quarta-feira, 2 de março de 2022

CRÔNICA: LIBERDADE, OH, LIBERDADE - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

 Crônica: Liberdade, oh, liberdade

                  Danuza Leão

        Todo mundo quer ser livre; a liberdade é o bem mais precioso, almejado por homens e mulheres de todas as idades, e a luta para conquistá-la começa bem cedo.

        Desde os primeiros meses de idade, você só pensa em uma coisa: fazer apenas o que quer, na hora que quer, do jeito que quer.

        Crianças de meses rejeitam a mamadeira de três em três horas, mas choram quando têm fome – querem comer na hora que escolherem –, e quando um pouco mais grandinhas brigam para não vestir a roupa que a mãe escolheu. Ficam loucas para ir sozinhas para o colégio, e quando chegam em casa além do horário previsto, ai de quem perguntar onde elas estiveram. "Por aí" é o que respondem, quando respondem – e as mães que enlouqueçam.

        Quando adolescentes, as coisas pioram: querem a chave do carro (e a de casa), e quando começam a sair à noite e os pais tentam estabelecer uma hora para chegar, é guerra na certa, com as devidas consequências: quarto trancado, onde ninguém pode entrar nem para fazer uma arrumação básica. Naquele território ninguém entra, pois é o único do qual ele se sente dono – e, portanto, livre. A partir dos 12 anos, o sonho de todos os adolescentes é morar num apart –sozinhos, claro.

        Mas o tempo passa, vem um namoro mais sério, e quem ama não é – nem quer ser – livre (para que o outro também não seja). Dá para quem está namorando sumir por três dias? Claro que não. Se for passar o fim de semana na casa da avó, que mora em outra cidade, vai ter que dar o número do telefone – e isso lá é liberdade? E dos celulares, melhor nem falar.

        Aí um dia você começa a achar que, para ser livre mesmo, é preciso ser só; começa a se afastar de tudo e cancela o amor em sua vida – entre outras coisas. Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na hora em que bem entende, resolve se o almoço vai ser um sanduíche ou na-da, sem ninguém para reclamar da geladeira vazia, trocar o canal de televisão ou reclamar porque você está fumando no quarto. Ah, viver em to-tal liberdade é a melhor coisa do mundo. Mas a vida não é simples, e um dia você acorda pensando em se mudar de casa; fica horas pesando os prós e contras, mas não consegue decidir se deve ou não. Pensa em refrescar a cabeça e ir ao cinema, mas fica na dúvida – enfrentar a fila, será que vale a pena? Vê a foto de uma modelo na revista e tem vontade de cortar o cabelo – mas será que vai ficar bem? Acaba não fazendo nada, e depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.

        Como seria bom se tivesse alguém para dizer que é uma loucura fazer uma tatuagem; alguém que te aconselhasse a não trocar de carro agora – pra que, se o seu está tão bom? Que mostrasse o quanto você foi injusta com aquela amiga e precipitada quando largou o marido, o quanto foi rude com a faxineira por uma bobagem. Que falasse coisas que iam te irritar, desse conselhos que você iria seguir ou não, alguém com quem você pudesse brigar, que te atormentasse o juízo às vezes, para você poder reclamar bastante. Alguém que dissesse o que você deve ou não fazer, o que pode e o que não pode e até mesmo te proibisse de alguma coisa.

        E que às vezes notasse suas olheiras e falasse, de maneira firme, que você está muito magra e talvez exagerando na dieta; alguém que percebesse que, faltando dez dias para o final do mês, você só tem 50 reais na carteira e perguntasse se você não está precisando de alguma coisa. E que dissesse sempre, em qualquer circunstância, "vai dar tudo certo".

        Que falta faz um pai.

Danuza Leão. Folha de S. Paulo, 3/3/2002.

Fonte: Livro- PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 7ª Série – 2ª edição - Atual Editora -1998 – p. 113-5.

Entendendo o texto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Almejado: desejado ardentemente.

·        Apart: o mesmo que apart-hotel (apartamento-hotel), espécie de apartamento com regalias de hotel: arrumadeira, lavanderia, cozinheira, manobrista, etc.

02 – A autora defende um ponto de vista a respeito da importância que tem a liberdade na vida das pessoas. Qual é esse ponto de vista e em que fases da vida o ser humano aspira pela liberdade?

