Crônica: Me acordem quando passar – Fragmento
Roberto Gomes
Passei parte de minha infância
brincando nas oficinas de um jornal. O nome era adequado: oficina, não estas
redações atuais, com móveis bege, luz néon, ar condicionado e a névoa pálida
dos monitores. Os móveis eram escuros, havia lâmpadas dependuradas por um fio
no qual se juntavam moscas, e as máquinas de escrever martelavam forte sob as
pancadas dos dois dedos que meu pai, na solene sala de redação, reservava para
o ato de datilografar. Na sala ao lado, enegrecida por respingos de tinta, os
blocos de chumbo descansavam contra as paredes. Era dali que vinham os golpes
secos da impressora com seus garfos espalhafatosos. Na terceira sala, ficava a
linotipo governada por Nelson de Souza, meu amigo Nelsinho, uma espécie de
irmão adotivo que, além de compor o jornal, me levava ao cinema no domingo.
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[...].
[...] Mas devo agora dizer outra coisa,
talvez estranha. Convivo ao mesmo tempo com um tédio enorme diante das
notícias. Não raro folheio jornais pensando em outra coisa, como alguém que
quer se livrar de algo que o aborrece.
Olho, por exemplo, estas manchetes
cintilantes e tenho a impressão de que já li todas elas. Eram outros os
personagens, a quantidade de feridos ou mortos, a urgência apregoada de um
prazo no congresso, a data de uma posse – mas tudo muito igual. As explicações
são as mesmas: uns dizem agora que falta vontade política, a mesma que não
tiveram antes; outros se mostram severos e exigentes, muito objetivos,
esquecidos de quando deliravam num mundo em que tudo seria possível, houvesse
vontade política. E, claro, todos clamam por honestidade no trato com as coisas
públicas. Como sempre.
Mas não é só. Será que precisamos mesmo
saber o que houve com aquele trem no interior da Índia? Com aquele ministro no
Japão? E por que o jornalismo tem que ser este alarde a respeito do torto, do
sujo, do corrupto, do que não deu certo, da mula de duas cabeças, a busca de
números e percentagens quando Manuel Bandeira já provou, faz tempo, que o
cálculo das probabilidades é uma pilhéria? Por que se vai ao outro lado do
mundo buscar o esquisito, o desastre, a safadeza? Tem logo ali na esquina.
Será que precisamos ler tantas
notícias? Ver tantos jornais na televisão? Folhear tantas revistas? Que
maluquice é esta em que estamos metidos?
Volto à oficina do jornal que meu pai
dirigia. Tenho quase seis anos e vou catando lascas de chumbo, com as quais
invento bandidos, índios, mocinhos de cinema. Com eles ocupo o meu dia, que
passo ali, entre as máquinas, ouvindo o chacoalhar infindável da linotipo, as
pancadas secas da impressora e, vindo da sala de redação, o batucar dos dois
dedos de meu pai que perseguem as teclas negras da Remington.
[...].
Quando minha mãe vinha me chamar, eu já
estava dormindo, deitado sobre alguma folha de jornal, a mesma folha que eu
percorria com olhos acesos sem poder decifrar o que diziam. Isto me angustiava
e eu dormia pensando: o que há por trás destas letrinhas? Que é tudo isto? O
que estamos fazendo aqui?
Roberto Gomes. Gazeta
do Povo – caderno G. Curitiba, 06/07/2003.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 213.
Entendendo a crônica:
01 – Qual a principal diferença
entre as redações de jornais da infância do autor e as redações atuais, segundo
o texto?
O autor descreve
as redações de sua infância como "oficinas", com móveis escuros,
lâmpadas penduradas com moscas, máquinas de escrever barulhentas e o cheiro
forte de tinta. Em contraste, as redações atuais são apresentadas como
ambientes impessoais, com móveis bege, luz néon, ar condicionado e a
"névoa pálida dos monitores". A principal diferença reside na
atmosfera: as redações antigas eram vibrantes e cheias de vida, enquanto as
atuais são mais frias e assépticas.
02 – Qual a sensação do autor
em relação às notícias que lê nos jornais?
O autor expressa
um tédio enorme diante das notícias. Ele tem a impressão de que já leu todas as
manchetes antes, com personagens e detalhes diferentes, mas com a mesma
essência. As explicações para os problemas também se repetem, como a falta de
"vontade política" e os clamores por honestidade.
03 – Qual a crítica do autor
em relação ao conteúdo dos jornais?
O autor critica a
busca incessante por notícias sensacionalistas e exóticas, como acidentes e
escândalos em lugares distantes, questionando a necessidade de saber de tais
eventos. Ele sugere que há problemas e notícias relevantes bem mais perto,
"logo ali na esquina", e que a insistência em explorar o sofrimento e
o bizarro de longe parece desviar o foco dos problemas reais e próximos.
04 – Qual a reflexão proposta
pelo autor sobre a quantidade de notícias que consumimos?
O autor questiona
a necessidade de consumir tantas notícias, jornais e revistas, sugerindo que
essa busca frenética por informação pode ser uma "maluquice". Ele
parece defender que a qualidade da informação é mais importante do que a
quantidade, e que a repetição de temas e a busca por sensacionalismo podem nos
afastar da compreensão real dos problemas.
05 – Qual a lembrança de
infância que o autor traz à tona?
O autor relembra
sua infância na oficina do jornal de seu pai, onde passava o dia entre as
máquinas, fascinado pelo processo de produção do jornal e pelas histórias que
as letras pareciam esconder. Ele dormia sobre as folhas de jornal, angustiado
por não conseguir decifrar o que diziam, mas curioso sobre o mundo que elas
representavam.
06 – Qual a sensação que o
autor descreve ao final do fragmento?
Ao final do
fragmento, o autor descreve uma sensação de angústia e de mistério em relação
ao mundo das notícias. Ele se sente como uma criança que não consegue decifrar
as letras do jornal, mas que pressente que ali se escondem segredos e respostas
para as grandes questões da vida.
07 – Qual a principal mensagem
que o autor busca transmitir com este fragmento de crônica?
O autor nos
convida a refletir sobre a forma como consumimos notícias e sobre a nossa
relação com a informação. Ele questiona a necessidade de tanta informação, a
qualidade do conteúdo dos jornais e a nossa capacidade de compreender o mundo
através das notícias. A crônica nos leva a pensar sobre o que realmente importa
e sobre como podemos nos conectar com o mundo de forma mais profunda e
significativa.
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