Autobiografia: Homem correndo da polícia – Fragmento
Fernando Gabeira
Irarrazabal chama-se a rua por onde
caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos
pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que
vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973,
em Santiago do Chile, perto da praça Nunoa, a apenas alguns minutos do toque de
recolher.
Caminhávamos rumo à Embaixada da
Argentina, deixando para trás uma parte gelada da cordilheira dos Andes e tendo
à nossa esquerda o estádio Nacional, para onde convergia o grosso do tráfego
militar na área.
Na esquina com a rua Holanda, somos
abordados por alguém que nos pede fogo. Uma pessoa parada na esquina. Parecia
incrível que se pudesse estar parado na esquina, naquele momento. Vera me olhou
com espanto e compreendi de estalo o que queria dizer:
-- “Coitado, vai cair breve nas mãos da
polícia.”
Ele se curva para acender o cigarro e
vemos seus dedos amarelos. A chama do fósforo ressalta as olheiras de quem
dormiu pouco ou nem dormiu. Certamente era de esquerda, o cara parado na esquina.
E, como nós, estava transtornado com o golpe militar, tentando reatar os
inúmeros vínculos emocionais e políticos que se rompem num momento desses.
Tive vontade de aconselhá-lo: se cuida,
toma um banho, não dá bandeira, se manda, sai dessa esquina. Mas compreendi,
muito rapidamente, que seria absurdo parar para conversar na esquina de
Irarrazabal com Holanda, naquele princípio de primavera.
Nós também estávamos numa situação
difícil. A alguns minutos do toque de recolher, a meio caminho da Embaixada da
Argentina, nossas chances eram estas: ou saltávamos para dentro dos jardins e
ganhávamos asilo político, ou ficávamos na rua, em pleno toque de recolher. Se
ficássemos na rua seríamos certamente presos e teríamos, pelo menos, algumas
noites de tortura para explicar o que estávamos fazendo no Chile, durante a
virada sangrenta que derrubou a Unidade Popular. Pessoalmente teria de explicar
por que me chamava Diogo e era equatoriano. E não me chamava Diogo nem era
equatoriano. Tratava-se de um passaporte falso, de um português que emigrara
para Quito, e que me dava margem para falar espanhol com sotaque. Português
naturalizado equatoriano, caminhando ao lado de uma brasileira e de uma alemã,
sem tempo portanto para dar conselhos.
Pois, como ia dizendo, estávamos numa
situação difícil. Na melhor das hipóteses, venceríamos a vigilância dos
carabineros e cruzaríamos os jardins da embaixada. Começaria aí um exílio
dentro do exílio, dessa vez mais longo e doloroso porque as ditaduras militares
estavam fechando o cerco no continente. Na melhor das hipóteses, portanto,
iríamos sofrer muito.
No entanto, era preciso correr. Correr
rápido para chegar a tempo e meio disfarçado para não chamar a atenção dos
carros militares. E talvez o cara da esquina nem fosse de esquerda. Foi assim,
nessa corrida meio culpada, que me ocorreu a ideia: se escapo de mais essa,
escrevo um livro contando como foi tudo. Tudo? Apenas o que se viu nesses dez
anos, de 1968 para cá, ou melhor, a fatia que me tocou viver e recordar.
Este portanto é o livro de um homem
correndo da polícia, tentando compreender como é que se meteu, de repente, no
meio da Irarrazabal, se havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para
a Rio Branco, num dos grupos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura
militar que tomara o poder em 1964. Onde é mesmo que estávamos quando tudo
começou?
GABEIRA, Fernando. O
que é isso companheiro? 13 ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1980, p. 9-10.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 236-237.
Entendendo a autobiografia:
01 – Qual é o contexto
histórico em que se passa a narrativa?
A narrativa se
passa em Santiago do Chile, em setembro de 1973, durante o golpe militar que
derrubou o governo de Salvador Allende e instaurou a ditadura de Augusto
Pinochet.
02 – Qual é a situação dos
personagens principais no momento da narrativa?
Os personagens
principais, o narrador (Fernando Gabeira) e seus acompanhantes Vera e uma
alemã, estão em uma situação de risco. Eles caminham pelas ruas de Santiago,
próximo ao toque de recolher, e correm o risco de serem presos e torturados
pela polícia militar.
03 – Quem é o "homem
parado na esquina" e qual é a sua importância na narrativa?
O "homem
parado na esquina" é um personagem que o narrador e seus amigos encontram
durante sua fuga. Ele é descrito como um homem de esquerda, transtornado com o
golpe militar, que parece estar em perigo. Sua importância reside em despertar
no narrador a reflexão sobre a situação de perigo que ele próprio está vivendo
e sobre a necessidade de tomar cuidado para não ser pego pela polícia.
04 – Qual é a principal
preocupação do narrador ao longo do fragmento?
A principal
preocupação do narrador é escapar da polícia e evitar a prisão e a tortura. Ele
está constantemente atento aos sinais de perigo e busca formas de se disfarçar
e se proteger.
05 – O que significa a
expressão "exílio dentro do exílio" utilizada pelo narrador?
A expressão
"exílio dentro do exílio" se refere à possibilidade de o narrador e
seus amigos conseguirem asilo político na Embaixada da Argentina, mas terem que
enfrentar um novo período de exílio, agora dentro da embaixada, devido à
repressão política no Chile e em outros países da América Latina.
06 – Qual é a reflexão central
que o narrador faz ao longo do fragmento?
O narrador
reflete sobre como se envolveu em situações de perigo e de luta política ao
longo de sua vida. Ele se questiona sobre as motivações que o levaram a correr
da polícia, tanto no Brasil, durante a ditadura militar, quanto no Chile,
durante o golpe.
07 – Qual é a relação entre o
título "Homem correndo da polícia" e o conteúdo do fragmento?
O título "Homem correndo da polícia" resume a
situação central do fragmento: o narrador e seus amigos estão fugindo da
polícia militar em Santiago do Chile. A corrida do narrador, tanto no Chile
quanto no Brasil, representa sua luta contra a opressão e a busca por
liberdade.
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