      Ela defende o ponto de vista de que a liberdade é o bem mais desejado pelo ser humano em todas as fases da vida.

03 – No 4° parágrafo do texto, a autora diz que, na adolescência, “as coisas pioram”.

a)   Por que há conflitos entre pais e adolescentes?

Os conflitos ocorrem porque os adolescentes se rebelam contra as normas impostas pelos pais, como as de horário para chegar em casa.

b)   Que palavras empregadas pela autora reforçam a ideia de que o lar se transforma num campo de batalha?

As palavras guerra e território, que sugerem lutas e demarcação de espaços e fronteiras.

c)   Se o quarto é o único espaço do qual o adolescente se sente o dono, deduza: Que envolvimento ele tem com o restante da casa e com os problemas do lar?

Nenhum envolvimento; geralmente não se sente dono nem responsável pelo resto da casa; também não se interessa pelos problemas gerais da família.

04 – De acordo com o texto, “o sonho de todos os adolescentes é morar num apart – sozinhos, claro”.

a)   Das regalias que há no lar, quais o adolescente encontraria num apart-hotel?

Comida, roupa lavada e faxina.

b)   O adolescente tem condições concretas de manter um apart-hotel?

Não.

05 – Segundo a autora, a fase do “namoro mais sério” modifica a visão que até então a pessoa tinha de liberdade. “Quem ama”, diz ela, “não é – nem quer ser – livre”.

a)   Explique essa contradição.

Se a pessoa quer a sua liberdade, então precisa dar liberdade ao outro. Por amor, o ser humano começa a sacrificar sua liberdade para garantir a fidelidade do outro.

b)   Levante hipóteses: Por que, a respeito dos telefones celulares, a autora diz “melhor nem falar”?

Porque os celulares põem fim a certa “liberdade” do indivíduo, pois permitem que alguém, a distância, controle tudo o que o outro está fazendo.

06 – Morar sozinho é uma das etapas na conquista da liberdade. De acordo com o texto:

a)   Que vantagens há em morar sozinho?

A pessoa tem liberdade total para fazer o que deseja, sem dar satisfações a outra pessoa.

b)   E quais são as desvantagens?

A falta de um interlocutor para trocar ideias, para opinar sobre as mínimas coisas: corte de cabelo, ir ao cinema, etc.

07 – Releia este trecho:

        “[...] depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.” Veja alguns dos sentidos que a palavra nostalgia tem no dicionário:

        Nostalgia: s.f. 1 melancolia profunda causada pelo afastamento da terra natal [...] 3 saudades de algo, de um estado, de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar ao passado.

Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

a)   No texto em estudo, a nostalgia se deve à falta de quê?

De conselhos, broncas, proibições e consolo.

b)   Que outro sentido ganha, nesse momento, tudo aquilo que antes parecia insuportável ao adolescente?

Ganha um sentido de carinho, de preocupação, de companheirismo, etc.

08 – Comparada com o início do texto, a frase: “Que falta faz um pai”, do final, é surpreendente.

a)   A palavra pai foi empregada conotativamente. Que sentidos ela apresenta no contexto?

Representa a família como um todo: a mãe, os irmãos, a companhia, a solidariedade, o companheirismo, etc.

b)   Levante hipóteses: Até alguém chegar a essa nova forma de ver o mundo, quantos anos terão se passado?

Parece que a cronista se refere a adultos com mais de 30 anos, que já passaram por muitas experiências.

c)   O reconhecimento, nesse estágio da vida, de que “sente falta do pai”, indica que o ser humano amadureceu? Por quê?

Resposta pessoal do aluno. Sugestões: Sim, pois esse reconhecimento significa que as coisas estão sendo vistas de vários ângulos, que a pessoa aprendeu a ponderar, a ser mais tolerante, etc. Ou: Não, porque revela carência.

09 – Em sua trajetória de vida, o ser humano sofre profundas mudanças. De acordo com o texto, essas mudanças fazem com que ele deixe de valorizar a liberdade? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Não, ele apenas passa a ter uma visão diferente, menos radical, de liberdade. Passa a ver, por exemplo, que ser livre não é necessariamente ser só e que as demais pessoas sem sempre exercem opressão sobre nós. Sua preocupação pode ser, inclusive, uma forma de amor.

 

 

Um comentário: