao final do fragmento?

      Ao final do fragmento, o autor descreve uma sensação de angústia e de mistério em relação ao mundo das notícias. Ele se sente como uma criança que não consegue decifrar as letras do jornal, mas que pressente que ali se escondem segredos e respostas para as grandes questões da vida.

07 – Qual a principal mensagem que o autor busca transmitir com este fragmento de crônica?

      O autor nos convida a refletir sobre a forma como consumimos notícias e sobre a nossa relação com a informação. Ele questiona a necessidade de tanta informação, a qualidade do conteúdo dos jornais e a nossa capacidade de compreender o mundo através das notícias. A crônica nos leva a pensar sobre o que realmente importa e sobre como podemos nos conectar com o mundo de forma mais profunda e significativa.

 

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